quarta-feira, 10 de março de 2010

1774) O capitalismo e a Starbucks (15.11.2008)




Hoje incomodarei os colegas que sofrem de adição à minha droga preferida: a cafeína. 

Bendita cafeína, a quem devo milhares de laudas jornalísticas ou literárias, poemas, letras de música. Se prestam ou não, é questão a ser arbitrada pelos pósteros, mas só escrevi aquilo tudo porque a bendita beberagem negra eletrificou meus neurônios e arrancou minha alma do torpor atávico que vive a empurrá-la para diante da tevê.

O leitor conhece as casas de café Starbucks? Há 19 delas no Brasil, todas em São Paulo. Conheço a da Alameda Santos, que é de marejar os olhos (e as papilas gustativas) de um viciado. 

Pois um artigo recente de Daniel Gross na revista Slate equaciona o café e o delírio capitalista que vem fazendo um estrago no mundo nestes últimos meses. Gross teoriza o seguinte: quanto maior a concentração de cafés Starbucks na capital financeira de um país, maior a probabilidade de que este país venha a sofrer perdas financeiras catastróficas no futuro.

A comprovação vem do fato de que somente na ilha de Manhattan há quase 200 cafés desse tipo. O café dessas lojas, diz ele, provê o combustível para um “boom” financeiro. Sua cafeína ajuda os especuladores a passarem horas a fio oferecendo papéis do mercado futuro, e agentes de hipotecas a sancionarem empréstimos pouco confiáveis. 

“Estrategicamente”, diz ele, “a Starbucks instalou muitas de suas lojas no andar térreo dos grandes bancos de investimento”.

Gross diz que, assim como o capitalismo financeiro dos EUA, a Starbucks pegou uma boa idéia e levou-a longe demais, diluindo desnecessariamente seus bons aspectos, e edificando suas apostas no futuro na fé desmesurada num crescimento ilimitado e sempre lucrativo. Não deu. 

Assim como o mercado imobiliário norte-americano, a Starbucks atingiu seu pico na primavera de 2006 e desde então vem caindo sem parar.

Haverá mesmo uma relação entre as egotrips da cafeína e o descontrole financeiro? Gross aponta que Londres tem 256 lojas Starbucks, Madri tem 48, e o paraíso financeiro de Dubai tem 48 lojas para uma população de 1,4 milhão de pessoas. A Coréia do Sul tem 253 lojas, e a cidade de Paris tem 35. 

Na outra ponta da estatística, por exemplo, fica o continente africano com apenas três lojas (todas no Egito); a Argentina tem apenas uma; o Brasil tem 14 diluídas numa população de 180 milhões. Países como Itália, Suécia, Finlância e Noruega não tem uma sequer.

Pouparei o leitor de mais números; quem quiser esmiuçá-los vá aqui (http://www.slate.com/id/2202707/). 

Em julho deste ano, a Starbucks fechou cerca de 600 lojas, quase um décimo de seu efetivo. Tal desmoronamento acontece ao mesmo tempo que a falência das financeiras e dos bancos ligados à área imobiliária. Haverá relação? Já vi muita gente reclamando que a voracidade do capitalismo era movida a cocaína, conhecida como A Droga do Egoísmo. Será que o café, o nosso santificado cafezinho, é mesmo um cúmplice neste apocalipse?






1773) Borges e a associação de idéias (14.11.2008)




Li a resenha, assinada por Alberto Manguel, de um livro recente sobre Jorge Luís Borges, The Unimaginable Mathematics of Borges’ Library of Babel. O autor, o matemático William Goldbloom Bloch, analisa as idéias matemáticas contidas neste conto em que o escritor argentimo imagina uma biblioteca formada por livros que contêm em si todas as combinações possíveis de letras, e assim reproduzem a totalidade dos livros possíveis.

Muita tinta já correu sobre este conto; os textos que o analisam são tão numerosos que já encheriam alguns dos hexágonos de que se compõe a Biblioteca fictícia. Mas Manguel revela um detalhe que inquietou minha curiosidade. Diz ele que as orelhas do livro de Bloch reproduzem em fac-símile o manuscrito original do conto de Borges, redigido em sua letra minúscula, regularíssima. Ao que parece, Borges escreveu o conto em folhas de um livro ou caderno de contabilidade, daqueles que têm colunas intituladas “Deve” e “Haver”. Nas folhas que usou, essas palavras estão em letras góticas, e na palavra em espanhol “Haber” o “H” maiúsculo parece um “B”, e o “r” minúsculo parece um “l”, fazendo com que “Haber” sugira “Babel”.

É claro que Borges (ou qualquer outro escritor) não precisaria desta dica do Acaso para comparar sua biblioteca à Torre de Babel, onde todos os idiomas humanos se misturaram e se desentenderam. Mas na sua obra existe um componente casual que muitas vezes desnorteia os críticos. Ele mesmo já afirmou que os números que aparecem no conto não têm qualquer alusão cabalística; apenas se referem aos livros e às prateleiras que estavam do seu lado quando ele escrevia, numa biblioteca pública de Buenos Aires.

Outras referências casuais aparecem em outros contos. Em “A Morte e a Bússola”, as primeiras páginas mostram um crime misterioso que envolve um Tetrarca da Galiléia e o misterioso Tetragrammaton, o nome secreto de Deus, composto de quatro letras. Robert Irwin, em The Mystery to a Solution, pergunta: “Preciso indicar que o verbete sobre ‘tetrarca’, na décima-primeira edição da Enciclopédia Britânica [a edição que Borges possuía], está na página oposta ao verbete sobre o Tetragrammaton?”

Borges, como muitos autores cerebrais, descansa o cérebro pegando no ar um sem-número de dicas, sugestões, inspirações, que ele intuitivamente incorpora ao texto, porque sente, como todos os autores verdadeiramente cerebrais, que o cérebro tem um lado oculto que também sabe tomar decisões. Folheando uma enciclopédia para checar uma informação, ele fica aberto para sugestões do Acaso, e pode incorporar ao texto palavras ou elementos que são vistos “em passant” e cuja natureza não interfere no enredo. Detalhes secundários e ilustrativos, citações, nomes de pessoas ou lugares, tudo isto tanto pode ter uma natureza intencional e até alegórica como pode ter sido apenas um elemento encontrado no meio do caminho.

1772) O leitor enroscado no sofá (13.11.2008)



Estive participando de uma discussão literária entre vários blogs, em torno de um livro meio modernista, de leitura um tanto complicada. A certa altura, um dos participantes escreveu: “É um bom livro, um livro importante, mas não é o tipo de livro que escolho quando me enrosco no sofá, numa noite tranquila, com uma xícara de chá”. A imagem corresponde às circunstâncias ideais de leitura: um local aconchegante, um tempo prolongado, sem interrupções, uma bebida leve ou algum lanche miúdo para ficar “beliscando”...

No contexto em que esse leitor se pronunciou, ele queria dizer que o livro em discussão era um livro difícil, intelectual, que não provocava o envolvimento do leitor. Ele não conseguia “se identificar com o protagonista”, nem “se importar com o que acontecia aos personagens”. Era um livro que lhe causava um estranhamento, um distanciamento. E na hora de se enroscar no sofá, o que esse tipo de leitor procura é um livro que o envolva, no qual ele mergulhe esquecendo-se do mundo à sua volta, emocionando-se com o que acontece aos personagens, vivendo e respirando junto com eles.

Em função disto, vou definir que existem dois Leitores, ou pelo menos duas Leituras: a Leitura Brechtiana e a Leitura Stanislavskiana. Isto se baseia no teatro do intelecto pregado por Brecht, e no teatro da emoção pregado por Stanislavski. A primeira leitura procura abordar o livro intelectualmente, observando a narrativa, analisando sua estrutura, decompondo seus elementos, anotando as referências culturais que ele desperta (cada livro nos remete a um universo seletivo, a um cardápio cultural único e irrepetível). A segunda leitura é para rir, emocionar-se, excitar-se, assustar-se, participar daquela narrativa com a voluntária suspensão da descrença.

Não é para me gabar, mas eu acho que sou o Leitor Completo. Porque eu não apenas sou capaz de ambas as leituras, como salto de uma para outra sem precisar sequer apertar um botão ou dar um Alt+Tab. E só o que vejo à minha volta são pessoas que são cronicamente incapazes de ler de uma dessas duas maneiras. Tem gente que só consegue entender Robbe-Grillet, e gente que só sabe entender Agatha Christie. Para mim, a cena de estar numa madrugada silenciosa enroscado no sofá com uma taça de vinho (no inverno) ou uma lata de cerveja (no verão) significa imersão total da leitura, rendição total ao discurso literário, e para mim é irrelevante se estou lendo um tratado de Freud (“leitura intelectual”) ou um romance de Jorge Amado (leitura de entretenimento, por puro prazer).

A maioria dos leitores, quando se enroscam no sofá, não querem fazer nenhum esforço intelectual além do necessário para se divertir com uma história bem contada. Pra mim é um desperdício. Sofá, vinho, madrugada silenciosa, isso é o momento ideal para ler Guimarães Rosa ou T. S. Eliot. O resto eu leio no metrô ou na fila do Banco.

1771) Os Atlas Poéticos (12.11.2008)



(O Rastro dos Cantos, de Bruce Chatwin)

Poemas descritivos de uma geografia são um gênero antigo. Poderíamos chamá-los de cartografias literárias, porque equivalem a um mapa de palavras, mnemonicamente dispostas em versos bons de decorar, para que seu encadeamento não se perca nem se confunda. Recitando baixinho o poema, o viajante poderá se orientar, saber por onde está passando, saber o que vem depois.

“O Rio” (1953), de João Cabral, é descrito de forma cabal pelo seu subtítulo: “Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”. Cronologicamente se situa entre “O cão sem plumas”, que é um retrato puramente poético do mesmo rio, e “Morte e vida severina”, descrição da viagem que fazem os retirantes num percurso parecido. 

Reza a lenda que o poeta compôs o poema no Rio de Janeiro, com o auxílio da mapoteca do Itamaraty. (Me pergunto quantos poetas de hoje em dia se dariam o trabalho de fazer uma pesquisa para escrever um poema.)

Textos assim, em que o autor leva o leitor a percorrer em mente um espaço físico, são batizados às vezes de “itinerários líricos”, como o que Jomar Morais Souto fez em verso para a cidade de João Pessoa, e o que José Nêumanne fez em prosa para a cidade de Campina. 

Frederico Pernambucano de Mello (Guerreiros do Sol) lembra o poema de Francisco das Chagas Batista, “A política de Antonio Silvino”, de 1908, repleto de “fidelidade microgeográfica”: 

Santa Rita, Espírito Santo 
Mamanguape, Mulungu 
Pilar, Sapé, Guarabira 
São Miguel de Traipu 
Serra da Raiz, Caiçara 
Bethlém, Curimataú. 

Poemas enumerativos, catalográficos, que constituem, para o homem do campo sem alfabetização e sem mapas, uma espécie de Atlas poético a que recorre quando quer checar a existência de um nome, e sua relação com os que lhe estão nas vizinhanças.

Em seu magnífico livro O Rastro dos Cantos (“Songlines”, 1980; no Brasil, Companhia das Letras, 1996, trad. Bernardo Carvalho), Bruce Chatwin estuda a mitologia dos aborígenes australianos, cujo mundo foi criado através de uma canção, ou de um poema. 

Para os aborígenes, os Ancestrais primitivos dormiam sob a terra e foram despertados pelo sol. Cada ancestral de cada coisa viva deu origem a uma espécie: o Homem Cobra, o Homem Cacatua, etc. Rompendo a crosta da terra eles se puseram em marcha, dizendo: “Eu Sou!” Eu sou Formiga. Eu sou Pássaro. Eu sou Cobra. E assim por diante. 

A cada passo dado, eles pronunciavam outro nome, batizando assim os rios, as pedras, os arbustos. No momento em que diziam um verso com o nome daquela coisa, a coisa passava a existir.

Segundo Chatwin as “songlines” são estes cantos intermináveis, que reproduzem, tanto na letra quanto na melodia, o percurso desses Ancestrais pelo continente. Mesmo ouvindo o canto no idioma de uma tribo que desconhece, um aborígene seria capaz de reconhecer, pelo formato da melodia, o trecho que está sendo cantado – se é um rio, uma baía, uma lagoa nova, uma lagoa seca, um mato grosso, um belo horizonte, uma serra talhada, uma pedra lavrada, uma campina grande.