quarta-feira, 6 de novembro de 2019

4520) Sete perguntas que um tradutor passa a vida ouvindo (6.11.2019)




1) Qual o dicionário a gente deve usar?

BT – Uma resposta teoricamente correta seria “um dicionário para cada assunto possível e imaginável”, mas como em cada assunto há opiniões divergentes, formações distintas, backgrounds com maior ou menor confiabilidade, seria melhor dizer “uma boa quantidade de dicionários diferentes sobre qualquer assunto possível e imaginável”. Ou seja: se conforme, compre os que seu bolso alcançar, não despreze a Web, tenha um rodízio de colegas pra encher o saco alternadamente, e boa viagem. Meu dicionário preferido é o Inglês-Português de Antonio Houaiss (Ed. Record).



2) É verdade que existem palavras em outras línguas que não existem em português?

BT – Sim, e o vice-versa também é verdade (embora isto não nos traga nenhuma compensação, quando estamos traduzindo). Mas uma verdade essencial da tradução é: A gente não traduz palavras, traduz frases. Traduz aqueles trechos entre um ponto e outro. O importante é que a frase em português esteja próxima da frase original, mesmo que para isto seja necessário às vezes substituir uma palavra difícil do original por uma idéia aproximada, um circunlóquio, uma pequena descrição, uma nota de pé de página... Deve-se lutar por uma palavra até o fim, mas sabendo que há casos onde vai ser preciso deixá-la na beira da estrada e seguir em frente.



3) Você aprendeu inglês com que idade?

BT – Aprender uma língua não é um acontecimento que pode ser datado, é um processo, que na verdade não acaba nunca. Para reduzir ao absurdo: aprender uma língua seria saber o significado de todas as palavras dessa língua, mas isso nem os nativos do outro país sabem. Nós mesmos não “sabemos português”, se a definição for essa, porque há milhares de termos cujo significado a gente não conhece. Aprender línguas é um processo constante de expansão. Qual o momento em que a gente sabe o suficiente para traduzir? Não há esse momento. O único critério é o da prática: quando a gente se apresenta numa editora querendo traduzir profissionalmente, eles nos dão um texto para traduzir (geralmente m capítulo de um livro), e um prazo. Dependendo do resultado, eles nos aceitam, ou então nos dizem para estudar mais. Isso varia de editora para edtora.



4) É preciso ter morado no outro país para ser tradutor naquela língua?

BT – Não. Morar na França ajuda muitíssimo a entender e falar o francês, morar na Itália ajuda com o italiano, e assim por diante. Mas isso não transforma ninguém em tradutor. Um tradutor é, por ordem de importância: 1) uma pessoa que escreve muito bem em sua língua natal, sendo capaz de manejar diferentes estilos e diferentes técnicas de escrita; e 2) uma pessoa que conhece bastante bem uma língua estrangeira. Não é porque um indivíduo morou 10 anos nos Estados Unidos que automaticamente se transforma num tradutor só porque “sabe bem o inglês”. Um tradutor é necessariamente, por definição, um escritor. Cabe a ele reescrever, no mesmo nível de qualidade, um livro escrito em outra língua por outra pessoa. Se não for um escritor, não será um tradutor.



5) Não é anti-ético consultar outras traduções do mesmo livro, feitas por outras pessoas?

BT – A gente consulta outras traduções como consulta um dicionário: para esclarecer dúvidas e para ter a segurança de que não está “comendo mosca”, deixando escapar algo por mera desinformação. Por outro lado, traduzir é interpretar, e cada tradutor interpreta a mesma frase de um modo diferente. Nem sempre isso tem a ver com o significado léxico das palavras, mas com o modo de interpretar o que foi dito. Houve ênfase? Houve ambiguidade? Houve ironia? Houve um tom tranquilo de afirmação de algo, ou houve um tom de arrogância, tipo “estamos conversados”? Toda frase (principalmente quando falamos de literatura, prosa de ficção) pode ser lida de diferentes maneiras, e às vezes a interpretação anterior de um colega nos ajuda a encontrar o “tom” exato da nossa frase, que vai ser diferente da frase dele.

É bom lembrar também que nem todolivro é bem escrito, nem todo escritor diz as coisas com clareza. Às vezes a cena é confusa, tem muita ação, muitos personagens ao mesmo tempo, e isso pode induzir o leitor (e o tradutor) a erros. Uma cena com muitas pessoas envolvidas recorre a “ele” ou “ela” e às vezes não é muito claro a quem o autor se refere. O tradutor precisa ir com cuidado. Às vezes o sujeito de uma ação não é muito óbvio, é preciso deduzir. Às vezes a descrição de um ambiente não foi muito clara, pensamos que a sala era maior (ou menor) do que é de fato, e isso influi na maneira como vamos descrever a ação.

Sem falar que os outros tradutores também cometem erros. Quem copia sem entender o que está copiando geralmente dá com os burros nágua. Quando estou traduzindo um clássico (como H. G. Wells, Raymond Chandler, etc.) geralmente compro uma tradução brasileira, uma portuguesa, uma em espanhol e uma em francês. E às vezes uma frase tem 4 interpretações diferentes.



6) Você escreve em inglês com a mesma facilidade com que traduz?

BT – Não. São duas coisas diferentes. Meu vocabulário em português é incalculavelmente mais amplo do que meu vocabulário em inglês. Quando vejo uma frase em inglês, consigo formar várias versões possíveis para ela, em português: trocando sinônimos, mudando a ordem das palavras, procurando um ritmo parecido com o do original, evitando cacófatos ou rimas involuntárias... A amplitude de escolha é muito maior. Quando vou dizer algo em inglês, conheço poucas palavras. É como se estivesse com as mãos e os pés atados, e avançasse dando pulinhos. Tenho menos vocabulário e menos formas-de-frase para me exprimir.



7) O livro mais difícil de traduzir é o Finnegans Wake de James Joyce?

BT – Não necessariamente. Os livros de Joyce são difíceis porque reúnem vários elementos que, isoladamente, já criam problemas para um tradutor: a) trocadilhos; b) palavras inventadas; c) referências culturais obscuras; d) gírias específicas locais; f) uso sistemático da paródia de jargões ou de estilos de escrita. Por outro lado, são livros bastante coloquiais, com um espírito lúdico muito grande e uma certa indisciplina, o que de certo modo autoriza o tradutor a arregaçar as mangas e ser criativo também, sem precisar ter remorsos. Eu diria que na área da literatura (deixando de lado as traduções técnicas, filosóficas, científicas, que são outro problema) um livro é difícil na medida em que depende de maneira crucial de certos efeitos verbais só possíveis de obter na língua em que o livro foi escrito. Por isso a poesia em geral é mais difícil do que a prosa, quando apresenta exigências de métrica, rima, cadência, acentuação obrigatória de sílabas, rigidez no formato da estrofe e assim por diante. Tudo isso é difícil de transpor para outro idioma, mesmo quando o vocabulário é simples.