terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

5029) As armadilhas da língua (6.2.2024)

 


Rola pela web um meme com trechos de um programa de Sílvio Santos onde as pessoas têm que sugerir letras para completar palavras num painel, e ganhar prêmios. O apresentador pede sugestões, e aí vem um picotado de respostas absurdas, que fazem a platéia gargalhar. 
 
-- L de elefante!...
-- C de Sebastião!...
-- R de ervilha!...
 
E o pessoal rola de rir. Eu também acho graça; no meu caso pelo inesperado da coisa, porque há uma fração de segundo entre o enunciado da letra, em voz alta, e o enunciado da palavra; e a palavra sempre é uma que eu menos esperava. 

Na televisão a gente sempre acha que tudo é combinado, tudo é pegadinha. Mas, supondo que não seja uma encenação combinada... As pessoas devem ser precariamente alfabetizadas. Podemos dar também o desconto do nervosismo. Estar sendo submetido publicamente a um teste, principalmente na TV, é duro. A pessoa sabe que a família inteira está assistindo, a vizinhança inteira, o Sistema Solar. 
 
Guardei por muitos anos uma prova de quando eu tinha 8 ou 9 de idade, prova em que me perguntaram em que dia a América foi descoberta, e em vez do dia 12 coloquei “24 de outubro” – que estava na minha cabeça, talvez, por ser o aniversário do meu pai. E a professora botou “Certo” na minha resposta! 
 
Acho que ela corrigia essas coisas mecanicamente, de noite, depois de tirar a mesa do jantar... Enfim. O analfabetismo não sacrifica apenas os analfabetos, mas desgasta os alfabetizadores. 
 
Mas nas três respostas que coloquei acima, eu percebo um paralelismo. Posso estar “viajando”, mas tenho a sensação de que essas pessoas, quando pensam nas palavras, não pensam em palavras escritas letra-a-letra, pensam em palavras faladas sílaba-a-sílaba.  
 
Esta diferença é uma das distinções essenciais entre a linguagem escrita e a linguagem falada. Talvez seja o hábito de escrever e recitar versos metrificados, mas quando estou falando eu sinto que estou pronunciando sílabas inteiras, nem me lembro que são (em geral) uma combinação de vogais e consoantes. Nem me lembro de como se escreve aquilo. Só lembro na hora de digitar no teclado ou de rabiscar com a caneta.  
 
O homem que diz: “L de elefante” está dizendo algo que corresponde à experiência dele com essa palavra, que pelo visto é apenas uma experiência de ouvir e de dizer. (Pouco importa se ele assina o nome ou não, se é capaz de ler uma placa ou não; o domínio da língua é sempre gradual e se expande aos poucos. E nunca termina.) 
 
Essa palavra é feita de três pequenas explosões sonoras: ele – fan – te. (Note-se que a primeira pequena explosão envolve duas sílabas, e/le, mas na cabeça desse cidadão elas parecem, plausivelmente, estar coladas e serem uma coisa só: ele
 
As letras servem para explicar, num código visual, como deve ser a explosãozinha de cada sílaba. A outra sílaba é FAN? Então temos o “F” para explicar que é preciso tocar o lábio inferior com os incisivos superiores, o “A” para indicar qual é o som básico que a garganta deve modular, e o “N” para indicar que esse som deve ser nasalizado. Três coisas para descrever uma. 

Por este mesmo raciocínio, entendo a pessoa que disse: “C de Sebastião”. E apois?!  Sebastião não começa com “sê”? E “ervilha” não começa com “err”? 




Durante muitos anos li aqui e acolá referências à personagem surrealista “Rrose Sélavy”, criada por Marcel Duchamp e glosada por Robert Desnos. Esse “R” duplo no começo do nome sempre me embatucou, mas debitei na mesma conta que já corria em nome de Sir Andrew Ffoulkes, um dos heróis do romance Pimpinela Escarlate. Excentricidades européias!
 
Só algum tempo depois li uma interpretação que me clareou tudo. O “R” duplo tinha a função de carregar ainda mais a pronúncia, porque o sentido do trocadilho é dizer: “Éros c’est la vie”. Eros é a vida. 
 
Os surrealistas tinham, entre outras qualidades, um senso de humor cortante, e um gozo inesgotável em saborear palavras. Desnos, em Corps et Biens (1930), enumera variações trocadilhescas em torno dessa personagem erótica e viva. E diz a certa altura: “Rrose Sélavy connaît bien le marchand du sel”. Rrose Sélavy conhece bem o vendedor de sal ? Pode ser, mas é desse modo que ele mascara o nome “Marcel Duchamp”. 
 
Uma brincadeira que pode parecer, aos de-fora da Tribo Trocadilhesca, uma perda de tempo, ou um esnobismo intelectualóide. Não é. É o prazer de brincar com as palavras, o mesmo que faz o cantor Xangai gracejar com o nome dos amigos, e em suas conversas referir-se de vez em quando a “Ivanova Vilanildo” ou “Virias Fatal”. 
 
Voltando à ponta da meada: as palavras faladas não são feitas de letras, elas são feitas de sons. Passamos dezenas de milhares de anos usando as palavras como simples sons feitos com a boca e escutados com a zurêia. A escrita só surgiu muito depois – e é limitada, incompleta, depende muito da interpretação do leitor (o que pode ser uma vantagem, às vezes).
 
E a escrita não é uma transcrição da linguagem falada. (Esta seria a “escrita fonética”). É outro conjunto de convenções, que corre em paralelo; procura servir de mapa para a fala, que é o território. Ouvindo meus rockzinhos na adolescência eu ficava besta em ver como os ingleses rimavam “girl” com “world” ou com “pearls”, e mais: como essas grafias nada tinham a ver com o som gutural que essas palavras têm na vida real – na fala.
 
Bob Dylan:
https://www.youtube.com/watch?v=jJ4QrBFVIBM
 
Uma coisa que acho legal no linguajar pop-escrito de hoje em dia, em inglês, é o modo como o pessoal usa números e letras maiúsculas para substituir sílabas.
 
“Nothing Compares 2 U” = Nothing compares to you
“4ever” = forever
“2NE1” = “to anyone”
“INXS” = “in excess”
 
…e por aí vai. O que pode ser visto como a linguagem falada invadindo domínios da linguagem escrita, forçando a existência de novas grafias. Tal como acontece em nossas comunicações online, onde usamos “kd vc”, “tb”, “rs rs rs”, “kkkkkkk”, “pqp”, etc.
 
Isso é escrever certo? É escrever errado? A Gramática condena ou autoriza esse tipo de escrita? Eu acho que não cabe à Gramática condenar nem autorizar: cabe a ela examinar, entender como funciona, descrever seu funcionamento e registrar: “É fato. Está acontecendo.”