sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

3363) Saber ouvir (7.12.2013)



Ford Madox Ford disse, referindo-se ao diálogo literário, algo que eu já vira nos meus tempos do cineclubismo, dos debates por questões estéticas ou políticas. Ele observou que as pessoas, na verdade, não escutam umas às outras, porque enquanto “A” está falando “B” prepara o que vai falar em seguida. Toda conversa, portanto, não é mais do que uma intercalação de monólogos fatiados.  

Essa idéia de Ford foi encampada por seu amigo Joseph Conrad, e está esmiuçada com mais minúcias em cartas e artigos dos dois, num livro (a edição Norton de Heart of Darkness) que não tenho agora à mão.

Nas discussões de Jornada, nos debates, nas mesas-redondas, me acostumei a não olhar para o orador do momento, e sim para os que estavam discutindo com ele. Em sua maioria tinham aquela postura corporal meio contraída, de bote-armado, felino aguardando o instante de saltar sobre a presa; mas seu olho não era o olho vívido e consciente de quem recebe em tempo real as idéias emitidas pelo interlocutor, era o olho vidrado e ausente de quem está com 100% da luzinha vermelha do HD piscando em função de si próprio. 

Não estavam ouvindo, estavam verbalizando a plenas turbinas os argumentos que iriam desfechar sobre o outro no próximo minuto.

É, é difícil a gente ouvir o que o interlocutor diz. Nossos tímpanos captam a vibração das moléculas do ar, claro, mas achamos que isso basta. Discussões pessoais muitas vezes dão com os burros nágua por essa nossa incapacidade de perceber as palavras por trás dos sons, as idéias por trás das palavras, e as emoções por trás das idéias, porque é essa a hierarquia do discurso. 

A contraprova disso se dá quando estamos num país estrangeiro, de uma língua que desconhecemos, mas num ambiente fraternal, receptivo, com pessoas descontraídas e interessadas umas nas outras. Todas fazem um esforço (que não lhes custa muito, admito) para se entenderem. Nesses momentos, somos capazes de prodígios telepáticos diante de longas frases em alemão ou holandês.  Catamos uma ou outra palavra que imaginamos conhecer, e com que desenvoltura desenrolamos o resto!

Saber ouvir não é ceder os tímpanos, é ceder a retina, a pele inteira, a aura Kirlian e tudo mais que tivermos para captar as diferentes faixas de onda que o outro está emitindo. Sem isso não escutamos sequer um bom-dia.  

A literatura nos mostra pessoas dizendo umas às outras o que vai acontecer dali a duzentas páginas, e quando chega o momento percebemos que o outro escutou mas não ouviu, ou ouviu e não entendeu, ou entendeu mas não absorveu o que havia entendido. Todas as tragédias ocorrem quando as pessoas estão falando grego entre si.


3362) FC, fantasia e portais (6.12.2013)





Um Portal (“gateway”, em inglês) é uma abertura que liga dois universos diferentes, e visto assim parece uma coisa muito limitada. A questão é que universos são esses, e eles variam muito, se estamos lidando com ficção científica, horror, fantasia heróica, fantasia urbana, realismo mágico, humor absurdista... Alguns críticos dividem em dois grupos as histórias que envolvem portais. O primeiro seriam as fantasias de Portal propriamente dito: em nosso universo, personagens descobrem uma abertura que lhes dá acesso a um universo diferente. O segundo grupo seria feito do que Farah Mendelsohn chama de “fantasia intrusiva”: são as criaturas do outro universo que descobrem um portal para o nosso, e aparecem aqui, com resultados imprevisíveis.

A palavra “gateway” lembra ao leitor de FC a série homônima de romances de Frederik Pohl, em que a humanidade descobre naves à deriva, abandonadas, feitas por uma raça superior à nossa, naves com as quais é possível acessar outras regiões do universo. Outro portal famoso é o que Arthur C. Clarke abre para a passagem do astronauta Bowman em 2001, quando este descobre que o monolito é um aparente objeto mas na verdade é uma abertura no espaço-tempo. Coube a Clifford Simak, em Way Station, O Planeta de Shakespeare e vários outros romances, a idéia de um labirinto de portais cruzando a Galáxia como uma rede de metrôs, com guardiões secretos em cada “estação” ou entroncamento.

Na fantasia, temos desde o guarda-roupa em que os garotos chegam ao mundo de Narnia em O leão, a bruxa e o guarda-roupa de C. S. Lewis até o filme Salada Russa em Paris de Yuri Mamin, em que dois russos descobrem um acesso semelhante ligando São Petersburgo a Paris – neste caso, o portal liga dois “universos” metafóricos, países  socialmente diversos um do outro.  Mais ou menos como no conto de Julio Cortázar “O outro céu”, em que são as galerias dos prédios que permitem ao personagem entrar numa extremidade em Paris e sair na outra em Buenos Aires, ou vice-versa. No filme Orfeu de Jean Cocteau, como na Alice de Carroll, os espelhos são portais para outros mundos.

Um certo esgotamento da fórmula (os exemplos são incontáveis) leva histórias mais recentes a propor idéias mais rebuscadas (e mais divertidas) como a de Quero ser John Malkovich de Spike Jonze, em que um portal conduz do interior de um prédio em Manhattan para o interior da cabeça daquele ator. Na Encyclopedia of Fantasy, John Clute observa que quando uma pessoa encontra um portal ela foi, num certo sentido, encontrada por ele. Os portais são armadilhas (boas, más, indiferentes) esperando alguém que os faça funcionar.