quarta-feira, 11 de março de 2020

4558) Primeiras Estórias: "Famigerado" (11.3.2020)






“Famigerado” é o segundo conto do livro Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa. Como já andei comentando por aqui, este livro foi montado pelo autor a partir de contos que ele publicou no jornal O Globo ao longo do ano de 1961.

Contos publicados numa página fixa na imprensa geralmente recebem um tamanho padrão. Ficam todos com uma extensão mais ou menos a mesma, e é isso que ocorre com muitos contos deste livro.

No curto espaço de oito páginas (a média dos contos de Primeiras Estórias) deverá, portanto, caber tanto uma história que aconteça ao longo de anos quanto uma que decorre em poucos minutos.

É o caso de “Famigerado”. O conto é narrado em primeira pessoa e se inscreve numa lista de textos que resultam, imagino, das vivências de Rosa como médico do interior, e dos “cáusos” que ele escutava dos capiaus dali. Claro que pode ser tudo invenção, mas como sabemos da mania anotativa do autor e suas prodigiosas cadernetinhas, vale supor que alguma coisa do conto lhe aconteceu.

O narrador começa descrevendo a chegada, à sua casa, de um grupo a cavalo, no qual um indivíduo se destaca, aproxima-se, puxa conversa. E o narrador diz, a certa altura:

Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela – decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta.

Ser médico no interior coloca um indivíduo como o receptor de estórias, queixas, perguntas, fofocas, todo o varejo de informações que circula por um povoado, e do qual o médico rapidamente se torna um escoadouro natural. A ele tudo se pergunta, tudo se conta.

Outras estórias roseanas, como “Corpo Fechado” (Sagarana), derivam visivelmente dessa condição do autor, de ter sido uma espécie de ouvidor geral do vilarejo. O Doutor vira interpretador dos fatos, trazedor de notícias, aconselhador, avalista de opiniões. E dicionário, também.

Todo o episódio das quatro páginas e meia do conto resume-se a isto: Damázio, um pistoleiro temido naquela região, ouviu dizer que um “rapaz do governo”, recém-chegado naquelas bandas, o chamara de “famigerado”. Sem saber do que se tratava, resolveu pegar o cavalo e ir ao vilarejo perguntar ao Doutor.

O Doutor, suando frio, garante ao valentão que está tudo bem:

Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”... (...) É “importante”, que merece louvor, respeito... (...)  [O] que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!

A resposta dele não apenas sossega o pistoleiro, como dá-lhe um polimento na vaidade, e ele agradece ao médico, elogiando-o:

“Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!”

Isso é um conto? Eu diria que é um daqueles episódios pitorescos de linguajar matuto que Leonardo Mota matava em uma dúzia de linhas. É uma anedota, um “cáuso” – palavra, aliás, de jurisdição mais mineira e paulista do que nordestina; nordestino nenhum diz que vai contar um “cáuso”.

Guimarães Rosa tira um belo copo de leite dessa pedra aparentemente invulnerável. Alguns detalhes são bem saborosos: o primeiro deles é que Damázio não chega sozinho, mas acompanhado de três outros cavaleiros que durante o diálogo ficam meio de banda, e parecem contrafeitos:

Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos – coagidos, sim.

Não tarda que o Doutor perceba: são três pobres coitados que Damázio, sabendo que sua honra parece estar sendo ameaçada por uma palavra perigosa, trouxe ali sob ameaças, como testemunhas, para que escutassem a definição a ser dada pelo Doutor. Resolvida a questão, o jagunço autoriza:

Satisfez aqueles três: “-- Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...”

Logo nos primeiros parágrafos do conto, Guimarães Rosa usa um curioso efeito cuja origem não sei, mas lembro ter lido muitos anos atrás algum comentário dizendo que se trata de um efeito linguístico de algum idioma africano.

Ele diz:

O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo.

E mais adiante:

O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O.

Acredito ter lido que essa repetição de uma partícula, nesse formato A–B–A, corresponde, em alguma língua, a um efeito de reforço, de intensidade. Como que colocando a palavra central entre aspas, entre parênteses, entre book-ends.


Lembro disso porque associo esse formato com um clássico da ficção científica "B", Ortog (“Aux Armes d’Ortog”, 1960), de Kurt Steiner, uma FC misturada com espada-e-feitiçaria. O herói chama-se Dâl Ortog e, depois de uma série de aventuras, e de ser submetido a testes de coragem e de habilidade, ele conquista o que lá no universo deles equivale mais ou menos ao título de cavaleiro. E passa a se chamar Dâl Ortog Dâl.

Não deve ser invenção de Kurt Steiner (cujo verdadeiro nome, aliás, é André Ruellan). Desde que comecei a escutar as canções de Gilberto Gil sempre me admirei da simetria do nome do poeta (“Gil Berto Gil”), e semi-conscientemente considerei que ele seria um cavaleiro espacial da mesma categoria heráldica de Dâl Ortog Dâl.



Quando Gil lançou em 1982 o álbum Um Banda Um, essa sensação ficou mais forte, e acabou se reforçando mais ainda quando, pouco tempo depois, lá por 1989, o grande Jorge Ben trocou seu nome artístico para Jorge Ben Jor (=Jor Geben Jor). Os exércitos de Ortog desfraldavam seus estandartes ao sol, famigerados.