sexta-feira, 24 de abril de 2020

4573) Minhas canções: "Alicerce da Terra" (24.4.2020)





Por volta de 1982 eu passei uns meses no Rio de Janeiro, nas casas de meus amigos, antes de me mudar em definitivo. Numa destas eu estava no apartamento em que Mestre Fuba morava em Ipanema – como o pai dele vinha ao Rio com frequência, a trabalho, era cômodo manter um apartamento pequeno, onde o filho morava e ele se instalava quando vinha.

O filho hospedava também outros trovadores errantes, como era o meu caso, e numa destas resolvemos fazer um show coletivo. Juntamos uma turma de cinco: Fuba, Pedro Osmar, Jarbas Mariz, Paulo Machado e eu. Era a época das “coletivas musicais”, aquelas noitadas longas em que uma longa fila de cantores-compositores se sucedia no palco.

Começamos a ensaiar o show, que foi marcado para um espaço na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo. Pedro Osmar, o líder do grupo Jaguaribe Carne, de João Pessoa (de onde surgiram, entre outros, Chico César e Totonho) era o dínamo propulsor dessa atividade toda. Para mim, “fazer um show” significava apenas comparecer no dia e cantar algumas músicas escolhidas na hora, mas Pedro tinha outra concepção. Era preciso organizar, viabilizar, produzir, divulgar...

Discutíamos muito sobre o nome do show e numa tarde, depois de uma sessão especialmente acalorada, Pedro Osmar se levantou e disse: “Amanhã a gente se encontra de novo e não é possível que ninguém tenha um nome bom!”. Eu respondi, com a modéstia habitual: “Pedro, vá tranquilo, que amanhã eu vou lhe dar trinta nomes possíveis para esse show.”.

De noite botei o papel na máquina (havia uma máquina de escrever portátil no apartamento) e fiquei tomando cerveja e inventando títulos, terapia de descontração mental que aconselho a todo mundo. Quando estava com 29, deu um branco, e o último não vinha de jeito nenhum. E aí coloquei, só de zoação: “E se alguém encostasse o Brasil na parede e pedisse pra ver os documentos?”.

Não deu outra: o nome do show foi esse, e saiu em todos os jornais.


(À frente: Pedro Osmar. Atrás, da esquerda para a direita: BT, Fuba, Paulo Machado e Jarbas Mariz)

É dessa época uma canção que acabou não sendo cantada no show, por ser muito nova. Lá no apartamento iam de vez em quando nossos amigos riograndenses-do-norte, da banda Flor de Cactus (não confundir com a banda homônima recifense, do começo da carreira de Lenine): Babal Galvão, Chico Guedes, Mingo Araújo, Cláuton “Neguinho” e outros, inclusive o paraibano Alex Madureira, que tocou com eles durante algum tempo.

Eles estavam se preparando para gravar um LP, seu segundo disco de carreira (o primeiro foi Pepitas de Fogo, 1981) e primeiro pela gravadora RCA. 

Esta minha letra, musicada por Babal, acabou sendo a faixa de abertura, e dando nome ao disco.

É um galope-beira-mar, estilo clássico dos cantadores, com uma variante que eu introduzi, repetindo as duas últimas linhas em cada estrofe, como se glosasse um mote. (Os cantadores nunca usam galope beira-mar para glosar mote.)


  
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YouTube (gravação original Flor de Cactus):

ALICERCE DA TERRA
Babal / Braulio Tavares

Meu canto é quem guia o impulso da onda
e faz o oceano emitir seu marulho
meu canto supera do mar o barulho
e faz com que a tempestade se esconda...
Meu canto é que exige que o mar lhe responda
e chama a tormenta pra lhe acompanhar
no dia que emudecer meu cantar
a própria garganta das águas se emperra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

O vento passando através duma mata
arranca das árvores suas folhagens
a força de um rio contido entre margens
liberta-se quando ele cai em cascata.
Toda natureza tem a força exata
que leva o mundo a se transformar
nenhum ser vivente consegue escapar
à lei natural que governa e não erra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

Se um dia você passeando na praia
ouvir um concerto solene e profundo
como se houvesse no ventre do mundo
uma orquestra que lá se oculta e ensaia,
você feche os olhos, se benza e caia
de joelhos na areia e comece a rezar,
pois quando essa voz principia a soar
nos céus e no inferno um portão se descerra...
Sou eu abalando o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

O mar é um cofre de imensos segredos
naufrágios, tormentas, batalhas e dores
desastres, mistérios, miragens, terrores
sepulcros, cavernas, abismos e medos...
A terra é uma arena de tristes degredos
miséria, doença, infortúnio e penar
maldade, violência, tortura e azar
cobiça, traição, assassínios e guerra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar





 ( Banda Flor de Cactus )