terça-feira, 5 de março de 2019

4441) O Tesouro de Sierra Madre (5.3.2019)




O filme O Tesouro de Sierra Madre (1948) de John Huston foi na sua época uma superprodução da Warner Brothers. É uma história de faroeste – sujeitos miseráveis arriscando tudo na mineração de ouro – e por trás dessa aventura um estudo sobre ambição, paranóia, cobiça.

Peguei o DVD pra ver de novo por causa do episódio de A Balada de Buster Scruggs, dos irmãos Coen (comentado aqui no blog, em 11 de fevereiro passado) onde Tom Waits faz um garimpeiro solitário que descobre uma jazida e depois é atacado por um espertalhão que quer se apoderar dela.

Era uma coisa comum no garimpo: bandidos que ficavam rondando, deixando que alguém fizesse o trabalho duro de cavar a terra, e quando o cavador achava alguma coisa eles caíam em cima, matavam o cara e exploravam o filão.

No Tesouro, Walter Huston (ator extraordinário) explica, em sua primeira cena, por que o ouro é tão valioso. “É a quantidade de trabalho humano, de gente que se esforça para achá-lo e arrancá-lo. Ouro só serve pra fazer pulseira e obturar dentes” (algo assim).

Seu personagem é o personagem mais complexo do filme de John Huston. A “estrela”, Humphrey Bogart, ótimo ator, faz um sujeito, Fred Dobbs, obsessivamente querendo ficar rico. Os outros, o velho Howard (W. Huston) e o jovem Bob Curtin (Tim Holt) têm planos pessoais para o futuro, quando venderem o ouro. Dobbs diz apenas que pensa em ir a um banho turco, depois a um restaurante bem caro e ficar devolvendo pratos, mandando preparar de novo.



“E depois?”, perguntam os outro. Dobbs não sabe. Dobbs é o capitalista Yang, o que só pensa em ganhar sem parar.

É um minerador típico, e nisso incluo as grandes empresas mineradoras que fazem bilionários pelo mundo afora arrancando ouro, ferro, manganês, nióbio, diamante. Querem arrancar, vender pelo melhor preço, enriquecer... e depois? E depois dos jatinhos com pias de ouro, dos vinhos de 100 mil dólares, dos bunkers subterrâneos para sobreviver ao Juízo Final?

Howard (o personagem de Walter Huston) é a mente mais lúcida num filme de sonâmbulos. É espertalhão, descolado, safo, experiente. Tal como o ator – que, segundo se diz, não falava uma palavra de espanhol, mas decorou as falas (muitas) e as diz com fluência espantosa.



Howard ajuda os índios mexicanos, fazendo respiração artificial num garoto que se afogou; passa a ser visto como milagreiro. E ele mesmo pisca o olho para os colegas, decidido a faturar em cima do prestígio adquirido, mas sem enganar a si próprio.

Quando vão embora, depois de extrair o ouro, ele diz aos colegas que precisam fechar as feridas da montanha. “Que papo é esse?”, estranham eles. E ele diz: “A montanha nos deu seu ouro. Não podemos deixá-la toda aberta, toda escavada. Temos que tratá-la bem”.

Hoje seria classificado como um discurso “eco-friendly”, mas é a persistência (positiva, acho, neste caso) da velha mentalidade animista. A natureza é viva. Ele sente, ela nos vê, ela percebe, ela se relaciona. Um animismo que pode muito bem excluir o espiritual, o sobrenatural, e exprimir um senso profundo de identificação entre bichos de carne e osso (e pás e picaretas) e o lugar de onde arrancam a sobrevivência.

No fim do filme, quando o ouro é desperdiçado e derramado por bandidos ignorantes, cabe ao velho Howard reagir com gargalhadas diante de tantos meses perdidos. E ele ensina o amigo jovem (interpretado por Tim Holt) a reagir da mesma forma.



Não há como não lembrar de outro filme sobre uma mineração que não dá certo, Zorba, o Grego (1964) de Michael Cacoyannis. Ali, na sequência final, vem abaixo o sistema de cabos e roldanas instalado para transportar os troncos de árvores (que forneceriam a madeira para escorar a mina). E o velho Zorba (Anthony Quinn) cai na gargalhada, e arrasta no riso o jovem Alan Bates. E os dois começam a dançar na areia da praia.


Como se diria no Nordeste, “desgraça pouca é meio de vida.”

Temos uma tendência a ver nessas duas reações, no final desses dois filmes, uma expressão de vida, de liberdade, um dar-de-ombros diante das perdas materiais. E é uma visão correta. Perdeu-se tudo?! Dane-se, bora fazer outra coisa.

O capitalismo tem um lado Yin e um lado Yang, um lado libertário e um lado trancador.

A visão Zorba, a visão Howard (curiosamente projetada, em ambos os filmes, em atividades de mineração) faz predominar no final o lado Yin da coisa. Um impulso que arrasta o capitalismo, um impulso de mobilidade, de ação: vamos tentar, vamos tentar de novo, vamos fazer outra coisa, mas com o mesmo espírito, depende só de nós.



O outro lado, a face Yang, é o do capitalismo meramente predador, a mandíbula come-come. O capitalismo-usura, o capitalismo acumulação-de-fortunas, o capitalismo ascético, sem prazer, sem alegria, o capitalismo insetóide que sabe apenas devorar. Os banqueiros bilionários e soturnos de terno preto, que almoçam qualquer coisa e cujo sofá da sala está puído.

O cinema passou um século, em filmes como estes, celebrando o lado alegre do capitalismo. O capitalismo-aventura, o capitalismo iniciativa-pessoal, o capitalismo jogo, cassino, roleta, de apostar tudo sem medo de perder. O lado Yin, que de certa forma seria expresso nesta estrofe do famoso “Se...” de Rudyard Kipling (trad. Guilherme de Almeida):

Se és capaz de arriscar numa única parada, 
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
e perder, e ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

Um resenhador mal-humorado diria que é por causa dos Zorbas vestindo Armani que a Lehman Brothers quebrou e o Fyre Festival deu com os burros nágua.

Fazer o quê? O capitalismo tem esse lado vibrador, dinâmico, individualista. O sujeito hoje está na capa de todas as revistas econômicas do Ocidente e poucos anos depois está na cadeia. Qual o problema? “Dane-se, quando a gente sair, bora fazer outra coisa.”

A Sierra Madre é a Mãe Natureza, está sempre ali, aberta, disponível, expondo suas riquezas mais íntimas, “como uma mulher nua deitada à luz do sol”.  Alguns, como o velho Howard, querem tirar apenas o que precisam para levar uma vidinha tranquila, voltada para outras coisas.

Outros são os Fred Dobbs, os Pac-Men obcecados, os famosos wonder-boys que pensam apenas no próximo bilhão de dólares. Diante deles, que se cuidem a Sierra Madre e o rio Paraopeba.