quarta-feira, 25 de julho de 2018

4370) Os inimigos da Memória (25.7.2018)




(Palácio Monroe, Rio de Janeiro)

Muitos episódios recentes na Paraíba e no Brasil me levam a pensar nas pessoas que destroem nosso patrimônio cultural, que roubam obras de arte para vender, que deixam tesouros históricos se estragarem. Quem são essas pessoas? Por que fazem isto? Decidi tentar agrupá-las em algumas categorias.

Existe, por exemplo, o *Lucrador Predatório*. É uma figura típica do capitalismo selvagem que se alastra pelo Brasil como uma impingem fora de controle. O Capitalismo Selvagem é um processo que age às cegas, visando apenas o próprio lucro, cada vez maior, cada vez mais rápido. É diferente do Capitalismo Civilizado, que lucra, produz, enriquece os acionistas, mas ao mesmo tempo se preocupa com questões sociais, patrocina as artes, protege o meio ambiente, trata bem os operários.

O Capitalismo Civilizado é prudente, pensa no futuro, faz as coisas com a intenção de continuar existindo e faturando por séculos a fio. O Capitalismo Selvagem não: é um inseto predatório, que quer devorar tudo que aparece à sua frente, e no menor espaço de tempo possível. Destrói tudo que há à sua volta, e com isto acaba destruindo a si mesmo. Se o deixarem à solta, em 50 anos ele transforma a Amazônia no deserto do Saara, e morre de fome e sede.

O *Lucrador Predatório* é o cara que bota abaixo o prédio onde um jornal funcionou por 50 anos e faz ali uma farmácia. É o cara que está fazendo um filme e para filmar uma cena manda serrar uma árvore que já estava ali quando Pedro Álvares Cabral chegou em Porto Seguro. É o cara que derruba um chafariz do século 18 para construir uma garagem para sua camionete.

Ele não tem nada específico contra o patrimônio, contra a memória, a não ser quando eles prejudicam seus interesses. Ele é como um gafanhoto: quer apenas devorar o que aparece à sua frente.



(Castelo da Prata, Campina Grande)

Um tipo menos sinistro mais igualmente ameaçador é o *Modernizador Angustiado*. Este, quando destrói alguma coisa antiga, sabe muito bem o que está fazendo, e faz de propósito. Mas ele faz movido pelo que considera uma boa intenção.

Em geral ele foi criado numa comunidade muito conservadora, retrógrada, de mentalidade imobilista. No mundo em que ele cresceu, coisas novas eram vistas com suspeita. Todo mundo tinha que fazer as coisas exatamente como seus pais e avós tinham feito. Havia padrões eternos de comportamento a serem seguidos sem discussão.

Quando esse indivíduo fica adulto, ou consegue algum tipo de poder, ele começa a combater essa força repressora que o angustiou durante a vida inteira. Ele está tomado de ressentimento contra tudo que é velho, tudo que é arcaico, tudo que representa o passado. Ele se deixou seduzir pelas coisas novas e modernas que viu pelo mundo, ou das quais ouviu falar. Ele quer fazer com que estas coisas novas tenham uma chance; quer trazer um pouco de ar puro àquele ambiente tão asfixiado pelo passado, pela eterna repetição das mesmas coisas.

E nesse impulso ele começa a combater tudo que parece velharia. Não adianta dizer que tem valor histórico. Para o Modernizador Angustiado, o mundo já tem História demais, Passado demais. Ele é um fanático pelo futuro, e para impor o que ele acha ser o futuro é capaz de implodir a Catedral de Notre Dame ou de aterrar os canais de Veneza.



(Casa Navio, Recife)

Um terceiro tipo, muito curioso, é o *Desinformado Catastrófico*. Ele destrói sem saber que está destruindo. Muitas vezes por não ter tido educação, por não ter acesso a informações, ou apenas porque não prestou muita atenção no que estava fazendo.

É o sujeito que assume uma repartição e manda jogar no lixo aquelas caixas e caixas de papéis velhos “que só servem para ocupar espaço”. É a turma que vai fazer acampamento num parque florestal, acende um fogo para fazer café, e destrói não sei quantos mil hectares de Mata Atlântica, num incêndio que precisa de mil bombeiros para ser contido. É o síndico que não gosta de um mural e manda arrancar todos os ladrilhos, sem perguntar quem fêz aquilo ou quando.

O *Desinformado Catastrófico* fica compreensivelmente magoado quando a imprensa e as entidades civis caem de pau em cima dele, como se ele fosse um criminoso. Ele não se considera um criminoso. Os delitos que pratica não são dolosos (com intenção de prejudicar), mas são culposos, porque prejudicam.

Existem muitos outros tipos, mas acho que por enquanto bastam estes para dar uma idéia do quanto este problema é complicado. Um erro freqüente da imprensa e dos órgãos de proteção ambiental é não distinguir muito bem quem causou o prejuízo ao Patrimônio Histórico e por quê.

Existe gente que precisa de esclarecimento, de informação; gente bem intencionada mas que errou porque não avaliou bem o que estava fazendo. E existe gente mal-intencionada mesmo, que sabia muito bem o que fazia, e que precisa pegar uma boa punição para não fazer de novo.

Gostaria de lembrar também, nestas poucas linhas, que quando a gente protege um casarão antigo, um documento com séculos de idade ou um trecho do meio ambiente não faz isto apenas por amor ao Passado. É também por amor ao Futuro.

O Futuro, as gerações futuras, nossos filhos e netos, precisam conhecer o mundo em que viverão, e isto inclui conhecer aqueles objetos ou espaços que tiveram uma significação especial nos tempos já vividos por outras pessoas. É possível fazer coexistirem o amor pelo Novo e o amor pelo Antigo. Que melhor exemplo disto do que as cidades da Europa e da Ásia, onde se encontram casas com séculos de idade, ruínas com milhares de anos ao lado de arranha-céus modernos?



(Cine Metrópole, Belo Horizonte)

Li certa vez uma entrevista de um escritor onde ele dizia ter visitado um moderníssimo prédio de escritórios em Londres. No andar térreo havia um saguão imenso, com uns 20 metros de altura, onde centenas de pessoas andavam em todas as direções, pegavam elevadores, etc.

No meio desse saguão, havia uma pequena capela dentro da qual cabiam talvez uns 15 pessoas. Era uma capela do século 10, construída pelos antigos habitantes daquela colina. Quando o edifício foi construído, o projeto, em vez de derrubar a capela, procurou restaurá-la e protegê-la, construindo em volta dela aquele saguão enorme.

E quando se entrava na capela, havia uma abertura no solo, que dava para uma escada de pedra, por onde se descia até as ruínas de um templo romano, muitos séculos mais antigo que a capela, que ficava por baixo dela.

Nessa imagem (edifício de 1980, capela do ano 900, templo romano de antes de Cristo) está sintetizada a noção do tempo histórico que podemos experimentar. Na História, o Novo não precisa necessariamente destruir o Antigo. Relíquias de diferentes épocas podem existir lado a lado. É só saber. É só cuidar. É só lutar para que alguém não destrua, seja por cobiça, por maldade, por descaso ou por mera desinformação.


(Uma primeira versão deste texto foi publicada no livro A Cadeia Velha de Pombal – Manifesto em Defesa do Patrimônio Histórico, org. José Tavares de Araújo Neto e Werneck Abrantes de Sousa / Pombal: 2004)