domingo, 27 de junho de 2021

4718) O padre Camilo e o comunista Peppone (27.6.2021)



(Don Camilo e Peppone - estátuas em Brescello, Itália)
 
“Fernandel” era um ator franco-italiano de muito sucesso nos anos 1950. Era um cara grandalhão, magro mas espadaúdo, com uma cara comprida, olhos enormes, rosto feioso mas expressivo, cheio de caretas que lhe fizeram a fama. Não era apenas um careteiro. Era um ator de recursos simples mas bem administrados, e também se saía bem nos momentos emotivos e dramáticos.
 
Fernandel era o astro da série Don Camilo, uma série de meia dúzia de filmes dirigidos por Julien Duvivier, diretor francês daquela faixa que os críticos de cinema qualificam como “um artesão competente”. A série se chamava mesmo “Don Camilo e Peppone”, personagens criados nos anos 1940 por Giovanni Guareschi em livros de contos curtos, bem encadeados, que se tornaram um enorme sucesso de vendas na Itália, sendo traduzidos em vários países e por fim levados ao cinema.


(O escritor Giovanni Guareschi, com Fernandel) 
 
Do que trata a série? É a história de uma cidadezinha fictícia no interior da Itália, Bassa, onde vivem esses dois amigos-inimigos, dois homens parecidos em campos opostos: o padre católico Don Camilo e o prefeito comunista Peppone. (No cinema, são Fernandel e Gino Cervi nesses papéis.) Adversários ideológicos inconciliáveis, cada um faz o que pode para ser a pedra no sapato do outro. Brigam, encolerizam-se, batem boca diante de toda a cidade, mas na hora em que um está em apuros, pode contar com o outro. (Não sem ironia; não sem piadas.)

O filme no YouTube:

Vi agora no YouTube (está lá, com legendas em português) A Volta de Don Camilo (1953), em que Duvivier conta as aventuras e trapalhadas desta dupla de personagens meio ingênuos, meio cínicos, que têm algo de nordestinos embora sejam (como diria um crítico de cinema) “visceralmente peninsulares”.
 
Há um aspecto das aventuras de Don Camilo que sempre achei simpático. Ele conversa com Jesus Cristo, o Jesus que está no crucifixo do altar principal de sua igrejinha. Ele pergunta, e Jesus responde, ou vice-versa. Sempre quando estão a sós, é claro, para que ninguém pense que o padre da cidade está ficando doido.


E uma coisa que sempre simpatizei quando comecei a ler os livros de Guareschi foi que nesses livros Jesus Cristo falava como uma pessoa. Já li (já tentei ler) muito livro religioso. Toda vez que Jesus abre a boca, vem um sermão, vem uma retórica de seminário propedêutico, vem uma lição de moral. O Jesus de Guareschi era (pelo menos aos meus dez ou doze anos) um raio de coloquialismo e de bom senso no meio daquele dôminos-vobisco todo.
 
No primeiro conto-capítulo de O Regresso de Don Camilo (Difel/Bertrand, 1953, trad. A. Dias da Costa), a gente já vê esse diálogo:
 
Don Camilo ergueu os olhos para o Cristo do Altar-Mor e disse:
– Quanta coisa há no mundo fora dos eixos!
– Não concordo – respondeu Jesus. – No mundo, à parte os homens, tudo está perfeitamente certo.
Don Camilo deu uns passos para baixo e para cima e parou em frente do altar.
– Jesus, se eu contar um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, e continuar contando sempre durante um milhão de anos, chegarei ao fim?
– Não – respondeu Jesus. – Procedendo assim, serias como um homem que, tendo traçado na terra um círculo, começasse a andar em volta dele, dizendo: “sempre quero ver quando chego ao fim”. Claro que nunca chegaria.
 
Essa conversa desse Cristo não tinha nada a ver com as conversas religiosas que eu ouvia na época. Simpatizei com ele porque era na linha de O Livro da Natureza de Fritz Kahn ou O Universo e o dr. Einstein de Lincoln Barnett, onde eu lia: “O universo, apesar de finito, não tem limites.” Como os números. Como o círculo. 


(Gino Cervi, como Peppone) 
 
Do lado oposto desse pequeno mundo, está o prefeito Peppone e seu bigodão stalinista, parecido com o de certos coronéis sertanejos que eu conheço. Peppone se esforça para ser um obediente operário do Partido, mas as complicações de administrar uma cidade de verdade sabotam suas teorias o tempo todo. Ele é uma dessas figuras meio trapalhonas, meio solenes, que tendo chegado ao poder descobre o quanto é bom ser oposição e não ter que resolver um milhão de pepinos trabalhistas, sanitários, financeiros, policiais e meteorológicos.
 
Os dois esbravejam um contra o outro, mas volta e meia Peppone chega na igreja à sorrelfa, agarrando o chapéu com as mãos, pedindo a Don Camilo que quebre um galho com um paroquiano qualquer. Volta e meia Don Camilo vai à casa do prefeito, cumprimenta a esposa, toma um café e pede ao comunista que “pegue leve” em tal ou tal assunto que está lhe trazendo problemas.
 
Uma coisa interessante na literatura (na narrativa, em geral) é quando temos dois personagens amigos-inimigos. Não é qualquer dupla dialética que se encaixa nessa condição. Duplas famosas como Sherlock Holmes & Watson, Don Quixote & Sancho Pança, têm a sua dinâmica de aproximações e repulsas, mas não pertencem a grupos antagônicos.
 
As comédias despretensiosas de Don Camilo e Peppone podem parecer um pouco ingênuas e datadas, numa época em que religião e política vivem mais uma vez na base do risca-faca. As mil e uma trapalhadas em que cada um dos dois se mete por causa do outro mostram esse jogo de atrações e repulsões. Nessas histórias, dois indivíduos simples, sem grandes sofisticações teóricas, vindos basicamente do povo, e cheios de boas intenções, precisam manter fidelidade aos princípios de uma ideologia que defendem, e ao mesmo tempo manter-se fiéis aos próprios valores pessoais.
 
Quem quiser um nível mais aprofundado dessa discussão pode consultar o livro Em que creem os que não creem?, onde em vez de Don Camilo e Peppone temos a erudita discussão entre o Cardeal Carlo Maria Martini e o romancista Umberto Eco. E que comentei aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/08/1212-crenca-de-quem-nao-cre-3112007.html