sábado, 3 de maio de 2014

3489) Policial existencialista (3.5.2014)



Albert Camus afirmou que, ao escrever o clássico O Estrangeiro (1942) estava tentando escrever um daqueles romances de crime-norte-americanos que gostava de ler, e que ficaram conhecidos como “roman noir” (batizando depois o gênero cinematográfico do “film noir”), devido a uma famosa coleção francesa de capas pretas.  Para alguns puristas pode parecer uma heresia a noção de que o Filósofo do Absurdo estava querendo imitar autores como Dashiell Hammett, mas o Romance Policial Existencialista, gênero que acabo de batizar neste momento histórico, tem raiz nesse curioso movimento de trocas culturais entre EUA e França.

O movimento se dá mais ou menos assim: a cultura popular dos EUA produz alguma coisa que faz relativo sucesso em seu país mas é esnobada pelos intelectuais. Algum tempo depois, intelectuais franceses descobrem aquilo, maravilham-se, e começam a imitá-lo ou dedicar-lhe exegeses. Com esse súbito acesso de respeitabilidade, geralmente a obra original passa a ser vista com mais atenção no país de origem. Cineastas como Samuel Fuller e Jerry Lewis são muito mais respeitados na França do que em sua terra. Edgar Allan Poe talvez tivesse sumido no submundo da literatura de gênero se não fosse Baudelaire. E o romance de crime ganhou esse verniz existencialista graças a praticantes como o próprio Camus, Alain Robbe-Grillet etc.

O romance policial, além do lado de enigma e mistério, tem um lado “social”, de mostrar o que existe por baixo do tapete da civilização.  E pode ser também a grande literatura trágica do nosso tempo, porque nada melhor do que o crime para exprimir a tragédia humana.  A tragédia da civilização fora-dos-eixos, da vida que não deu certo, dos destinos individuais presos na teia dos acasos, fatalidades e outros ingredientes da tragédia grega. Alguns tentam fazer isso recheando seus enredos com reflexões filosóficas.

Se de fato considerarmos O Estrangeiro (que poderia ter se chamado “O Estranhamento”, no sentido brechtiano de “ver as coisas pelo lado de fora”) como a grande obra do gênero, juntamente com Crime e Castigo de Dostoiévski, é pela sua disposição de não comentar nada, não explicar nada, não fazer notas de pé de página direcionando ideologicamente a tragédia que estava narrando. Apenas os fatos nus e crus, contados no tom de voz monocórdio de quem se lembra de absolutamente tudo mas não caiu-a-ficha de absolutamente nada. Assim como a história de Édipo é a tragédia do Destino (tudo estava escrito; é impossível escapar), a de Meursault é a tragédia do Acaso: nada está escrito, tudo está sendo criado a cada momento, e é impossível escapar.