quinta-feira, 8 de junho de 2017

4242) Um soneto improvisado (8.6.2017)




("Sonnet en X", Mallarmé)


Eu estava numa mesa com alguns amigos que curtem repente. Alguém recitou uma décima de martelo improvisada por um cantador, todo mundo elogiou, e então alguém disse:

– Improvisar nessa estrofe tradicional todo mundo já se acostumou. Eu queria ver era Fulano de Tal (o repentista em questão) improvisar em forma de soneto.

Eu retruquei que, para quem sabe improvisar, o formato da estrofe é o de menos, tem apenas que não se atrapalhar, mas o método de improviso é o mesmo. Houve discordância, e eu me propus a improvisar um soneto em voz alta, ali mesmo. Casou-se dinheiro em aposta (entre eles – eu não tenho esses vícios).

Enchi o copo, fiz um drama de franzir a testa e comecei.

Vou fazer um soneto de improviso
nesta mesa, diante de vocês.
Vejam só, já estou na linha três
e a quatro é somente o que preciso.

Tomei um gole e corri o rabo do olho pela mesa. Eles estavam na expectativa, mas era ainda uma expectativa de quem diz, “vá, pode começar”. Senti que estava devendo.

Engatei marcha e fui em frente:

O meu verso é tirado do juízo
não foi outra pessoa quem o fez,
porém quando a questão é rapidez
o que for necessário eu realizo.

Essa aí produziu mais efeito, porque um deles deu uma risada, e falou:

– Eita, o caba é corajoso. Medo de dizer besteira é uma coisa que ele não tem.

Ignorei-o majestosamente, e prossegui:

Só quem sabe entender o que é poesia
dá valor ao repente que se cria
na medida correta, e bem rimado.

Hora de mais um gole para lubrificar o desfecho. E assim foi:

O formato é que pode ser soneto,
sem ter tinta ou papel, branco nem preto,
mas que seja martelo agalopado.

Tudo isto me exigiu, o quê? Dois, três minutos. Uma eternidade de lazer, se você comparar com o tempo dos versos improvisados por profissionais, ao som da viola.

O cara que apostou em mim acabou ganhando por consenso da mesa, porque bem ou mal esse trambolho em itálico aí em cima é juridicamente um soneto: tem 14 versos, 2 quartetos, 2 tercetos, o esquema de rimas é um dos vários universalmente aceitos. Tampa da caçuleta.

Transcrevo a façanha, não para me gabar (se fosse o caso teria inventado alguma coisa melhorzinha e também plausível), mas para discutir um tema que nem sempre se questiona a respeito do improviso.

Lembro a lição do mestre Zé de Cazuza, que numa conversa me disse certa vez:

– Todo verso, mesmo verso escrito, é meio improvisado, né? O verso brota na mente. A diferença é que no verso escrito o camarada pode ficar horas e horas ajeitando aquilo que improvisou, e na viola não, do jeito que ele improvisa na cabeça ele tem que cantar, não dá tempo de ficar ajeitando.

A “contrainte” embutida nessas formas fixas (martelo, soneto, etc.) obriga o poeta a se concentrar na obediência obrigatória à rima e à métrica. A grande maioria dos versos improvisados “não tem poesia”, é apenas uma espécie de prosa cuja preocupação é manter-se fiel a uma cadência, e terminar cada frase com um som obrigatório.

Todo improvisador tem truques para cumprir essas obrigações. O truque a que recorri na primeira quadra é um dos mais antigos de quem escreve soneto: fazer o comentário metalínguístico sobre cada linha que vai compondo. Já li dezenas de sonetos que não dizem outra coisa senão comentar: “Tou fazendo a linha 1... a linha 2... a linha 3... a linha 4...”.

Outra coisa: repertório de rimas. Eu sei que para compor os 2 quartetos preciso de 4 palavras com uma rima e 4 palavras com outra. Escolhi duas que acho facílimas: ISO e ÊS. É nessa primeira escolha que muitos candidatos dançam, porque, preocupados com o conteúdo, eles fazem duas frases iniciais bem elegantes e depois percebem que vão ter alguns segundos apenas para catar na memória alguma palavra que rime com aquilo.

Não, amigo. Pense na rima primeiro, e na palavra só depois. “Run for cover”, como dizia Alfred Hitchcock: corra para o terreno onde você tem cobertura. Deixe as rimas difíceis para o momento do caderno, da caneta e da poltrona. Para improvisar de verdade, pegue rimas que têm vasto vocabulário. Improviso, por exemplo, eu só tendo a rimar com juízo, com algo que vai ser preciso... Clichê, mas quando a gente corre contra o relógio não pode ficar escolhendo.

Outra coisa: prepare um final. Eu decidi, durante o gole de cerveja, que terminaria dizendo algo sobre martelo agalopado, então já estava tranquilo: se esta seria a rima da linha 14, não me daria trabalho achar algo que rimasse para fechar a linha 11 (no caso, foi “rimado”).

Se eu estivesse escrevendo, não rimaria improviso, com meus clichês habituais. Procuraria algo mais afastado – faria uma comparação qualquer com Narciso, ou diria que como cascavel-do-repente eu balanço o meu guizo, ou que meu verso vem do Paraíso, ou que sou um poeta liso...

Rimas, existem muitas. Quanto mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de pescar uma rima que suba o nível poético da frase. São as palavras que rimam quem vão nos trazer – pela mão dessa concidência arbitrária e obrigatória – o assunto das próximas linhas, as imagens, as associações de idéias.

Gosto deste comentário do poeta Tom Lehrer (no livro Le Ton Beau de Marot, de Douglas Hofstadter):

Parece aos outros uma grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões inesperadas do espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias possíveis) por causa da rima, que é uma restrição auto-imposta. (O poeta) acaba pensando em imagens que jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de rimar as linhas umas com as outras. 

Quanto mais tempo a gente tem para pensar, maior a chance de achar uma rima que, além de arrastar a frase para uma direção nova, inesperada, dê a impressão de que se encaixa tão bem no assunto que está ali pelo seu conteúdo (e não pela rima).

Um último comentário, sobre a dúvida que deu origem a tudo isto. Improvisar um martelo e improvisar um soneto não são coisas muito diferentes. É um poema de 10 linhas contra um poema de 14, apenas. Um esquema de rimas ABBAACCDDC e um esquema ABBA-ABBA-CCD-EED (o soneto admite vários; o que usei foi este).

A dificuldade é grande, talvez, para aqueles violeiros que são acostumados ao martelo e mas não têm muita familiaridade com o soneto. A velocidade da mente já se formatou com um esquema, e, quando forçada a trabalhar em outro, dá um branco.

Já vi cantadores desafiando uns aos outros a improvisar uma estrofe de martelo totalmente sem rima, livre – e alguns não conseguiam, se atrapalhavam e acabavam rimando.

Adquirir técnica é adquirir uma forma diferente de liberdade; ficar preso a ela é sempre perder a liberdade.

Trocar de formatos e de fórmulas de vez em quando ajuda a manter vibrando o diapasão da criatividade.