segunda-feira, 30 de novembro de 2009

1389) Papai Noel existe! (26.8.2007)


Uma das lições literárias mais inspiradoras que já recebi me foi dada involuntariamente (como aliás ocorre com a maioria das Grandes Lições), e por um guri de 5 anos. Era época pré-natalina e eu estava conversando com um casal de amigos na praça de alimentação de um shopping. (Na verdade não foi bem assim, mas se eu disser onde era ninguém vai acreditar, então vamos em frente com uma ficção plausível.) Aí chegou o garoto deles todo excitado: “Pai! Mãe! Acabei de conversar com Papai Noel!” Eu estava numa veia implicante e disse ao meu amigo: “Mas Fulano, você ainda não explicou a seu filho que Papai Noel não existe?!” O pirralho me fitou de cima a baixo com soberano desprezo e falou: “Claro que existe. Ele falou comigo, eu sentei no colo dele, ganhei um chocolate, puxei a barba dele...” Aí fez uma cara de conspirador, pôs a mão juntinho da boca e sussurrou: “É falsa!”

Um garoto de cinco anos entende melhor o que é ficção do que qualquer marmanjo de cinqüenta. De fato, como você vai dizer que o sujeito não existe, se em dezembro as ruas e as lojas estão cheias dele?! É o mesmo que se dá com o príncipe Hamlet, da Dinamarca. Se pudéssemos reunir todos os indivíduos que já usaram seu nome, vestiram suas roupas e disseram suas falas, encheríamos vários Maracanãs. Alguém tem a coragem de dizer que Hamlet não existe? Existe mais do que eu ou você, caro leitor, que se desaparecermos amanhã a Humanidade nem toma conhecimento. Mas desapareça Papai Noel, e você vai sentir o abalo no PIB.

Papai Noel e Hamlet podem não ter uma existência individual como a minha e a sua, mas a existência que têm é de causar inveja a qualquer um de nós. Para começo de conversa, são imortais, porque quando um ator morre o personagem continua. Depois, são ubíquos, podem estar em várias partes do mundo na mesmíssima noite. Por fim, são extremamente maleáveis, adaptam-se às culturas, às circunstâncias, às modas, aos momentos históricos. E, o que é mais importante, influenciam um número muito maior de pessoas.

Eles são o gérmen da humanidade futura, quando conseguirmos criar receptáculos eletrônicos capazes de registrar em si personalidades complexas, memórias totais, biografias inteiras. Temos hoje a ilusão de imaginar que os personagens literários são meras sombras ou reflexos das pessoas de verdade. O avanço da ciência nos mostra, para o bem ou para o mal, que sombras e reflexos somos nós. Que somos um mero estágio para a criação dos seres indestrutíveis do futuro, criaturas com muito maior complexidade mental do que a que nos dão nossos poucos bilhões de neurônios. Criaturas que serão feitas, como diz William Gibson, não de um iceberg, mas de uma Antártida de informação. Serão personagens, serão imortais, serão ubíquos, e nas suas memórias virtuais dedicarão alguns trilhões de terabytes para cultivar a memória dos bípedes mamíferos que os antecederam e que os inventaram.

1388) Puxa o rabo do tatu (25.8.2007)




Comprei num sebo uma edição de bolso de um dos livros mais fascinantes que já li, O Teatro do Absurdo, de Martin Esslin, que foi meu livro de cabeceira por volta de 1971, quando eu era um estudante de cinema que flertava à distância com o teatro. O livro de Esslin descreve e comenta a obra dos grandes dramaturgos do absurdo: Ionesco, Beckett, Genet e Adamov. Mais interessante, contudo, é o capítulo “A Tradição do Absurdo”, onde Esslin aponta com perspicácia a existência de um absurdo não-literário presente em todas as culturas, especialmente nas cantigas folclóricas e nas parlendas infantis.

Esse absurdo verbal é mais visível nos livros de autores como Lewis Carroll ou Edward Lear, nos “limericks” irlandeses; mas sua origem são as cantigas infantis, ou “nursery rhymes” dos países de língua inglesa, uma fonte que nem sempre a crítica parece levar a sério. Nossas cantigas e parlendas infantis também estão cheias disso. Lembram-se dos sistemas de escolha para brincadeira de toca, de se-esconder, e outras? A pessoa que tira vai recitando frases e a cada sílaba toca numa pessoa ao longo de um círculo: “Fui-na-ma-ta-cor-tar-le-nha / San-tan-tônio-me-cha-mou / quand-do-san-to-cha-ma-gen-te / é-si-nal-de-pe-ca-dor... / Pu-xo-ra-bo-do-ta-tu, quem-tá-fo-ré-tu!” Sempre achei essa quadrinha uma coisa ominosa, ameaçadora, esse santo na floresta chamando o pecador para levá-lo... pro Céu? Tem uma que é puro mistério de Agatha Christie: “Lá em cima do piano, tem um copo de veneno, quem bebeu morreu... Puxa o rabo do tatu, quem tá fora é tu”.

Uma das malícias desse sistema de escolha era quando a gente dava uma suingada no ritmo e fazia com que o gesto não coincidisse com a voz: recitava no mesmo ritmo, mas o toque da mão adiantava ou atrasava de acordo com nossa conveniência, para que o “tu” colocasse de fora alguém que a gente escolhesse.

As frases não precisam fazer sentido. Havia uma cantiga de roda que terminava com todo mundo gritando: “A bença, vovó! Ficou no caritó!” Eu não era tão pequeno que não pensasse: “Oi, se ficou no caritó, não casou. Se não casou, como pode ser avó de alguém?” Essas cantigas infantis são o melhor exemplo do “nonsense”, o não-senso, o que não quer nem precisa fazer sentido. Resíduos de versos, de frases cotidianas, fragmentos de histórias, onomatopéias, coisas que nada querem dizer: querem apenas ser, apenas soar.

O universo dessas cantigas explica em parte a atração que as letras que-não-dizem-nada exercem sobre o público, o que pode ser aferido vendo-se o sucesso de marchinhas de carnaval, canções da axé music, e mesmo muita coisa da MPB. Não estou com isto recusando o sentido, mas não se deve esperar que toda letra de música seja tão cartesiana quanto as de Chico Buarque ou de Renato Russo, compositores sempre preocupados com o “conteúdo”. Há uma área da canção que nasce como brinquedo sonoro, brota como brinquedo, e como brinquedo tem que ser considerada.

1387) O Estranho e o dr. Freud (24.8.2007)



Num ensaio de 1919 (“O Estranho” ou “O Sinistro” -- Das Unheimlich) Freud procura examinar nossa sensação de estranheza e de ameaça quando nos deparamos com imagens que ele enumera: mortos, aparições, membros ou crânios decepados, pessoas enterradas vivas, autômatos que parecem humanos ou vice-versa, coincidências ou fatalidades, a compulsão de repetir atos inexplicáveis, etc. Freud compara essa sensação com a palavra alemã correspondente, “unheimlich”, que é a forma negativa de “heimlich”. E é o caráter desconcertante desta última que ele discute, porque é uma palavra que tanto pode significar “doméstico, aconchegante, familiar” como também “secreto, oculto” – dois sentidos aparentemente contraditórios.

Freud faz em seu ensaio um espantoso levantamento lexicográfico dos usos dessa palavra na língua alemã, e através das dezenas de exemplos que ele cita é possível até mesmo para um analfabeto em alemão, como é o meu caso, perceber as conotações que a palavra assume através das épocas, e de diferentes dicções: literária, regional, antiga, moderna... Minha teoria é que os dois sentidos de “heimlich” não se contradizem; um é a intensificação do outro.

Nossa mente atua em três círculos, ou esferas. Uma é a esfera pública, onde usamos nossa “persona”, nossa face social para consumo externo: nosso nome, rosto, profissão, função no mundo. Mas dentro dessa esfera temos uma outra onde nos refugiamos em busca de tranqüilidade. É o nosso espaço caseiro, doméstico, familiar (e isto é o sentido 1 de “heimlich”). Poderíamos compará-lo à sala de visitas, onde nos recolhemos para conviver com aqueles que nos são íntimos.

Dentro dessa esfera, no entanto, existe outra mais reservada ainda. Uma esfera secreta, oculta (e este é o sentido 2 de “heimlich”), um lugar onde existimos a sós, dentro de nós mesmos. Não temos nenhuma palavra em português para abranger os dois sentidos de “heimlich”; talvez a que mais se aproximasse fosse “privado”, palavra que tanto pode se aplicar ao espaço do convívio familiar (residência privada, aposentos privados) quanto ao local cercado de tabus e proibições (a Privada propriamente dita).

O Estranho, para Freud, é o que envolve ressonâncias emocionais ligadas a estas esferas. Não é simplesmente o que provoca terror – porque um tigre faminto, um criminoso armado ou um terremoto também o provocam, mas esse terror não vem acompanhado pela sensação do Estranho. O Estranho (“unheimlich”) é algo que foi familiar e não o é mais, porque foi reprimido, tornou-se oculto. E é algo que foi oculto e também não o é mais, porque emergiu, escapou à repressão, retornou para nos assombrar como algo que supúnhamos morto e sepultado. O Estranho é portanto essa contradição em termos, algo “estranhamente familiar”, que nos produz uma sensação de angústia como a que temos quando vemos uma pessoa de aspecto desagradável e só depois percebemos que é o nosso reflexo no espelho.

1386) “Cão sem dono” (23.8.2007)



Este filme realizado no Rio Grande do Sul, escrito por Marçal Aquino (baseado em um livro de Daniel Galera) e dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, poderia também se intitular “No mato sem cachorro”, boa descrição da vida do personagem Ciro (Julio Andrade), um rapaz com idéias literárias que vive sozinho num apartamento de boêmio (colchão de casal no chão, livros empilhados, posters nas paredes) e tenta ganhar a vida fazendo traduções. Sua namorada Marcela (Tainá Muller) é um modelo que vive com um pé na boemia noturna e outro no sonho de uma carreira internacional.

Ciro patina na perplexidade de muitos rapazes que se formam, saem da casa dos pais, conquistam a liberdade da vida adulta, e julgam que é sua obrigação “viver intensamente”, ou seja, fazer sexo a torto e a direito, fumar, beber, experimentar drogas, comer e tomar banho apenas quando tiver vontade, trabalhar o mínimo necessário para pagar as contas. As primeiras conseqüências desse estado de coisas são uma rápida deterioração dos níveis de prazer proporcionados por essas atividades, uma exaustão física que faz o cara aos 25 anos ter um vislumbre de como se sente um cara de 80, e uma perplexidade crescente que pode ser sintetizada na frase “E agora?”.

Estes sintomas recebem o rótulo de “angústia existencial” quando o paciente tem pendores filosóficos. O sujeito se sente boiando. Tem tudo que sonhara ter aos 15 anos, mas, e daí? O cão sem dono do título não é o simpático Churras que faz companhia a Ciro, é o próprio Ciro, acossado dia e noite pela clássica pergunta existencialista: “O que fizemos com a nossa liberdade?”

O filme tem algumas belas cenas isoladas, que não são belas por serem excepcionais ou fora do comum, mas porque conseguem transportar para a tela, com naturalidade, pequenos episódios da vida de jovens brasileiros que parecem com gente de verdade, e não com gente fantasiada de jovem americano – embora eles ouçam rock, fumem maconha e dancem nas boates. Um acidente bobo de moto leva Julio e Marcela a um jantar na casa de outro casal, no qual as pessoas falam, bebem, fumam como se não existissem câmeras e equipe em volta. Um longo monólogo do pai de Ciro (Roberto Oliveira), comentando sua próprias experiências com drogas, tem aquele tom de contenção e ansiedade daquelas pessoas que nunca falam aos filhos sobre certos assuntos e quando o fazem temem que seja tarde demais. O porteiro do prédio de Ciro pinta uns quadros meio toscos, meio abstracionistas, pelos quais ele fica fascinado. Há uma cena em que, sentados no colchão do quarto, Marcela canta e Ciro a acompanha ao violão, de maneira descontraída e amadorística, exatamente como milhões de casais de namorados têm feito desde que surgiram no planeta os namorados, os violões e os colchões de casal. Momentos assim, breves, desjuntados, verdadeiros, dão a Cão sem dono um jeito de cacos de uma vida que não formam um todo. Um belo e melancólico filme.

1385) Lá e cá (22.8.2007)




(Garcia Márquez)

T. S. Eliot, americano de nascimento, inglês por adoção, afirmou: “Para dizê-lo da maneira mais modesta possível, minha obra não seria o que é se eu tivesse nascido na Inglaterra, e não seria o que é se eu tivesse ficado na América”. 

Para muitos escritores é uma bênção essa condição sofrida de viver dividido entre dois polos. Devendo lealdade e afeto a duas forças que o atraem em direções opostas, ele ganha uma visão mais ampla, que não teria se se entregasse totalmente a apenas uma das duas. 

O escritor é o cara que acende uma vela a Deus e outra ao Diabo, é o cara que enxerga com dois olhos, e por isso tem a visão em paralaxe que funde duas imagens planas numa imagem em relevo.

O escritor (talvez o artista em geral) precisa de um teatro mental, um palco imaginário onde faça acontecerem suas histórias. Para alguns é conveniente que esse palco não tenha nada a ver com o ambiente onde transcorre sua vida cotidiana, sua ida ao trabalho, as ruas que cruza, os prédios que contempla. É preciso que sua experiência diária seja destilada e recomposta em outro cenário, um cenário que mobilize sua energia afetiva, sua motivação emocional, e um cenário construído a quatro mãos pela imaginação e pela memória.

Julio Cortazar era argentino mas migrou para Paris aos trinta e poucos anos. Acusado pelos argentinos de ter se afrancesado, fez uma obra literária em que, mesmo quando ambientada na França, a Argentina está por inteiro. 

E o que dizer de Carlos Drummond, que saiu de Belo Horizonte para o Rio também aos trinta e poucos, e foi se tornando mais mineralmente mineiro até o fim da vida? 

Ariano Suassuna saiu aos quinze anos de Taperoá para o Recife, e durante os 65 anos seguintes sua obra literária foi uma recriação de Taperoá. 

Gabriel Garcia Márquez passou a infância em Aracataca, na Colômbia, de onde tirou grande parte da inspiração para romances escritos muitos anos depois, em Bogotá ou na Europa. Dizia Márquez que após a morte do avô que lhe contava histórias maravilhosas, falecido quando ele tinha oito anos, nada mais de interessante tinha acontecido em sua vida.

Por um lado, existe essa necessidade de ter na mente o Teatro Imaginário onde as histórias ocorram, um espaço imaginativo não contaminado pelos aspectos pragmáticos e rotineiros da vida. 

Por outro lado, há o choque entre duas culturas, dois modos de viver, às vezes duas Histórias, dois países, dois idiomas. O artista deixa de ser provinciano (“provinciano” não é quem vive em cidade pequena, é quem só consegue ter um único ponto de vista sobre as coisas). 

Deve fidelidade a dois senhores, deve amor a duas cidades ou duas nações talvez incompatíveis, experimenta o que Cortázar chamou de “a sensação de não estar de todo”, o que pode ser fator de angústia, mas uma angústia criativa, de busca incessante por respostas que nunca serão fáceis, porque nunca satisfarão por completo aos dois mundos que são seus.