terça-feira, 3 de junho de 2014

3515) Batatas e dragões (3.6.2014)



Li num websaite a respeito da série Game of Thrones, ambientada num continente chamado Westeros, que não tem nada em comum com a nossa Terra.  Não há nesse gigantesco épico planetário um só nome próprio que aluda às culturas da Terra, às religiões da Terra, às civilizações da Terra, à geografia da Terra.  Os nomes, mesmos compreensivelmente dóceis às formas ocidentais de pronunciar, são nomes sem história terrestre. (Se bem que muitos dos sobrenomes, desde Stark até Tyrell, são bem americanozinhos.)

Os fãs discutem a propriedade ou não das armas e das táticas de batalhas. (Isto é uma qualidade inerente ao ofício da guerra, ou é apenas um cacoete herdado de videogames onde “items”, etc são entesourados?)  Discutem os deuses (eles têm uma religião baseada no Sete, e não na Trindade, como nós), os idiomas (o domínio seguro de um idioma estrangeiro, ou a ausência disso, surge em momentos cruciais desta história). A certa altura (foi o que li), alguém questionou: “Eles dizem que comem carne com batatas. Ora, batatas não pertencem á Europa. A batata é da América. Como eles poderiam conhecer a batata, no grau de evolução tecnológica em que aparentam estar?”   E o autor do artigo comenta: “Peraí, pessoal.  Os caras estão escrevendo uma história com dragões, e vocês questionam a verossimilhança da batata?”.

Alguém diria que é em momentos assim que se dá a bifurcação entre quem gosta de ficção científica “hard” (o que cobra rigor nas batatas) e quem gosta de fantasia (para quem está tudo muito bem, desde que pareça fazer sentido).  Pra mim, não se trata de dois gêneros diferentes (embora estes existam), trata-se de duas mentalidades.  Os que veem uma história como um mecanismo onde tudo tem que se ajustar e precisa de justificativa; e os que veem uma história como uma reprodução de algo que acontece na vida.

A primeira impõe a exigência da necessidade, da exatidão, da inquestionabilidade, da obrigatoriedade de perfeição em cada detalhe e no conjunto da obra. A segunda é a mentalidade que é meio negligente, difusa, imprecisa, toda sujeita a falhas, autocorrigindo-se incessante e infatigavelmente, tendo sempre dez alternativas para cada gargalo estatístico que lhe surge à frente. Esta não precisa ganhar nota dez redonda; a história pode-se estragar, pode-se desperdiçar, pode raspar a pintura e amassar a lataria, o que importa é que, sendo história, a história aconteça, veemente, evocativa, com rasgos de grandiosidade e de aventura. Com dragões impossíveis ou batatas improváveis, é fantasia porque tem espadas, podia ser FC se assumissem que é outro planeta; mas sem história não tem história.