quinta-feira, 7 de agosto de 2008

0496) O Hiper-Google (21.10.2004)



O Google é o principal instrumento (recuso-me a chamá-lo de “ferramenta”) de busca na Internet. Anos atrás, estes instrumentos eram muito indiscriminatórios: você digitava o assunto procurado e recebia milhões de irrelevâncias. Parece que eles aprenderam a hierarquizar, e agora, pelo menos no meu caso, costumo achar o que procuro nas primeiras três páginas que se oferecem. O que é bom, porque são muitas. Pedir “Sigmund Freud” me dá 343 mil páginas. “Jesus” me dá 5 milhões e 600 mil. “Beatles” me dá 5 milhões 480 mil (a profecia de Lennon não se cumpriu ainda!). “Karl Marx”, 846 mil. “Madonna” me deu 5 milhões e 900 mil, mas aí existe uma superposição entre duas grandes estruturas publicitárias, o showbiz e a Igreja. “George W. Bush” fornece 5 milhões 120 mil páginas. Até o modesto “Braulio Tavares” me fornece 1.870 resultados – nada mau!

Estou satisfeito? Nem um pouco. Ainda estamos arranhando a superfície desse Universo. As buscas do Google são assim extensas e rápidas porque verificam texto, que é a coisa mais rapidamente verificável que existe. Pois eu gostaria que existisse um Hiper-Google para se procurar imagens. Não o sistema atual, onde você digita “pirâmide” ou “coelho” e aparecem imagens relativas a essa palavra. O que eu queria era um Google onde você colasse uma imagem, clicasse “Buscar”, e ele desse uma geral nos saites do mundo inteiro, recolhendo imagens parecidas com aquela. Claro que seria necessário um tremendo software reconhecedor de imagens, mas não é impossível. Só está muito além das nossas possibilidades atuais.

Não sei se esta coluna é lida no Silicon Valley, a Meca da informática, mas, se for, anotem aí: eu gostaria de um Google que localizasse melodias. Poderíamos fornecer a partitura, ou então um arquivo de som feito na hora. Não existe coisa mais chata do que você pegar o violão, passar a tarde inteira fazendo uma música bem caprichada... e depois ficar na dúvida se aquela música já existe ou não. Nossos tribunais estão cheios de processos sobre músicas que foram compostas mais de uma vez. Eu passo por problemas assim diariamente. Se houvesse um Hiper-Google, era só plugar o violão, dedilhar a melodia, e dar “Enter”. Em meio minuto chegaria a resposta: “Idiota, esta música é ´Eleanor Rigby´!”. Beleza.

Dou estes exemplos para vocês verem o quanto evoluímos em uma década, e o quanto ainda poderemos evoluir. Antes do Yahoo e do Google, o único lugar onde a gente podia fazer pesquisa era na Biblioteca Municipal. Já perdi tardes inteiras em Bibliotecas tentando adivinhar o sentido de uma palavra que não tinha nos dicionários: eu ficava abrindo livros ao acaso (Medicina, Botânica, Geografia...) para ver se achava a maldita palavra. Hoje, é num clique do mouse e num pisco do olho. Um Google reconhecedor de imagens e de melodias ainda está um pouco distante de nossa realidade imediata, mas as possibilidades, como sempre, são infinitas.

0495) 50 anos falando sozinho (20.10.2004)



De vez em quando aparece um título que merece um Prêmio Nobel, independente do livro. O mais recente que vi é este: Cinqüenta anos falando sozinho, coletânea das poesias completas de um poeta chamado Annibal Augusto Gama. Para mim, fazer poesia não é mais do que isto: falar sozinho. Não pense o leitor que estou fazendo disto um cavalo-de-batalha, e me queixando da “solidão do poeta”, da “incomunicabilidade entre as almas” ou coisa parecida. De jeito nenhum. Falar sozinho é uma das atividades mais prazerosas desta vida, e acho mesmo que é requisito obrigatório para a saúde mental.

Falar sozinho, em primeiro lugar, não implica em dispensar o Outro, prescindir do Outro. Falar sozinho é levar o Outro tão a sério que se é capaz de invocá-lo mesmo em sua ausência. Meus filhos adoram mangar de mim quando me vêem sentado no sofá, absorto, murmurando baixinho alguma coisa, o olhar vago, a mão esboçando uma gesticulação qualquer. “Papai tá falando sozinho!...” gritam, e morrem de rir. Mal sabem eles da profunda lição filosófica que eu estava ensaiando para a próxima sessão de reprimendas.

Falar sozinho é cacoete dos comunicativos em excesso, e não dos introvertidos. Quem fala sozinho é porque tanta coisa a dizer que esses borbotões de texto escapam pelas menores fissuras, como os gases vulcânicos se esgueiram pelas fendas da rocha quando a fervura lá embaixo está muito grande. E fazer poesia é a melhor maneira de falar sozinho sem dar muito na vista, porque aí a cabeça se concentra toda no encaixe das pecinhas-de-Lego-verbais que constituem o poema.

Quando a gente está escrevendo está falando com o mais fictício e o mais real dos interlocutores: um Eu-Mesmo que, de fora, nos escuta. Alguém que sabe tudo que sabemos, lembra tudo que lembramos, sente tudo que sentimos, e que mesmo assim é capaz de se surpreender, para o bem ou para o mal, com o que dizemos. É o nosso leitor ideal.

Não cheguei a ler os poemas de Annibal Augusto Gama. Talvez ele não seja um grande poeta, pelos meus critérios. E daí? Eu também não sou, pelos meus critérios. E as bibliotecas estão cheias de Grandes Poetas cuja obra me deixa indiferente, e que não nomearei porque conheço meu gado, alguns leitores que gostam deles irão pensar que os estou chamando de burros. Não é nada disso, meus camaradas. Poesia é como mulher que passa: a gente fica olhando, uns gostam, outros não, e mesmo as unanimidades são só aparentes. Conheço gente que não gosta de Drummond, de João Cabral, de Shakespeare, de Bob Dylan. Estes especialistas na nobre arte de falar sozinho certamente tentavam, quando se debruçavam sobre o papel, escrever para seu leitor mais arguto, seu leitor mais bem informado, seu leitor mais empático e ao mesmo tempo mais elusivo. Escreviam para a outra metade de si mesmos que desconhecia aquele poema; escreviam para a pessoa que tinham sido até aquele poema começar a existir.

0494) Bush, o cyborg (19.10.2004)



O “Fantástico” de domingo passado mostrou imagens suspeitas do presidente George W. Bush durante um debate com seu opositor John Kerry, dias atrás. As imagens mostram o que parece ser um objeto quadrado escondido por dentro do paletó do presidente, bem no meio das costas. A explicação mais óbvia é de que se trata de um rádio-transmissor-receptor, que, combinado a um “ponto eletrônico” na orelha, permite ao presidente receber mensagens de seus assessores, os quais durante o debate podem lhe passar datas, estatísticas, etc., além de aconselhá-lo sobre que argumentos usar contra o adversário.

Uma boa coleção dessas fotos pode ser encontrada no saite: http://homepage.mac.com/c.shaw/BushBulges/PhotoAlbum15.html. Quem quiser se aprofundar (ver discussões, teorias, vídeos, cartuns, etc. a respeito) pode ir a este Blog: http://www.bushwired.blogspot.com/ . Americano adora descobrir possíveis provas de farsas, conspirações, “armações”. Também adora saber que até mesmo o Presidente da República prefere confiar numa “cola” fornecida por um assessor do que em sua própria capacidade de discutir argumentos.

Isto me lembrou, só que em maior escala, o mesmo episódio que critiquei aqui em 25 de setembro, “Retorno imediato”, sobre um alesado que pagou 30 mil reais aqui no Brasil por uma cola eletrônica numa prova de Direito. Entendo muito bem que às vezes é grande o desespero de um sujeito que precisa-porque-precisa passar numa prova. E entendo que o presidente dos EUA tem o mesmo grau de motivação em vencer um debate e ficar mais perto de ser reeleito. O que me causa espécie, contudo, é o enorme despreparo, ou a enorme insegurança, do sujeito que recorre a isto. Um estudante de Direito até que vai. Mas... o Homem mais Poderoso do Mundo? Eu, hein.

John Kerry, o adversário de Bush, citou num desses debates uma frase do General De Gaulle, durante a crise dos mísseis de Cuba, quando Kennedy se ofereceu para apresentar-lhe provas de que os soviéticos estavam estocando os tais mísseis na ilha. Disse De Gaulle: “Não é preciso. A palavra do presidente dos EUA é o bastante.” Perguntou Kerry: “Algum governante do mundo de hoje diria o mesmo deste Presidente?” Acho que os únicos governantes que aceitariam a palavra de Bush seriam aquele cara do Paquistão, o testa-de-ferro que eles botaram no Afeganistão, o picareta Silvio Berlusconi, e quem sabe Ariel Sharon. Até Tony Blair sairia pela tangente.

Mas não se enganem. O cargo de presidente dos EUA está sendo cada vez mais um cargo decorativo. Ronald Reagan entrou e saiu da Casa Branca sem entender direito os roteiros que lhe davam e que ele, ator sem talento mas esforçado, procurava cumprir da melhor maneira possível. Bush é ainda menos inteligente do que Reagan. Não percam tempo procurando saliências suspeitas sob seu paletó. Não é preciso. Ele funciona à base de implantes mentais, palavras-de-ordem, senhas verbais. Ele e o povo americano que vai elegê-lo de novo.

0493) Estava escrito (17.10.2004)



Albert Camus dizia que o maior problema filosófico era o suicídio. Isto é tão pouco objetivo quanto a afirmativa de Edgar Allan Poe de que o tema mais poético do mundo é a morte de uma bela mulher. 

São afirmativas tão idiossincráticas, tão pessoais, que me lembram aquela história do cara que achou numa floresta a lâmpada mágica, e quando o gênio lhe concedeu três desejos ele gritou: “Tire esse espinho do meu pé, tire esse espinho do meu pé, tire esse espinho do meu pé!” 

Quando a gente está muito concentrado num problema, não consegue pensar em outra coisa. 

Um problema filosófico que me assalta sempre é: existe Destino? As coisas “já estão escritas” de alguma forma? Me vêm à mente duas cenas do filme Lawrence da Arábia, que não revejo há muitos anos, portanto se eu falsear algum detalhe me perdoem. 

Lawrence está cruzando o deserto à frente de seu exército. Todos estão alquebrados, morrendo de sede, arriados sobre os cavalos. A certa altura ele olha em torno e não avista um dos árabes. Digamos que se chama Ahmed. “Cadê Ahmed?”, todos começam a perguntar. E avistam, lá atrás, o cavalo de Ahmed sem cavaleiro. “Vou voltar para buscá-lo,” diz Lawrence. Os árabes protestam. Não adianta; já ficou muito para trás; àquela altura, já terá morrido. “Estava escrito que Ahmed ia morrer!” gritam eles. 

Lawrence não conta conversa, dá meia-volta no cavalo, mete as esporas, e volta. Passam-se horas, ou dias, não sei. E de repente eles avistam, ao longe, um cavalo que se aproxima, com dois cavaleiros: Lawrence, com Ahmed, vivo, na garupa. Os dois estão cobertos de terra, no limite da exaustão, mas ao cair no chão Lawrence ainda tem forças para dizer: “Nada está escrito.” 

Só esta cena bastaria para fazer a fama de David Lean como diretor, um dos poucos que conseguem usar a vastidão do Cinemascope para valorizar os indivíduos, e não as meras multidões. 

Mas, mais adiante no filme, ocorre outra cena crucial. Às vésperas da batalha decisiva contra os turcos, quando é preciso um máximo de concentração para a luta, Lawrence fica sabendo que em alguma parte do acampamento está havendo um bafafá entre duas das tribos que compõem seu exército. Ele vai lá resolver o problema, e fica sabendo que um sujeito de uma tribo matou um membro da outra, e que estes querem vingança. 

Lawrence diz: “Se eu executar o assassino, vocês fazem as pazes, e combatem juntos?” Todos dizem que sim. Lawrence puxa o revólver, e manda que o criminoso seja trazido. Quando vê seu rosto, empalidece. Adivinhem quem é? Ahmed, o mesmo que ele havia salvo. O problema filosófico, aí, é: 1) matar Ahmed, e confirmar a teoria de que a morte deste “estava escrita”; 2) perdoar Ahmed, e correr o risco de jogar pelo ralo toda a campanha militar que vinha conduzindo até então. 

Não direi aqui como termina a cena; peguem o filme nas locadoras, e não se arrependerão. Mas não há dúvida de que o maior problema filosófico é: estava escrito?