quarta-feira, 19 de agosto de 2015

3897) Nabokov e a tradução (20.8.2015)






Num dos seus primeiros artigos para The New Republic, onde colaborou por muito tempo (“The Art of Translation” - http://tinyurl.com/lcgosud), Vladimir Nabokov listou os três principais equívocos cometidos por tradutores, e os três tipos principais de tradutor. Ele próprio se apressou a dizer que cada erro não correspondia a cada tipo, mas se distribuíam aleatoriamente entre eles.

Para o autor de Lolita, o primeiro erro, e menor, corresponde aos “erros óbvios devidos à ignorância e ao conhecimento equivocado”. São p. ex. os tradicionais “falsos amigos” e outras semelhanças ilusórias, que nos fazem traduzir “eventually” por “eventualmente” ou “push” por “puxe”. Um erro de natureza técnica, que o tradutor se apressaria a corrigir se ficasse sabendo. Em segundo lugar, diz ele, vem o caso do tradutor que “intencionalmente pula palavras ou trechos que não quer se dar o trabalho de entender, ou que poderiam parecer obscuros ou obscenos para leitores vagamente imaginados”. O terceiro caso é uma radicalização do segundo, quando “uma obra-prima é aplastada e rebatida num tal formato, e vilmente embelezada de forma a se enquadrar de conformidade aos valores e aos preconceitos de um público qualquer”. São erros cuja gravidade aumenta na proporção da opção consciente do tradutor, da sua intenção de errar.

E os tipos de tradutores? Diz ele que são: “o erudito ansioso para fazer com que o mundo aprecie as obras de um gênio obscuro tanto quanto ele próprio aprecia; o mercenário bem intencionado; e o escritor profissional relaxando na companhia de um confrade estrangeiro”.  Nabokov parece temer o terceiro tipo mais do que os outros dois, pois adverte: “quanto maior o seu talento individual, mais provável que ele acabe submergindo a obra original sob a cascata cintilante do seu próprio estilo. Ao invés de vestir a pele do autor verdadeiro, ele obriga o autor vestir a pele dele próprio”.

Nabokov, russo, ficou famoso com sua obra em inglês, tal como seu conterrâneo Isaac Asimov ou o polonês Joseph Conrad. Só que poucos autores nessa condição produziram uma prosa tão elaborada quanto a dele, tão consciente dos seus próprios efeitos, tão ludicamente empenhada de extrair de cada palavra tudo que ela pudesse fornecer de possibilidades expressivas. Um autor que escrevia traduzindo (mesmo que pensasse em inglês), e produziu uma das prosas mais desafiadoras para outro tradutor em qualquer idioma. Sua prosa parece vibrar o tempo inteiro numa região de múltiplas assonâncias que sugerem sentidos secundários ou ocultos. É um desses autores que parecem ter arregaçado as mangas para provar que traduzir é impossível.

3896) O leão sorridente (19.8.2015)




Por volta de 1731, o rei Frederico da Suécia recebeu um presente enviado pelo Rei de Argel: um leão, coisa rara na Suécia, algo que pouquíssimos habitantes do país nórdico tinham visto a não ser nas ilustrações pouco confiáveis da época, nos brasões heráldicos, nas pinturas. 

Presentear animais selvagens era um costume dos nobres daquele tempo. Podemos lembrar do romance de José Saramago, O elefante do rei A viagem do elefante (2008), que conta a odisséia do paquiderme que o rei João III de Portugal enviou de presente ao Arquiduque Maximiliano, da Áustria.

No caso do leão, o rei sueco se afeiçoou ao animal e o manteve em cativeiro e em exibição enquanto o animal durou. Após sua morte, decidiu que ele continuaria sendo visto pelo público, e enviou seus restos mortais para um taxidermista, a quem caberia empalhar o animal. Só que o artista não conhecia leões, e recebeu apenas os ossos e a pele do bicho.

O resultado foi uma criatura que não parece leão nem aqui nem em Estocolmo; lembra mais um cachorro sorridente, com dentes humanos e língua de fora. Sua imagem tem sido usada satiricamente na Internet (ver aqui: http://tinyurl.com/p5byrym). 

O caso do Leão do Castelo de Gripsholm, como é chamado, lembra outro presente real famoso, o rinoceronte que Dom Manuel I de Portugal recebeu e que foi imortalizado numa célebre gravura de Albrecht Durer. É um animal mais ornamental do que zoológico, sobre o qual já escrevi aqui: http://tinyurl.com/pu8hj4a).   


Não se trata apenas de que os artistas envolvidos são incompetentes ou maus observadores. Eu diria, pra resumir, que o contato com o Extraordinário estimula mais a imaginação do que a observação. Ao enxergar uma criatura que não corresponde aos seus parâmetros, ao seu repertório de referências, o artista interpreta detalhes erradamente; faz associações de idéias que não se aplicam ao caso; preenche lacunas coma primeira coisa ou a coisa mais vistosa) que lhe vem à mente. 

Sua imaginação é despertada por aquele objeto exótico ou bizarro que parece menos uma coisa real do que um produto da imaginação de outro artista.

O leão sorridente de Gripsholm e o rinoceronte de Durer pertencem à mesma categoria que aqueles mapas náuticos seiscentistas cheios de referências a lugares imaginários e a monstros fantásticos. 

Neles convivem, num mesmo plano, a realidade observada e os complementos arbitrariamente fantasiados pelo artista. 

É a mesma receita da ficção científica – só que neste caso a mistura é consciente, proposital e faz parte de uma convenção cultural da época. São objetos literários estimuladores da imaginação, mesmo que aparentados da observação científica.