quarta-feira, 6 de março de 2019

4442) Como desperdiçar o Poder (6.3.2019)


(general Tom Thumb, 1838-1883)

O Poder é uma coisa engraçada. Quando a gente está por baixo, lascado, sem soluções, sem alternativas, a gente costuma se lamentar: “Ah, se eu ganhasse a Mega-Sena!...”

Não peça isso. Seria a pior coisa que poderia lhe acontecer. Não existe coisa mais perigosa do que o Poder nas mãos de quem não sabe usá-lo.

Uma vez, quando eu era redator de humor, escrevi um quadro com um personagem pobre chegando para um amigo rico e mostrando os volantes da Mega-Sena, em que tinha acabado de apostar. Quando ele se afasta, o amigo comenta: “Não sei pra quê pobre joga tanto na loteria. Se pobre tivesse sorte, nascia rico.”

É cruel, mas é psicologicamente verdadeiro. As pessoas pensam assim.

O Poder (dizem os Poderosos, os Capitanistas Hereditários) é pra quem está pronto para exercê-lo em sua plenitude.  Pra quem é preparado. Pra quem estudou. Pra quem tem “berço”. Pra quem foi criado num ambiente em que os meandros do Poder eram discutidos de modo até casual no café da manhã, no almoço, no jantar.

E de certa forma estão certos, porque o aprendizado do Poder é longo e espinhoso, é sempre feito às custas do pobre estudante. Não é pra quem quer, é pra quem pode.


Que o diga o mago Ged, da Trilogia de Terramar, de Ursula Le Guin, que teve de carregar pelo resto da vida uma cicatriz enorme no rosto, resultado de uma bazófia imprudente na adolescência. Ele quis mostrar que era o poderosão e desencadeou uma magia sinistra que quase o leva embora. (Pagou um preço alto. Não morreu; quem morreu foi o mago, seu professor, que conseguiu salvar-lhe a vida.)

O Poder nas mãos de um despreparado é sempre um desperdício. É exatamente por isso que os Poderosos: 1) tentam manter os despreparados longe do Poder; 2) tentam evitar que alguém se prepare e possa concorrer com eles próprios.

Uma pessoa despreparada não sabe o que fazer com uma bomba atômica, com um milhão de dólares, com uma Ferrari novinha em folha, com uma Miss Universo, com uma mansão de 99 quartos.

Todos sonham com isso, ou afirmam sonhar. No dia que conseguem, botam tudo a perder, porque não conseguem enxergar muito longe do próprio nariz.

É como aquela história do cara que se perde no bosque, descalço. A certa altura ele enterra o calcanhar num espinho e o espinho tora dentro. Ele sai mancando e chorando pelo mato afora. Dias depois, acha a Lâmpada de Aladim jogada por entre as moitas. Esfrega, o Gênio aparece e lhe diz: “Você tem direito a três pedidos.” E ele grita: “Tira esse espim do meu pé! Tira esse espim do meu pé! Tira esse espim do meu pé!”.

O Poder é patético quando colocado em mãos aflitas, impacientes, despreparadas. É o bêbado ao volante, a criança com um 38 carregado, o craque sub-20 comandando uma mesa de 20 pessoas na boate. Pode até não resultar em desastre, mas quando resulta ninguém se admira.

Por falar em nariz, isso me lembra uma cena de um dos filmes da minha infância, o musical O Pequeno Polegar (“Tom Thumb”, George Pal, 1958, com Russ Tamblyn, Peter Sellers e Terry Thomas).


Um casal de lenhadores encontra na floresta a Rainha das Fadas, que lhes concede três desejos. Eles voltam para casa e começam a discutir. Vamos pedir isso, vamos pedir aquilo; vamos pedir uma casa nova, dinheiro, um castelo...

– Você não sabe o que pedir – diz o marido.

– Você vai estragar tudo – diz a mulher.

– Vamos fazer assim – diz ele. – Eu faço um pedido, você faz outro.

– Comece – diz ela.

– Eu quero uma salsicha DESSE tamanho – diz ele.

Tóinnnnn...  Uma salsicha enorme aparece em cima da mesa, e a esposa se desespera.

– Como você é burro ! Estragou o primeiro pedido! Podia ter pedido uma casa nova, tanta coisa... Ai, eu casei com idiota. Só queria que essa salsicha ficasse pendurada no seu nariz, seu bobão!

Tóinnnnn... A salsicha magicamente substitui o nariz do sujeito. Aí são os dois que se desesperam, se acusam mutuamente, se ofendem... Mas não tem jeito: o terceiro pedido é para que a salsicha desapareça e o nariz dele volte ao normal. E assim os três pedidos são jogados pela janela.


A cena não foi inventada pelo filme, claro. É uma função narrativa Proppiana ou Stith-Thompsoniana, que vem há séculos adquirindo novas formas. Sua estrutura é basicamente essa:

1)      Alguém conquista um poder imenso, mas de uso limitado.
2)      Usa esse poder, num primeiro arranco, para realizar as próprias fantasias, o que resulta numa situação de caos, colocando o próprio indivíduo em risco.
3)      O que resta do poder é consumido para “apagar incêndios”, ao invés de produzir qualquer melhora na situação anterior.

Claro que o Poder é um Fenômeno Complexo, não se resume a esse aspecto específico. Mas depois não digam que eu não avisei.