terça-feira, 11 de setembro de 2018

4384) Lamentos sertanejos (11.9.2018)




“Ó Deus, perdoe esse  pobre coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar”.

Esta é a “Súplica Cearense”, de Gordurinha, gravada por Ari Lobo.


Essa música é um clássico de um tipo de canção nordestina que alguns chamam de protesto, mas eu acho que “protesto” é um guarda-chuva amplo demais, cabe desde certas litanias de Bob Dylan até o Faces do Subúrbio ou Mano Brown.

Poderíamos chamar esse gênero de queixume nordestino, com a desvantagem de que queixume parece a muitas pessoas uma palavra apequenadora, quando não é essa a intenção.

Lamento seria melhor; um lamento sertanejo, como o de Dominguinhos e Gilberto Gil: “Por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, / lá do interior, do mato, / da caatinga, do roçado...”

Considerado como subgênero, podemos pendurar aí títulos como “Meu Cariri” e “Aquarela Nordestina” de Rosil Cavalcanti; “Triste Partida” de Patativa do Assaré, com Luís Gonzaga; “Acauã” de Gonzaga.

Mas a súplica do nordestino daquele canção inicial de Gordurinha não é a súplica de um mero desgraçado. Acaba sendo na verdade uma intimação. Um questionamento feito a Deus pelo nordestino, cara a cara, sem intermediários. O tête-à-tête é respeitoso, mas altivo. “Meu Deus, se eu não rezei direito o senhor me perdoe, eu acho que a culpa foi – desse pobre que nem sabe fazer oração...” 

Existe um sarcasmo impotente nessa auto-depreciação diante do monarca. Não é um apequenamento. É a polidez do herói de cordel, respeitoso, chapéu apoiado ao peito, questionando diplomaticamente o Dono do Mundo na presença de toda a sua corte de vizires.

Sim que o “ai ai meu Deus, tenha pena do Nordeste” da “Aquarela Nordestina” acaba se revelando um gemido mesmo, mas a variedade de tons e de filosofias nessas letras mostra que não se trata de se queixar da vida. Em sua maior parte, essas canções são painéis visuais, panorâmicas vagarosas. Numa paisagem visualmente perfeita como a da letra de Rosil Cavalcanti:


No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.
Juriti não suspira, inhambu seu canto encerra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.

Acauã bem do alto do pau-ferro canta forte
como que reclamando nossa falta de sorte.
Asa branca sedenta vai chegando na bebida;
não tem água a lagoa – já está ressequida.

Ou então um retrato de uma pequena odisséia social nos versos de Patativa do Assaré em "Triste Partida":


(...)
O carro já corre no topo da serra
olhando pra terra seu berço, seu lar,
aquele nortista partido de pena
de longe ele acena, adeus meu lugar...

No dia seguinte já tudo enfadado
e o carro embalado veloz a correr,
tão triste coitado falando saudoso
um seu filho choroso exclama a dizer:

– De pena e saudade papai sei que morro,
meu pobre cachorro quem dá de comer?
Já outro pergunta: – Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato, Mimi vai morrer...

Essas canções, são lamentos, sim, são queixas sem grandes esperanças, são o mergulho corajoso rumo ao fundo do poço para ver se depois dele existe uma saída.

Vi uma vez em algum curta-metragem sobre o sertão uma voz em off perguntar a um velho sem dentes, de roupa rasgada, quase centenário:

– O senhor acha que o sofrimento do povo daqui é muito?...

O velho olhou para um lado, cuspiu de banda e retorquiu:

– É mió dizer que sim, né? Se disser que é pouco, mandam mais.

Essa capacidade para a auto-ironia acompanha passo-a-passo a tendência ao lamento, à súplica, ao desespero melodramático que tanto encanta o sertanejo pobre quando transformado em literatura, como em certos romances de cordel:

Nasci num berço de dores
criei-me entre os pesares
a dor, a tristeza e pranto
são meus extremosos lares
meu fado foi o carrasco
que sepultou-me nos mares. (...)

Que sorte tenho, ó meu Deus
que tudo de mim se esconde
se como não sei o que
se durmo não sei aonde
se choro ninguém me afaga
se chamo ninguém responde.

Ó mar, se algum dia ainda
passar aqui povo meu
revele uma desdita
que assim jamais se deu
dizei que dentro de ti
Cecília Afra morreu.

(A Estória de Cecília Afra – Três Suspiros de uma Esposa, de Teodoro Ferraz da Câmara, 1904-1960)

Essa veia do lamento retórico exprime uma das contradições do temperamento do sertanejo pobre: quanto mais seco, mais atenção ele presta ao derramamento sentimental; quando mais rude, mais vulnerável a imagens hiperbólicas de extravasamento de emoções.

Como se essa linguagem poética de queixumes-em-altas-vozes fosse a única maneira possível de jogar para fora tanto sofrimento curtido em silêncio ao longo de décadas por pessoas que têm vergonha de chorar ou de se emocionar em público.

Daí que os grandes momentos da emoção sertaneja acabam sendo os momentos mais contidos, onde um apocalipse inteiro se condensa numa sextilha, num par de versos, numa trova, num pequeno espaço de texto onde se deposita o peso de uma vida inteira de derrotas e aprendizados.

Como os versos de Leandro Gomes de Barros, tantas vezes recitados por Ariano Suassuna:


Se eu conversasse com Deus
iria lhe perguntar:
por que é que sofremos tanto
quando viemos pra cá?
Que dívida é essa que o homem
tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
como é que ele é feito;
que não dorme, que não come,
e assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
a gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
e outros que sofrem tanto,
nascidos do mesmo jeito,
criados no mesmo canto?
Quem foi temperar o choro
e acabou salgando o pranto?