sexta-feira, 15 de abril de 2016

4103) O psicógrafo Rogério Duarte (15.4.2016)




("Rogério Duarte", por Caó Cruz Alves)



Já conversei por cerca de meia hora com Rogério Duarte, o grande tropicalista agora falecido. Se me pagassem cem mil dólares por um relato desse papo eu teria que deixar passar a oferta, ou então recorrer aos meus talentos de ficcionista (ou às minhas licenças de cronista), porque não me lembro de nada. Foi no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande, num ano em que o tema central era A Contracultura (tem trechos da fala dele no YouTube). A conversa foi num grupo numeroso, no saguão do teatro, com o zum-zum-zum de muita gente em volta, num evento em que pelo menos algumas dezenas de pessoas presentes eram fãs dele.

Em 1968, Gilberto Gil lançou o seu famoso disco do fardão, o Gilberto Gil tropicalista. É o disco de “Domingo no Parque”, “Marginália II”, “Frevo Rasgado”, “Ele falava nisso todo dia”. Minhas músicas preferidas ali são “Domingou” e “Luzia Luluza”. A capa, atribuída a Antonio Dias e Rogério Duarte, é cheia de elementos pop. Na foto principal, Gil veste um fardão estilo Academia Brasileira de Letras, mas que também evoca o Sgt. Pepper’s dos Beatles, lançado pouco antes. Fotos menores mostram o cantor fazendo poses com uniformes e figurinos diferentes. Não sei avaliar o que, na parte visual, pode ser atribuído a Antonio Dias ou a Rogério. Parece com os dois. Mas no pezinho da contracapa aparecia um texto.

O texto era este aqui:

Eu sempre estive nu. Na Academia de Acordeão Regina tocando La Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta, pirata, guerrilheiro. E eu, do mais pobre da minha nudez, queria vestir todas. Todas, para não trair minha nudez. Mas eles gostam de uniformes, admitiriam até a minha nudez, contanto que depois pudessem me esfolar e estender a minha pele no meio da praça como se fosse uma bandeira, um guarda-chuva contra o amor, contra os Beatles, contra os Mutantes. Não há guarda-chuva contra Caetano Veloso, Guilherme Araújo, Rogério Duarte, Rogério Duprat, Dirceu, Torquato Neto, Gilberto Gil, contra o câncer, contra a nudez. Eu sempre estive nu. Minha nudez Raios X varava os zuartes, as camisas listradas. E esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa eu vou pro samba que você me convidou? Qual a fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as cores. A nudez é a soma de todas as roupas. (Texto de Gilberto Gil psicografado por Rogério Duarte)

É um texto bem da época, aquele fluxo de frases puxadas por associações de idéias, de imagens, de palavras, ao invés dos raciocínios cartesianos com começo, meio e fim, praticado pelos conservadores tanto da direita quanto da esquerda. Um dos grandes problemas do Tropicalismo com a esquerda não foi nem o cabelo nem as roupas de plástico, foi o questionamento dessa história de que tudo tem que ter começo, meio e fim.

Melhor que o texto era essa assinatura refratada, no final. Como minha família é cheia de espíritas kardecistas, inclusive minha mãe, eu sabia calcular o peso da palavra “psicografado”. E pensei: “ É isso, você pode psicografar uma pessoa que você conhece muito bem, porque conhecer bem uma pessoa é como ter na mente um filmezinho dela onde você pode ver-se ouvindo-a dizer isso ou aquilo com propriedade absoluta e achar que ela disse mesmo. Tudo isso, é claro, à revelia do de cujus, seja ele um morto ilustre ou um vivo indefeso."

Na casa de Jakson e Marcos Agra, junto à velha Estação Rodoviária de Campina, eram noites inteira de dedo apontado para cada elemento da capa, cada verso do encarte, quando havia. Foi nessa época que os discos começaram a trazer as letras impressas, uma grande novidade; talvez pela influência maciça de Sgt. Pepper’s. Algum de nós perguntou: “É possível psicografar uma pessoa viva? Como? Telepaticamente?”  Falei que essa seria a explicação de ficção-científica, mas que a explicação psicossemiótica, digamos, era essa que descrevi no parágrafo de cima.

Meu amigo releu o texto todo, cuidadosamente, aí bateu na linha final com o dedo e disse: “Eu sinto o dedo de Gilberto Gil nesse negócio”. Implicando, claro, que o texto seria do próprio Gil imitando o que, na cabeça de Gil, poderia ser Rogério imitando Gil. Esse meu amigo pronunciava “Gílberto Gil”, proparoxítono.

De modo que quando cheguei à “Autopsicografia” de Fernando Pessoa já havia terreno aplainado para ele passar, ou quando Silviano Santiago escreveu um romance de Graciliano Ramos, ou quando John Banville psicografou Benjamin Black que psicografou Raymond Chandler.

Há pessoas que imitam a voz de alguém com perfeição, e outras que sabem fazer sua assinatura de modo que nem ela mesma percebe que é falsa. Então, pode haver quem consiga pensar em nome de outro, produzir um texto, literário ou não, que poderia ter sido produzido pelo outro. Um texto que o outro ao tomar conhecimento e ler, dissesse sinceramente: “Nunca vi isso, mas puxa vida, é a minha cara. Eu já pensei algumas dessas coisas.”  O que Cervantes pensaria ao ler Pierre Menard.

Se o texto atribuído a Gil no álbum parece ou não com Gil é assunto para outro tipo de análise. Tem referências a Noel Rosa e a João Cabral (no poema dedicado a Drummond em O Engenheiro, 1942-45). Tem Caetano. Tem um pouco do espírito dos dois primeiros discos pop de Bob Dylan, com longas contracapas poéticas. Tem um pouco dos arranjos tropicalistas de Rogério Duprat, que muitas vezes não tinham nenhuma intenção melódica nem propriamente harmônica, eram comentários sonoros à canção. Mesma relação que ilustração/texto.

Um dos conceitos psicoestéticos mais interessantes da época foi esse estilhaçamento do “eu poético” como exercício de suporte para os violentos estilhaçamentos do eu pessoal que a sociedade de consumo (o termo era novo) impunha. A multiplicação de eus falsos para reduzir a pressão sobre o eu verdadeiro no centro de tudo, senão o cara endoidece. Como endoideceu Bispo do Rosário. Como o “homem duplo” de P. K. Dick (A Scanner Darkly, 1973). Como Edward Norton no Clube da Luta (1999). Fernando Pessoa não endoideceu, por mais que vestisse identidades novas a cada vez que sentava à mesa.

As pessoas psicografam a si mesmas o tempo todo: para enfrentar situações práticas diferentes, relacionamentos afetivos diferentes, ambientes de trabalho diferentes, culturas diferentes da sua cultura de origem. Usei em sala de aula uma vez um texto que falava dos três grandes golpes que o Homem tinha sofrido em sua empáfia cósmica. Com Darwin, ficou sabendo que era um animal igual aos outros. Com Freud, ficou sabendo que havia um outro eu dentro dele, tão ele quanto ele próprio, e que em geral era esse outro ele que mandava, não ele. Com Marx, ficou sabendo que as sociedades humanas estão sujeitas a gigantescos movimentos tectônicos da economia e da política, e que somos absolutamente impotentes e insignificantes diante deles. Não há como controlá-los individualmente. Mais fácil um indivíduo controlar a atmosfera.

Só nessa breve passada são três estilhaçamentos do eu, da primeira e da última certeza dos cartesianos. Depois que descobrimos que pensar não é prova de existir, agora só falta alguém vir me dizer que o eixo das coordenadas e abscissas também não existe.

Psicografar qualquer um é saber que é impossível ser esse um, mas que é permitido tentar aproximar-se dele como um limite, um horizonte de eventos inalcançável, num avanço negativamente exponencial onde cada passo à frente nos deixa mais próximos do 1 pretendido, mas ao preço de um avanço cada vez mais lento mesmo que nunca venha a cessar.

Pois bem: Rogério Duarte plantou essa faísca. Quando Chico Buarque, depois de “Com açúcar, com afeto”, começou a se especializar em canções numa primeira pessoa feminina, alguém da nossa turma falou: “Chico é o Chico Xavier da mulher brasileira”. É engraçado que o Tropicalismo acabou chamando a atenção da gente para um tal de Fernando Pessoa que fazia um cameo no famoso improviso oratório de Caetano, “Ambiente de Festival”, onde ele gritava para a platéia em fúria: “Hoje não tem Fernando Pessoa!”. Alguém perguntou, ouvindo o compacto simples: “E quem danado é esse Fernando Pessoa?” Outro coçou o bigode e respondeu: “Deve ser dos Pessoa de Umbuzeiro.”

Foi o bravo Fernando, psicografista emérito em mais de um sentido, quem melhor explicou num famoso texto seu conceito de poesia dramatúrgica (não sei se o termo é exatamente este). É aquela poesia onde o poeta não imagina apenas os personagens do drama que está a escrever, mas imagina um personagem a mais: o poeta imaginário que vai escrevê-lo. Os heterônimos nasceram assim.

Autores imaginários são mais interessantes do que personagens imaginários. Bustos Domecq, autor de algumas coletâneas de contos curtos e de ensaios, é um nome fictício adotado por Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares. Seus textos têm enredos extravagantes e cheios de alusões, mas os autores afirmavam se deleitar mesmo era com as paródias e os pastiches de vozes argentinas, faladas e escritas, familiares aos dois. Nos diários de Bioy (Borges, Buenos Aires, Destino, 2006) transparece o quanto se divertiam; era uma forma sofisticada de falar mal da vida alheia. E nessas horas, diz Borges, brotava o ectoplasma literário de uma terceira personalidade que não era nenhum dos dois, era uma síntese fictícia verbalizada em voz alta (um pouco como se faz com personagens de role playing game) e que nenhum dos dois conseguiria reproduzir sozinho.

Eu gostaria de jogar isto como mote numa conversa para Rogério Duarte, mas, dadas as circunstâncias, melhor deixar aqui para ele psicografar.