sábado, 23 de agosto de 2008

0522) A arte de caçar talentos (20.11.2004)




A Google Inc., empresa criadora do instrumento de buscas pela Internet (ver “O Hiper-Google”, 21 de outubro) está recrutando funcionários de uma forma criativa e eficaz. A companhia possui a mais poderosa rede privada de servidores no mundo, e de dois anos para cá passou de 700 para 2.700 funcionários.

A Google precisa de técnicos jovens, espertos, cheios de energia e de competividade. O que faz? Bota um anúncio?

Sim, mas não um anúncio qualquer. A empresa publicou em meia dúzia de revistas científicas (Mensa, Physics Today, o Linux Journal, etc.) um teste de 21 perguntas, espécie de vestibular para candidatos a um emprego.

Algumas perguntas são de natureza matemática (“De quantas maneiras diferentes é possível colorir um icosaedro, cada face de uma cor, com três cores à escolha?”) até questões sem resposta específica, onde vai valer a criatividade do candidato: “Escreva um hai-kai descrevendo possíveis métodos para predizer as oscilações de tráfego na rede”, ou “Qual é a mais bela equação matemática derivada, e por quê?”

Algum tempo atrás, pessoas que passavam de carro pelo Silicon Valley, o reduto da indústria informática, viam out-doors mostrando apenas uma linha de texto: “(o primeiro número primo de 10 dígitos encontrado em dígitos consecutivos de “e”).com”.

Ou seja: o sujeito teria que encontrar esse número primo para ter o endereço correto de um saite. Ao chegar lá, ele se deparava com outras perguntas do mesmo nível e, se as respondesse, recebia um pedido de currículo.

Isto me lembra O homem demolido, de Alfred Bester (1953), onde ele descreve um futuro próximo onde uma pequena percentagem da humanidade é de pessoas telepatas. Estes “ledores de pensamentos” acabam constituindo uma elite intelectual extremamente fechada, que se comunica à revelia de nós, pobres mortais.

Acontece que a maioria dos telepatas não sabe que o é, pois é um talento que precisa ser descoberto e desenvolvido. E Bester descreve uma cena no saguão do edifício de recrutamento de telepatas. Filas enormes de pessoas esperançosas solicitando um exame, um diagnóstico, para saber se pertencem ou não a esse grupo privilegiado.

A certa altura, o protagonista (que é telepata) começa a captar uma mensagem que repete sem parar, baixinho: “Dirija-se para a porta verde, ao fundo do saguão...” Um rapaz negro que está na fila titubeia, e com passos hesitantes se dirige para essa porta, gira a maçaneta, entra. Do outro lado, é abraçado festivamente pelos outros telepatas, que estavam enviando a mensagem.

Moral da história: quando precisamos de pessoas com determinado talento, basta soltar “no ar”, à vista de todo mundo, uma mensagem que só pode ser entendida usando-se esse talento. Para os demais, é um recado sem sentido, mas para Os Que Sabem, é a senha de acesso para um mundo onde aquilo que eles sabem e aquilo que eles são será valorizado na justa medida.








0521) O tamanho do Tempo (19.11.2004)




Para organizar o mundo, inventamos uma ficção poderosíssima (mas ficção, mesmo assim): a de que o Tempo é algo linear, constante, matematicamente divisível. 

Relógios e calendários servem para domesticar nossa mente nesse sentido, fazendo-nos crer que é próprio da natureza do Tempo ser medido, e de que ele é de fato composto por tijolos grandes, que se dividem em tijolos menores, que por sua vez se subdividem em tijolinhos minúsculos, e assim por diante. 

É um artifício intelectual; útil, mas limitado. Os conceitos de ano, mês, dia, segundo, etc. não são conceitos arbitrários, porque se referem a aspectos físicos que de fato existem; mas não são suficientes para descrever nossa relação com o Tempo.

Existe o Tempo do corpo e o Tempo da mente. 

Relógios e calendários são nossa maneira de fazer a mente pensar de acordo com o Tempo do corpo, o Tempo do universo físico, onde a Terra, o Sol, as Estrelas e a Lua, que se movem em ciclos regulares, nos dão um ponto de partida, pontos de referência comuns a todas as pessoas. 

Isto, contudo, é o Tempo externo, o Tempo do mundo, que pode ser medido com uma régua. 

O Tempo da mente, o Tempo da nossa memória emocional e intuitiva, teria que ser medido com um pedaço de elástico, porque ele se estica ou se encolhe de acordo com a maior ou menor energia psíquica que aplicamos nele. Daí os “relógios moles” de Salvador Dali, uma das grandes sacadas da Arte para exprimir essa flexibilidade de nossa percepção.

Jorge Luís Borges admirava-se de ser capaz de recordar com nitidez um fato ocorrido há cinqüenta anos e não poder adivinhar o que sucederia no dia seguinte, “que estava muito mais próximo”. 

Este pequeno paradoxo nos mostra a inutilidade de tentarmos sempre espacializar o Tempo, vê-lo como uma régua, uma escala linear onde nossa consciência se move sempre na mesma velocidade, na mesma direção, e na mesma ordem: 1, 2, 3, 4, 5... 

Nosso Tempo mental é o contrário. Se estamos conversando com um amigo de infância, podemos passar cinco minutos conversando em tempo real, depois nos calamos por dez segundos enquanto avaliamos “de fora” um período de anos de nossa vida, e em seguida passamos cinco minutos rememorando momentos que, somados, ocupariam meses de tempo cronológico.

O Tempo mental se parece com esses websites onde imagens aumentam de tamanho ou se transformam em outras no momento em que passamos o mouse sobre elas. Quando alguma coisa nos evoca um fato emocionalmente relevante, ele cresce, invade nossa mente por inteiro, distorce o tempo real que nosso corpo está experimentando. 

A evocação de um minuto traumático ou de intenso prazer pode se reiterar durante um dia inteiro, como um disco enganchado. 

Em vez de vermos o Tempo como uma linha reta, com o Presente situado entre o Passado e o Futuro, poderíamos visualizá-lo como um cacho de bolhas de espuma em ordem não-cronológica, cada uma delas se expandindo ao ser tocada pela nossa consciência.






0520) O protagonista invisível (18.11.2004)




(René Magritte)


Algum tempo atrás comentei aqui (“O inimigo oculto”, 18 de julho) o recurso narrativo de se manter fora do texto o seu personagem principal, que existe de forma indireta, visto pelos demais personagens. Dei como modelo algumas canções de Chico Buarque, mas a dramaturgia em geral é farta em exemplos. 

Minha irmã Clotilde Tavares acaba de estrear uma peça, que escreveu e dirigiu: Alguém lá fora, a história de três mulheres que moram num lugar afastado. Uma noite, um homem chega lá e é hospedado pelas três, fica dormindo num quarto fora da casa; e a presença desse estranho começa a alterar o comportamento delas. O detalhe é que o personagem masculino nunca é visto, não há um ator para interpretá-lo. Ele existe apenas através das reações das mulheres, que vão “lá fora”, conversam com ele, voltam, etc.

O que me lembra um pouco Rebecca, o romance de Daphne du Maurier filmado por Hitchcock. Quando o filme começa, Rebecca já morreu, e o que acompanhamos é o casamento de seu viúvo, Max de Winter, com uma jovem que aos poucos começa a perceber a presença opressiva dessa ex-esposa que exercia um domínio inexplicável sobre todo mundo. 

Morta e invisível, Rebecca é o “motor” de tudo que acontece no filme, e um dos grandes personagens de todos os tempos, mesmo sem aparecer sequer numa cena de “flash-back”. Uma colcha-de-retalhos de depoimentos e memórias de pessoas que a odiaram ou que eram apaixonadas por ela.

Há casos de personagens menos centrais mas igualmente interessantes, como o espião Kaplan em Intriga Internacional de Hitchcock, que no final ficamos sabendo tratar-se de um personagem fictício, cujas bagagens são enviadas de avião e remetidas para hotéis sem que ninguém jamais o veja. Ele serve somente para despistar os espiões inimigos. 

E há os personagens parcialmente visíveis (há um ator que os interpreta), mas ainda assim misteriosos, como o motorista do caminhão que em Encurralado, filme de estréia de Spielberg, persegue um pobre coitado ao longo de uma rodovia.

Em todos estes casos, o personagem “em si” não aparece, e tudo que sabemos dele é a reação que as pessoas têm à simples menção de seu nome, ou as histórias que contam ao seu respeito. 

Criar um personagem assim é um bom desafio pra um autor, porque ele pode explorar ao máximo as nossas diferentes maneiras de reagir a uma mesma coisa. 

Em seu conto “A aproximação a Almotásim”, Jorge Luís Borges conta a história de um estudante que ouve falar num tal de Almotásim, indivíduo de muitas virtudes, e dedica sua vida a tentar encontrá-lo, sem o conseguir. É a história, diz Borges, da “busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras”. 

Rastrear esses reflexos, dar-lhes substância narrativa, jogar com as contradições e os paradoxos que irão se formando entre eles, é um teste para o bom narrador, e um prazer para o leitor que gosta de saborear sutilezas.







0519) A Perna Cabeluda (17.11.2004)




(ilustração: H. D. Mabuse)

Entre as lendas urbanas mais curiosas do Nordeste está sem dúvida a da Perna Cabeluda, uma entidade sobrenatural que teria assombrado as ruas do Recife durante a década de 1970.

Aparecendo onde menos se esperava (e por falar nisso, onde é que alguém esperaria que aparecesse?), esta criatura era o oposto-simétrico do Saci Pererê. Ou seja, era uma perna-sem-pessoa, em vez de uma pessoa-sem-perna.

Surgia pulando (eu já ia dizer “pulando num pé só”), atacava os transeuntes, dava chute em todo mundo, e depois fugia pulando.

Foi cantada em verso e em prosa. Apareceu como protagonista em folhetos de cordel como A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço de José Soares, inclusive um em que ela enfrentava outra criatura mítica: A Véia debaixo da cama e a Perna Cabeluda de José Costa Leite.

Apareceu também em um vídeo de Marcelo Gomes, A Perna Cabeluda (1995). Figurou em shows de Chico Science & Nação Zumbi: Chico dançava com uma perna de pano estufada, e depois a jogava no meio da platéia.

Eu próprio a utilizei como tema num curta para TV de 40 minutos para o programa Viva Pernambuco, em 1996, dirigido por Romero de Andrade Lima e Cláudio Assis.

A Perna Cabeluda é um bom exemplo de como surgem essas criaturas folclóricas. Uma vez eu estava em Recife conversando com o escritor Raimundo Carrero, que me deu uma versão para o surgimento dessa lenda. Ele e Jota Ferreira tinham um programa de rádio (pelo que me lembro ele era redator e Jota Ferreira o apresentador, mas posso estar enganado). E uma noite, entre uma música e outra deram uma notinha humorística, mais ou menos assim:

“Pois é, meu amigo, a vida no Recife não anda nada fácil!... Chega agora à nossa redação a notícia de que Fulano de Tal, guarda-noturno, chegou em casa depois de uma jornada de trabalho e deitou-se para dormir ao lado de sua esposa. Ouviu um barulho, e ao olhar para baixo viu uma perna cabeluda embaixo da cama!”

A intenção era sugerir, com a imagem da perna cabeluda, a presença do “urso”, do amante da esposa. A nota provocou muitos risos, e no dia seguinte, ele voltaram à carga.

“E atenção, minha gente... Sicrano de Tal, morador da Imbiribeira, chegou em casa de viagem, e para sua surpresa viu a perna cabeluda fugindo pela porta da cozinha!” 

E aí não parou mais. Usada inicialmente como uma sinédoque visual (a parte pelo todo), a perna acabou ganhando vida própria.

Isto não quer dizer que qualquer coisa inventada vire automaticamente uma lenda. Neste caso específico virou porque a imagem resultante ficou ao mesmo tempo absurda e engraçada, ou pelo menos assim pareceu à galera onde a história começou a circular (ouvintes de rádio dos subúrbios recifenses).

Imagens e figuras semelhantes são lançadas diariamente no caldeirão cultural. É um processo aleatório. Umas pegam, outras não. “Cultura popular” talvez se defina por este aspecto aleatório, onde não se pesquisa, não se planeja, e as criações dão certo meio que por acaso.






0518) As Pedras do nosso Reino (16.11.2004)




(Foto: Dantas Suassuna)

Somos dois Estados vizinhos e rivais, embora de uma rivalidade meio promíscua, meio misturada com xamego, como a de dois irmãos com pequena diferença de idade. Os pernambucanos consideram seu Estado mais importante do que a Paraíba, certamente por ser maior, mas a verdade é que a maior presença de Pernambuco não se deve ao seu tamanho, e sim à presença do Recife, uma metrópole que sozinha tem população equivalente a metade do nosso Estado, e que é uma das três capitais “de fato” do Nordeste (juntamente com Salvador e Fortaleza).

Tirando isto, sempre achei que os dois formam um Estado só, porque é enorme a homogeneidade geográfica, corográfica, econômica e cultural entre os dois. Desdobre o mapa, leitor. Existe aos meus olhos uma continuidade nítida entre as duas zonas-da-mata; entre as duas metades da região dos Cariris, ali pela parte central dos dois Estados; e entre os sertões profundos, principalmente no trecho em que a Paraíba se interrompe na direção Oeste, dando lugar à parte Sul do Ceará, a qual, vista do ângulo da Geografia e da História, poderia perfeitamente pertencer tanto à Paraíba quanto a Pernambuco.

Anos e anos de convivência com cordelistas e repentistas reforçaram no meu espírito esta impressão de unidade cultural entre os dois Estados. No dia em que uma revolução qualquer obrigar o Brasil a redesenhar suas fronteiras internas, enviarei moção ao Congresso Nacional propondo a anexação, ao território paraibano, daquele triângulo territorial que tem início em Serra Talhada, subindo na direção de Triunfo, alongando-se via Tabira até São José do Egito e voltando a descer rumo Sul até Sertânia, onde (tirem os chapéus, caros leitores) está sepultado meu avô materno, o velho Pedro Quirino. Tudo isto é território de Cantador, e, para ser sincero, é território independente; tem pouco ou quase nada a ver com Recife e João Pessoa.



Tudo isto me vem à mente ao contemplar a capa do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna (4a. edição, 1976), onde Eugênio Hirsch, um dos nossos maiores capistas de livros, estilizou a imagem das duas Torres de Pedra que concentram o sonho de grandeza de Dom Pedro Dinis Quaderna. As Pedras se situam em São José do Belmonte, na fronteira entre Pernambuco e Paraíba; uma delas é ligeiramente maior do que a outra, assim como o território de Pernambuco é ligeiramente maior que o nosso. As duas Pedras podem servir como metáfora visual dos dois Estados, unidos como duas bananas-filipinas, ou, como intuiu a genialidade de Eugênio Hirsch, como dois dedos, indicador e médio, erguidos num sinal de bênção. O Romance da Pedra do Reino, que neste final de ano será relançado em nova edição pela José Olympio, mostra este território simbólico profundo, retalhado ao meio pelas convenções políticas e cartográficas, mas que não perdeu até hoje a unidade de espírito e a consciência de si próprio.