segunda-feira, 8 de abril de 2019

4454) "A Conversação": os escutadores de segredos (8.4.2019)



Por causa do atraso de um voo noturno, precisei pernoitar longe de casa para pegar um avião na manhã seguinte, e a companhia aérea me botou num hotel. Foi entrar no quarto, ligar a TV e ver que estava começando uma exibição de A Conversação (The Conversation, 1974) de Francis F. Coppola.

Anotei isso no capítulo das coincidências, porque uma semana atrás eu estava placidamente em casa tomando a minha Itaipava e revendo pela enésima vez Blow-Up (1966) de Michelangelo Antonioni, o filme em que o de Coppola se inspirou parcialmente. (Numa entrevista que está no YouTube, ele diz que só viu Blow Up depois de já estar trocando idéias com o colega Irwin Kershner a respeito de um filme sobre espionagem eletrônica.)

O filme de Antonioni é sobre fotografia, o de Coppola é sobre gravação de áudio, mas ambos contam a história de um profissional calejado, introspectivo, desdenhoso, que registra à distância o encontro de um casal de jovens e depois, manipulando os próprios registros, percebe a trama e a execução de um assassinato.

Como se dissesse que toda história de amor tem por trás de si uma dança, uma coreografia de movimentos para escapar à morte, sem conseguir.


No filme de Coppola, o personagem é Harry Caul (Gene Hackman), um “araponga” escutador de conversas alheias, ou, como eles gostam de se apresentar, “um profissional da área de segurança, vigilância e informação”. Ele é contratado por um magnata para espionar o casal e gravar suas conversas. Os dois (de um modo assustadiço e dissimulado) se encontram durante a hora de almoço, numa praça cheia de gente, no centro dos prédios de escritórios, e falam andando sem parar, justamente como quem teme estar sendo espionado.

Harry Caul desenvolveu uma técnica própria com 3 microfones de distâncias variáveis, resultando em 3 diferentes rolos de fita que ele vai depois filtrar, ampliar, equalizar e justapor. As cenas de gravação e depois da recuperação das falas são um primor de montagem (Richard Chew; a edição de som é de Walter Murch), comparável às cenas semelhantes da revelação e ampliação das fotos em Blow Up (montado por Frank Clarke).

Há duas cenas notáveis, uma logo depois da outra. A primeira delas é a surrealista convenção de arapongas, de espiões eletrônicos. Coppola afirma que essas convenções existiam de fato mas foram tornadas ilegais depois de 1968. Eles recriaram uma delas para o filme. São estandes e mais estandes de sujeitos anônimos, nerdosos, envelhecidos, oferecendo suas engenhocas de áudio e vídeo camufladas; e Harry Caul, que até então a gente vê como um zé-ninguém, um mero sujeito arredio e mal-humorado, pela primeira vez é tratado como um ídolo, um craque, “o maior de todos”.


Logo em seguida, Caul leva os amigos (e concorrentes) para o armazém onde faz seus trabalhos. Ali se segue uma complexa sequência de diálogos e marcações onde fica evidente o ambiente cobra-engolindo-cobra em que vive esse pessoal de vigilância. Ninguém confia em ninguém, todos dão tapinhas nas costas de todos, todos estão prontos para furtar os segredos dos colegas na primeira chance que tiverem.

Coppola narra o filme com uma precisão detalhista que está a léguas dos ambientes limpos e vastas extensões de cor uniforme que a gente vê em Blow Up. Gene Hackman, soturno, introvertido, azedo, tem uma atuação minimalista e brilhante, usando roupas desmazeladas, relacionando-se de forma patética com as mulheres. Toca sax sozinho em casa, acompanhando um disco. Seus únicos instantes de prazer são quando se relaciona com instrumentos.



Há algumas piscadelas de olho na direção de Blow Up, como a música de jazz (Herbie Hancock no primeiro filme, Walter Shire no seguinte), sem falar no mímico de rosto pintado que passa perto do casal na praça, numa clara referência ao filme inglês.

O personagem de Harry Caul é também muito mais complexo e mais bem construído do que o Thomas de David Hemmings. Anos atrás, Caul gravou conversas políticas entre dois homens a sós, num barco, no meio de um lago; uma façanha técnica tão impossível que um deles atribuiu o vazamento da conversa ao outro, e mandou torturá-lo e matá-lo junto com a mulher e o filho. Caul é católico, e nunca conseguiu se perdoar por isso.


A Conversação é um filme sobre tecnologia e, curiosamente, eu imagino que um verdadeiro profissional da tecnologia digital de hoje, anos-luz à frente do material analógico e magnético usado pelos personagens do filme, entende tudo que se passa ali e se entusiasma do mesmo jeito. Porque não é o aparelho pesadão e antiquado que conta, é a mente de quem maneja o aparelho. São as pequenas jogadas criativas que se pode produzir com um aparelho qualquer; é o conhecimento refinado do que cada aparelho pode fornecer.

A manipulação política e a manipulação criminosa da tecnologia nunca vão deixar de existir, e ela repousa sempre (para benefício do criminosos e dos políticos) na existência desses nerds quarentões, que vivem para o técnica, que não pensam noutra coisa senão a técnica, que têm dificuldade até de ir para a cama com uma mulher porque a cabeça está pensando em filtros de áudio, em microfonagem de feixe direcional, em bugs miniaturizados e camuflados sabe-se lá onde. Eles só pensam nisso.

Coppola ganhou com este filme uma Palma de Ouro em Cannes, três indicações ao Oscar e uma carrada de prêmios por aí. Curiosamente, mesmo sendo um dos seus melhores filmes (para algumas pessoas, o melhor de todos) ninguém fala mais nele.

Hoje, na época das câmeras big-brother espalhadas pelas metrópoles, dos milhões de celulares fotografando tudo em todo canto, da espionagem do Estado e contra o Estado, da Mídia Ninja, das fake news, do Photoshop e do “audio doctoring”, é talvez mais presciente e mais atual do que os filmes que o diretor fez sobre a Máfia e sobre a Guerra do Vietnam.