quinta-feira, 16 de abril de 2009

0986) Dia das Mães (14.5.2006)




Pense num dia problemático! Nunca fui bom para escolher presentes, ainda mais para a Marquesa, como se auto-intitulava Dona Cleuza (que vários leitores desta coluna conheceram pessoalmente). Não que ela fosse complicada. Num dia como hoje, bastaria estarmos os dois, no fim da tarde, tomando café a sós na mesa da cozinha, como fizemos milhares de vezes, e bastaria que eu pegasse uma bolacha creme-craque e a estendesse para ela: “Ah, sim, quase me esqueço, tá aqui seu presente do Dia das Mães”. Ela encheria os olhos de lágrimas, empurraria a cadeira para trás, daria a volta à mesa e apertaria minha cabeça junto ao seu peito, dizendo, “Ô meu filho lindo... ô meu santo...” Era assim.

Um livro? Talvez. Algum capa-e-espada de Michel Zevaco, que líamos tanto, lá na casa da Miguel Couto; alguma aventura de Arsène Lupin... Ou quem sabe eu encontrasse uma edição antiga de Jean Christophe, um livro que ela endeusava e que nunca cheguei a ler. Depois que virou espírita, ela se concentrou em Chico Xavier, Divaldo Franco... Vivia me aconselhando um livro chamado Os Exilados de Capela, mistura de discos voadores e kardecismo, e eu argumentava: “Mãe, pelo amor de Deus, isso não tem a menor base científica...” Ela dava uma rabissaca e dizia: “Deixa pra lá. Você é cético.”

Uma jóia, um perfume? No tempo em que ela usava isto, eu era pequeno demais para comprar. Teria oito, dez anos, e olhava ela se aprontando para alguma ocasião elegante. Lembro o cheiro do perfume, o contraste violento entre os cabelos negros e a boca pintada de vermelho. Lembro as jóias; um broche de esmeraldas (que celebrei num poema), um bracelete dourado que eu sempre pensei ser de ouro maciço.

Podia ser um disco. Aí não havia dúvida: Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, o onipresente Roberto Carlos... A Marquesa adorava cantar. Adorava falar. Caririzeira (de Coxixola) até a medula, era quase uma “mamma” italiana, exuberante, barroca. Sua vida pessoal e seus sentimentos mais íntimos forneciam o teor de um monólogo a plenos pulmões que se estendia por manhãs e tardes inteiras, enquanto ela varria a casa, arrumava, fazia o almoço, lavava e estendia roupa, sempre à frente da empregada, a quem cabia apenas finalizar as tarefas.

Eu poderia dar-lhe hoje uma efígie (mais uma!) do Padre Cícero, ou um filhote de gato (mais um!) para ser criado e paparicado. Podia dar-lhe um livro de receitas, um livro de costura, um livro de bordados, para que ela passasse noites inteiras com os óculos cavalgando o nariz, destrinchando aquelas (para mim) álgebras incompreensíveis com a curiosidade de uma criança e o crivo exigente de um cientista. Podia dar-lhe qualquer coisa: uma flor, um rapa-coco, uma tartaruga (mais uma!), uma poncheira, uma sandália havaiana, dois fios do meu cabelo (um preto, outro branco). Pois é, tantas opções de presente e eu sem nada para lhe dar, tendo apenas as mãos vazias de quem durante a vida inteira só fez receber.





0985) A Propedêutica da Epistemologia (13.5.2006)




Numa fria manhã de inverno, o Budista Tibetano acordou com batidas insistentes à porta da cabana. Demorou a atender, mas quando abriu a porta sorriu ao se deparar com seu colega de juventude Wing Su Shi, a quem não via há trinta anos, e que era agora o filósofo mais respeitado da China. 

Sentaram-se na pequena sala com duas xícaras de chá fumegante, recordaram bons momentos do passado, trocaram informações sobre o paradeiro dos amigos comuns, e então Wing Su Shi contou o propósito de sua vinda.

– Atravesso uma situação difícil, ó meu velho companheiro! – disse ele. – A China inteira reverencia meus ensinamentos, estuda meus escritos, segue meus conselhos. Quando passo pelas ruas, os velhos me abençoam, e os jovens vêm pedir-me a bênção. Toda semana sou chamado ao palácio pelo Imperador, que quer minha opinião sobre assuntos de Estado. Os nobres disputam a minha atenção. Livros clássicos da Filosofia estão sendo recopiados para poder incorporar meus comentários, os quais, segundo os estudiosos, enriquecem sobremaneira os textos originais.

Vendo que o Budista Tibetano fazia uma cara de quem não vê situação difícil alguma, ele prosseguiu: 

– O problema é que eu não sou nada disto que pensam! Sou cheio de dúvidas sobre meus raciocínios, de incertezas quanto às minhas premissas. Meu conhecimento livresco é cheio de lacunas, mas eles pensam que eu tudo li, tudo assimilei. Atribuem aos meus aforismos de ocasião uma densidade metafísica que eles não comportam. Quando apareço, ficam todos na expectativa de mais uma verdade transcendental. E eu não sei de nada, não entendo de nada ! No fundo, sou uma fraude!

O Budista Tibetano deu dois tapinhas consolatórios no joelho do amigo. 

– Wing Su, estas ansiedades apenas demonstram tua honestidade e tua profunda sabedoria. Li em algum lugar que em séculos futuros serão inventados aparelhos chamados circuladores-de-ar. Nós, filósofos, somos meros circuladores de idéias. Não as fabricamos, mesmo quando as estamos exprimindo pela primeira vez. Mesmo um médico incompetente pode curar um enfermo, se receitar um remédio que lhe sirva. Quando te elogiarem, toma isto como um incentivo para que continues escrevendo e trabalhando, mas não te deixes iludir, como aliás já o fazes. Não és uma fraude. És para o conhecimento como um agricultor é para o trigo: não és seu criador, és apenas o parteiro que o trouxe ao mundo.

Wing Su Shi agradeceu efusivamente, os dois se abraçaram e o Budista Tibetano ficou olhando o amigo, montado em seu burrico, descer a trilha tortuosa que levava ao vale, ainda envolto na fria névoa matutina. 

Fechou a porta, e retornou ao quarto quente e escuro, onde sua gueixa o esperava sob as cobertas aconchegantes. 

– Quem era? – perguntou ela. 

– Um velho amigo enviado pela Providência, – disse ele. – Veio trazer-me a resposta para uma dúvida que me torturava há anos. Que os deuses abençoem sua sabedoria! 

E meteu-se embaixo do edredom.







0984) Roman à clef (12.5.2006)


(Coelho Neto)

Esta expressão (que se pronuncia “romanaclê”) significa “romance com chave”, e se aplica a certa obras literárias que usam pessoas reais ocultas sob nomes fictícios. Escritores recorrem a isto por diferentes motivos. Às vezes o cara quer descrever o espírito de uma época, os tipos humanos que a caracterizaram, e quer utilizar episódios reais; mas ao mesmo tempo quer ter liberdade suficiente para dar uma ajeitadinha nos fatos, fazer com que ocorram de uma maneira mais interessante do que realmente ocorreram; em suma, copidescar a História. Aí, em vez de um relato autobiográfico, faz um romance-com-chave onde personagens e fatos são alternadamente reais e inventados.

Um dos meus exemplos preferidos é a obra-prima A Conquista, de Coelho Neto, onde ele mostra a vida boêmia e literária do Rio de Janeiro durante a Campanha da Abolição. Alguns personagens históricos aparecem sob seu próprio nome, como José do Patrocínio. Outros, sob nomes mal disfarçados: “Otávio Bivar” é Olavo Bilac, “Paulo Neiva” é Paula Nei, e assim por diante. Outros, como “Anselmo Ribas” e “Ruy Vaz”, são pseudônimos que o próprio Coelho Neto usou na vida literária, e parecem corresponder a diferentes facetas do próprio autor.

Pode ocorrer que o autor queira fugir a eventuais processos jurídicos por estar descrevendo pessoas reais de forma pouco lisonjeira. Contar os milagres e trocar os nomes dos santos passa a ser uma manobra lícita para escapar a um processo (embora nem sempre o autor escape de vinganças por meios não-oficiais). Outras vezes, o autor faz uma alegoria totalmente distanciada da realidade que está descrevendo, mas ainda assim quer deixar claro quem é quem: um exemplo disto é A Revolução dos Bichos de George Orwell, uma sátira à Revolução Russa, onde “Napoleão” é Stálin, “Bola de Neve” é Trotsky, e assim por diante.

Autores que descrevem um ambiente social repleto de gente famosa sabem que bastam dois ou três traços para dar ao leitor a pista sobre quem é quem, como ocorre com obras como as de F. Scott Fitzgerald ou Marcel Proust. Faz parte do espírito da coisa que um “roman à clef” não dê nenhuma pista explícita sobre esse tipo de correspondência, deixando que os críticos literários e as colunas de fofocas (dois círculos que muitas vezes se interseccionam) se encarreguem de montar o quebra-cabeças.

O perigo de um “roman à clef” é permitir que este jogo de identificações e substituições se torne mais importante que a obra literária. Hoje, não precisamos saber a quem correspondem os personagens de Fitzgerald. Seus livros se sustentam sozinhos, sem o álibi da vida real para lhes conferir substância de forma indireta. Sustentam-se enquanto histórias, e seus personagens valem porque são personagens antes de serem ecos ou referências a pessoas que existiram um dia. Infelizmente, na maioria dos romances com chave, se tirarmos a chave não fica quase nada para sustentar o romance.

0983) A arte da dinamite (11.5.2006)

(Crazy Horse Memorial)

Imagino que o leitor conheça o monumento do Monte Rushmore, nos EUA, aquela imensa escultura na encosta de uma montanha, reproduzindo os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Aparece de vez em quando na TV e nas revistas; e serviu de palco para uma das seqüências de perseguição mais memoráveis do cinema americano: a dos espiões caçando Cary Grant e Eve Marie Saint, em Intriga Internacional de Alfred Hitchcock. O monumento foi construído por uma enorme equipe chefiada pelo escultor Gutzon Borglum, tendo os trabalhos começado em 1927 e terminado em 1941.

Escultores antigos trabalhavam com martelo e cinzel (um instrumento pontudo), desbastando a pedra e dando forma às figuras que tinham na imaginação. Conta-se que Michelangelo explicou assim sua famosa escultura de Moisés: “O Moisés já estava dentro do bloco de pedra, tudo que fiz foi tirar o excesso”. A escultura é uma arte refinada, a arte que nada adiciona, apenas retira. E uma arte arriscadíssima, porque se tirarmos uma lasquinha que seja a mais, não há como repor. Cada golpe do martelo, cada beliscada do cinzel são irreversíveis.

O Monte Rushmore é uma das muitas obras que transportaram este princípio básico para a grande escala e a alta tecnologia dos tempos modernos. Em vez do cinzel, usam-se cargas de dinamite. A pedra é examinada para determinar os pontos exatos de colocação das cargas e a intensidade que devem ter. O excesso bruto de rocha é retirado, e o acabamento final é feito através de picaretas, lixas, etc. Imaginem só o tamanho do problema se uma explosão mal planejada bota abaixo duas toneladas de rocha. Lá se vai o nariz de Abraham Lincoln!

Um trabalho em escala muito mais impressionante está sendo feito há décadas no Crazy Horse Memorial, erigido em homenagem a Cavalo Doido, chefe índio falecido em 1877, que liderou os Sioux na batalha de Little Big Horn, onde foram dizimadas as tropas do General Custer. O escultor é Korczak Ziolkowski, que foi assistente de Borglum no Monte Rushmore. O projeto foi encomendado pelos índios Lakota, donos das terras onde o monumento está sendo esculpido. Depois de pronta, a escultura de Cavalo Doido será a maior escultura da Terra, com 195m de comprimento e 172m de altura, mostrando o chefe índio galopando em seu cavalo. Para se ter uma idéia, todas as quatro cabeças de presidentes do Monte Rushmore caberiam no interior da cabeça desta estátua descomunal. Detalhes podem ser apreciados em : http://www.crazyhorse.org/.

Estamos vivendo uma época meio faraônica, não é mesmo? Eu admiro tudo que é grandioso, e sempre lamentei que seis das sete maravilhas do mundo antigo não tivessem resistido à passagem do tempo. Sempre achei uma ironia que o Colosso de Rodes e a estátua de Júpiter Olímpico, tão descomunais, tivessem durado menos tempo do que uma peça de Sófocles ou um poema de Píndaro. Ironias da História.

0982) A Cientologia (10.5.2006)


(L. Ron Hubbard)

A Cientologia, que no início de sua história era chamada de Dianética, é uma atividade híbrida de Ciência e Religião, inventada por um escritor de ficção científica chamado L. Ron Hubbard. Bastaria isto para torná-la um símbolo de nossa época, ou melhor, da época pós-II Guerra Mundial, quando a popularização da Psicanálise inspirou a invenção de numerosas terapias vagamente científicas, cada uma delas prometendo curas milagrosas. Vou logo avisando que minha visão da Cientologia é preconceituosa, porque ouvi falar dela pela primeira vez no formidável livro de Martin Gardner, Manias e Crendices em Nome da Ciência (que, aliás, também me deixou desconfiado para sempre com Wilhelm Reich). Se o leitor quiser a visão oficial vá em: http://www.lronhubbard.org/, ou então telefone para Tom Cruise e John Travolta, que são adeptos, e talvez conheçam o assunto melhor do que eu.

Hubbard era um sujeito ruivo, corpulento, falastrão, incansável, sempre contando aventuras mirabolantes sobre si próprio, tão divertidas que a questão de serem verídicas ou não ficava em segundo plano. Ganhava a vida escrevendo histórias de ficção científica, num longo rolo de papel (como fazia Jack Kerouac), para não perder tempo trocando de página. Traduzi dois livros seus (Gênese Negra e O Plano dos Invasores) para a Editora Record. É uma pulp-fiction interplanetária descartável, cômica, verbosa, mistura de Flash Gordon com Mel Brooks. Por justiça, afirmo aqui que sua noveleta Fear (1940) é uma das melhores histórias de terror psicológico que já li.

Reza a lenda que um dia Hubbard desabafou: “Chega de escrever FC e ganhar uma merreca! Vou inventar uma religião e ficar milionário!” No número de maio de 1950, a revista Astounding Science Fiction, da qual ele era colaborador, publicou um longo artigo sobre a Dianética, uma revolucionária técnica de auto-análise capaz (segundo ele) de curar qualquer problema psicológico, e também de desenvolver super-poderes mentais. A idéia fascinou o editor da revista, John W. Campbell, além de outros escritores como A. E. Van Vogt. A Dianética tornou-se uma febre nos EUA, seus livros viraram tremendos best-sellers.

Em 1955 Hubbard abandonou a Dianética e fundou uma religião que absorvia seus ensinamentos, a Cientologia. Diz-se que o fez para se beneficiar da isenção de impostos que as igrejas geralmente recebem dos governos. A Cientologia é muito discutida na comunidade de ficção científica porque foi a primeira religião criada por um de seus escritores, e ainda hoje se discute se isto foi uma boa coisa ou não. Surgiu nas revistas de FC, como surgiu o mito dos discos voadores como naves extra-terrestres (foi na revista Fate que Kenneth Arnold publicou em 1948 seu primeiro relato de “avistamento” dos OVNIs). Sempre existiu uma tênue linha divisória entre ficção e realidade, no mundo da FC. Com Hubbard, essa linha virou um marco plantado na zona fronteiriça entre Ficção, Ciência e Religião.

0981) O peru e a Bolívia (9.5.2006)


(Evo Morales)

Um grupo de amigos jogava pôquer num clube, mas tinha um sócio que gostava de ficar em pé, olhando as cartas de todos e dando palpite. “Pede somente uma carta, aí se vier copas você fica com um flush...” Os dias passando, o pessoal foi enchendo o saco, aí começaram a jogar buraco para ver se o peru desistia. Não adiantou. Ele continuava cercando a mesa, olhando por sobre os ombros dos outros e murmurando: “Não descarta esse 8 não, de repente isso vira uma canastra...”

Certo dia, chegaram no clube antes do cara e um deles teve uma idéia: “Vamos inventar um jogo que ele não entenda”. “Que jogo?” “Um jogo que não existe! A gente vai jogando e inventando!” Quando o peru chegou na sala, o jogo ia a todo vapor. O primeiro cara pegou uma dama, um 3 e um 5, arriou na mesa e disse: “Eu tenho um flarf! Aposto dez reais!” O segundo tirou algumas cartas do monte, arriou na mesa dois ases e dois 7, e disse: “Eu tenho um blorb! Seus dez, e mais dez!” O terceiro pegou um melé, um 2 e um 8, e disse: “Eu tenho um bong-bong! E dobro a aposta de vocês!” Aí o peru não se conteve e disse: “Tás maluco, cara? Tu quer ganhar de um flarf e de um blorb somente com um bong-bong?!”

Pois é assim que eu sou; pois é assim que eu sinto que sou, quando começo a emitir opiniões sobre assuntos herméticos e esotéricos como a desapropriação da usina da Petrobrás na Bolívia. Dou meus pitacos por esta compulsão de procurar sentido nas coisas que ocorrem à minha volta, principalmente quando elas acontecem na TV ou na primeira página dos jornais. Dito regras, teorizo, boto banca, mas em última análise os fatos históricos são um código ininteligível, é como assistir um filme japonês com legendas em búlgaro.

Um colunista é uma espécie de peru remunerado. Ele julga ser obrigação sua dar palpites sobre jogos cujas regras ele não entende. Que idéia posso ter das manobras de bastidores, dos telefonemas cifrados à meia-noite, dos jogos de poder regional, das prevaricações jurídicas, do xadrez de pequenas conspirações diplomáticas entre a direita e a esquerda da América Latina, das pressões de Havana e de Washington, e de tudo mais que resulta no gesto simbólico de Evo Morales, fazendo com as empresas de Lula o que Lula insinuou que ia fazer com as empresas de Bush? Muito bem feito! A Petrobrás não é o Brasil; é uma corporação em busca de lucros, como são o MacDonald’s, a Coca-Cola, a Microsoft de Bill Gates e a Halliburton de Dick Cheney. Ou será que é dela que devemos nos compadecer, e não dos pobres índios bolivianos, desnutridos e analfabetos? Afinal é “nossa” Petrobrás, nossa BR, que patrocina a Fórmula-1 e o futebol, que financia teatros e festivais de cinema! Que reviravolta foi essa nas regras do jogo? Ou será que a primeira reviravolta foi o que Lula deixou de fazer depois da posse? E quem diabo é esse Evo Morales, que quer ganhar de um flarf e de um blorb somente com um bong-bong?!

0980) Zinedine Zidane (7.5.2006)



Ele já foi por três vezes eleito como o Melhor Jogador do Mundo, e dias atrás anunciou que vai deixar o futebol. O empobrecimento artístico deste esporte tem sido tão terrível nos últimos anos (pelo menos para quem vive no Rio de Janeiro) que nosso consolo é ligar a TV a cabo e assistir o futebol europeu. Dou graças por ter podido acompanhar, nas últimas décadas, artistas que para os adolescentes de hoje não passam de meros nomes, ou até nem isso. Quem se lembra de Van Baasten, de Platini, de Rumenigge, de Boniek, de Zoff, de Roger Milla? Nomes que passam.

Outro nome que começa a passar é o de Zinedine Zidane, que com duas cabeçadas mortais nocauteou o Brasil na decisão da Copa de 1998, mesmo descontando-se o fato de que nossa Seleção já entrou em campo de pernas bambas, devido ao controvertido episódio da convulsão de Ronaldo no dia do jogo. Zidane foi o nome daquela Copa, e nos anos seguintes, jogando no Juventus e no Real Madrid, elevou o nível de expectativa e de gratificação de cada jogo de que participou. As pessoas iam a campo ou ligavam a TV simplesmente porque sabiam que ele ia jogar naquele dia; e depois dos 90 minutos retiravam-se dali cheias de gratidão e maravilhamento com o que tinham presenciado.

Zidane é um desses jogadores altos, magros, que parecem levemente desengonçados e meio duros de cintura; algo nele me lembra o nosso “Doutor” Sócrates ou seu irmão Raí, não tão magro mas dando igualmente a impressão de ser volumoso demais, desproporcional à bola. Com suas pernas longas e seu passo cadenciado, Zidane tem algo de gafanhoto, e nas primeiras vezes em que o vi jogar, na tal Copa de 1998, eu sempre era surpreendido pela facilidade com que ele dominava a bola, corria com ela, ou chutava de primeira. Pelo jeitão dele, eu sempre achava que ele não ia conseguir.

Sua facilidade em dominar a bola é impressionante, e creio que tem algo a ver com a mobilidade do tornozelo: a perna não muda muito de posição quando ele a projeta, mas a bola é recebida com uma maciez de mão estendida em concha. O mesmo recurso permite-lhe bater na bola com uma precisão sempre surpreendente, seja para executar um passe de trinta metros, seja para colocar a bola, com uma rosca venenosa, no derradeiro cantinho fora do alcance do goleiro, o qual, coitado, sai catando tostões em desespero, e mesmo quando consegue tocá-la com as pontas dos dedos é apenas para ajudá-la a se encaçapar nas redes.

Li uma vez um jornalista comentar dois gols decisivos marcados por Zidane em duas finais de campeonatos europeus: dois chutes violentíssimos em que ele emendou de primeira uma bola cruzada quase à altura de sua cabeça. O jornalista perguntou-lhe se os dois gols tinham sido idênticos, e ele respondeu, meio encabulado, que não: um fora de perna esquerda, o outro de direita. Os deuses do futebol deram aos seus pés as asas de Hermes ou Mercúrio. Com elas ele voou longe, e nos levou numa viagem de Arte e Beleza. Valeu.

0979) O vórtice da destruição (6.5.2006)




Numa manhã de 1980, um grupo de homens trabalhava numa plataforma de petróleo no centro de um lago, quando algo estranho começou a acontecer. Eles perfuravam o fundo do lago em busca de um lençol petrolífero, quando a rocha pareceu ceder de vez, e a plataforma onde estavam começou a balançar e inclinar-se. Vendo que algo tinha dado errado, trataram de sair dali. 

O lago, apesar de extenso, tinha apenas quatro metros de profundidade média, e a perfuração deles já tinha atingido 400 metros abaixo da superfície. Os técnicos mal tiveram tempo de chegar à margem quando viram a plataforma inteira emborcar e desaparecer... num lago que não devia ter mais que alguns metros de profundidade.

Logo um enorme redemoinho se formou no centro do lago, sugando toda a água em volta. E alguém percebeu o que tinha ocorrido. Por baixo do lago havia uma mina de sal, e por um absurdo erro de cálculo a perfuração tinha atingido o teto de uma das cavernas subterrâneas. 

Para encurtar a história: toda a água do lago começou a se escoar pela abertura, que ia se alargando à medida que o sal era dissolvido, e os túneis onde trabalhavam mais de 50 mineiros estavam sendo rapidamente alagados.

O redemoinho arrastou balsas, barcos, árvores, um estacionamento próximo à margem. Sua sucção foi tão forte que reverteu o curso de um canal com 15 km que fluía rumo ao Golfo do México. 

O acidente conhecido como “O Desastre do Lago Peigneur” ocorreu na Lousiana; não deixou vítimas fatais, embora mais de 3 bilhões de galões de água tenha “descido pelo ralo”, por uma abertura onde a água se despejava numa cachoeira de 20 metros de altura, alagando por completo a mina de sal. (Por sorte os mineiros tiveram tempo de correr para os elevadores e voltar à superfície). 

O lago passou a ser alimentado pelo canal, que trouxe água salgada do Golfo do México. Depois que a caverna se encheu, o lago de água doce com 4 metros de profundidade virou um lago de água salgada com 400 metros. A mina foi fechada, e a Texaco (que perfurava o poço) pagou cerca de 45 milhões de dólares em indenizações.

Moral da história? Não sei, caro leitor. Quando leio histórias assim (http://www.damninteresting.com/?p=6), sinto um impulso messiânico de falar mal do capitalismo, da destruição predatória do meio ambiente, da sede insaciável da indústria automobilística implorando mais e mais galões de gasolina. 

Mas não quero colorir este episódio com o spray melodramático da condenação moral. Prefiro ver algo de kafkeano nesta pequena alegoria de dois grupos de técnicos, instruídos pela ciência e amparados pela tecnologia. Uns extraem sal, outros extraem petróleo, trabalhando lado a lado, roendo as entranhas da terra como cupins sindicalizados, as mãos cheias de mapas, plantas, levantamentos topográficos, mas alheios uns aos outros. E lá em cima do morro um matuto roendo um talo de muçambê, observando tudo e pensando: “Um dia vai dar merda”. Apois não deu?