("Rogério Duarte", por Caó Cruz Alves)
Já conversei por cerca de meia hora
com Rogério Duarte, o grande tropicalista agora falecido. Se me pagassem cem
mil dólares por um relato desse papo eu teria que deixar passar a oferta, ou
então recorrer aos meus talentos de ficcionista (ou às minhas licenças de
cronista), porque não me lembro de nada. Foi no Encontro da Nova Consciência,
em Campina Grande, num ano em que o tema central era A Contracultura (tem
trechos da fala dele no YouTube). A conversa foi num grupo numeroso, no saguão
do teatro, com o zum-zum-zum de muita gente em volta, num evento em que
pelo menos algumas dezenas de pessoas presentes eram fãs dele.
Em 1968, Gilberto Gil lançou o seu
famoso disco do fardão, o Gilberto Gil tropicalista. É o disco de
“Domingo no Parque”, “Marginália II”, “Frevo Rasgado”, “Ele falava nisso todo
dia”. Minhas músicas preferidas ali são “Domingou” e “Luzia Luluza”. A capa,
atribuída a Antonio Dias e Rogério Duarte, é cheia de elementos pop. Na foto
principal, Gil veste um fardão estilo Academia Brasileira de Letras, mas que
também evoca o Sgt. Pepper’s dos Beatles, lançado pouco antes. Fotos
menores mostram o cantor fazendo poses com uniformes e figurinos diferentes.
Não sei avaliar o que, na parte visual, pode ser atribuído a Antonio Dias ou a
Rogério. Parece com os dois. Mas no pezinho da contracapa aparecia um texto.
O texto era este aqui:
Eu sempre estive nu. Na Academia de Acordeão Regina tocando La Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta, pirata, guerrilheiro. E eu, do mais pobre da minha nudez, queria vestir todas. Todas, para não trair minha nudez. Mas eles gostam de uniformes, admitiriam até a minha nudez, contanto que depois pudessem me esfolar e estender a minha pele no meio da praça como se fosse uma bandeira, um guarda-chuva contra o amor, contra os Beatles, contra os Mutantes. Não há guarda-chuva contra Caetano Veloso, Guilherme Araújo, Rogério Duarte, Rogério Duprat, Dirceu, Torquato Neto, Gilberto Gil, contra o câncer, contra a nudez. Eu sempre estive nu. Minha nudez Raios X varava os zuartes, as camisas listradas. E esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa eu vou pro samba que você me convidou? Qual a fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as cores. A nudez é a soma de todas as roupas. (Texto de Gilberto Gil psicografado por Rogério Duarte)
É um texto bem da época, aquele
fluxo de frases puxadas por associações de idéias, de imagens, de palavras, ao
invés dos raciocínios cartesianos com começo, meio e fim, praticado pelos
conservadores tanto da direita quanto da esquerda. Um dos grandes problemas do
Tropicalismo com a esquerda não foi nem o cabelo nem as roupas de plástico, foi
o questionamento dessa história de que tudo tem que ter começo, meio e fim.
Melhor que o texto era essa
assinatura refratada, no final. Como minha família é cheia de espíritas
kardecistas, inclusive minha mãe, eu sabia calcular o peso da palavra
“psicografado”. E pensei: “ É isso, você pode psicografar uma pessoa que você
conhece muito bem, porque conhecer bem uma pessoa é como ter na mente um
filmezinho dela onde você pode ver-se ouvindo-a dizer isso ou aquilo com
propriedade absoluta e achar que ela disse mesmo. Tudo isso, é claro, à revelia
do de cujus, seja ele um morto ilustre ou um vivo indefeso."
Na casa de Jakson e Marcos Agra,
junto à velha Estação Rodoviária de Campina, eram noites inteira de dedo
apontado para cada elemento da capa, cada verso do encarte, quando havia. Foi
nessa época que os discos começaram a trazer as letras impressas, uma grande
novidade; talvez pela influência maciça de Sgt. Pepper’s. Algum de nós
perguntou: “É possível psicografar uma pessoa viva? Como?
Telepaticamente?” Falei que essa seria
a explicação de ficção-científica, mas que a explicação psicossemiótica, digamos,
era essa que descrevi no parágrafo de cima.
Meu amigo releu o texto todo,
cuidadosamente, aí bateu na linha final com o dedo e disse: “Eu sinto o dedo de
Gilberto Gil nesse negócio”. Implicando, claro, que o texto seria do próprio
Gil imitando o que, na cabeça de Gil, poderia ser Rogério imitando Gil. Esse
meu amigo pronunciava “Gílberto Gil”, proparoxítono.
De modo que quando cheguei à
“Autopsicografia” de Fernando Pessoa já havia terreno aplainado para ele
passar, ou quando Silviano Santiago escreveu um romance de Graciliano Ramos, ou
quando John Banville psicografou Benjamin Black que psicografou Raymond
Chandler.
Há pessoas que imitam a voz de
alguém com perfeição, e outras que sabem fazer sua assinatura de modo que nem
ela mesma percebe que é falsa. Então, pode haver quem consiga pensar em nome de
outro, produzir um texto, literário ou não, que poderia ter sido produzido pelo
outro. Um texto que o outro ao tomar conhecimento e ler, dissesse sinceramente:
“Nunca vi isso, mas puxa vida, é a minha cara. Eu já pensei algumas dessas
coisas.” O que Cervantes pensaria ao
ler Pierre Menard.
Se o texto atribuído a Gil no álbum
parece ou não com Gil é assunto para outro tipo de análise. Tem referências a
Noel Rosa e a João Cabral (no poema dedicado a Drummond em O Engenheiro,
1942-45). Tem Caetano. Tem um pouco do espírito dos dois primeiros discos pop
de Bob Dylan, com longas contracapas poéticas. Tem um pouco dos arranjos
tropicalistas de Rogério Duprat, que muitas vezes não tinham nenhuma intenção melódica
nem propriamente harmônica, eram comentários sonoros à canção. Mesma relação
que ilustração/texto.
Um dos conceitos psicoestéticos
mais interessantes da época foi esse estilhaçamento do “eu poético” como
exercício de suporte para os violentos estilhaçamentos do eu pessoal que a
sociedade de consumo (o termo era novo) impunha. A multiplicação de eus falsos
para reduzir a pressão sobre o eu verdadeiro no centro de tudo, senão o cara
endoidece. Como endoideceu Bispo do Rosário. Como o “homem duplo” de P. K. Dick
(A Scanner Darkly, 1973). Como Edward Norton no Clube da Luta (1999).
Fernando Pessoa não endoideceu, por mais que vestisse identidades novas a cada
vez que sentava à mesa.
As pessoas psicografam a si mesmas
o tempo todo: para enfrentar situações práticas diferentes, relacionamentos
afetivos diferentes, ambientes de trabalho diferentes, culturas diferentes da
sua cultura de origem. Usei em sala de aula uma vez um texto que falava dos
três grandes golpes que o Homem tinha sofrido em sua empáfia cósmica. Com
Darwin, ficou sabendo que era um animal igual aos outros. Com Freud, ficou
sabendo que havia um outro eu dentro dele, tão ele quanto ele próprio, e que em
geral era esse outro ele que mandava, não ele. Com Marx, ficou sabendo que as
sociedades humanas estão sujeitas a gigantescos movimentos tectônicos da
economia e da política, e que somos absolutamente impotentes e insignificantes
diante deles. Não há como controlá-los individualmente. Mais fácil um indivíduo
controlar a atmosfera.
Só nessa breve passada são três
estilhaçamentos do eu, da primeira e da última certeza dos cartesianos. Depois que
descobrimos que pensar não é prova de existir, agora só falta alguém vir me
dizer que o eixo das coordenadas e abscissas também não existe.
Psicografar qualquer um é saber que
é impossível ser esse um, mas que é permitido tentar aproximar-se dele como um
limite, um horizonte de eventos inalcançável, num avanço negativamente
exponencial onde cada passo à frente nos deixa mais próximos do 1 pretendido,
mas ao preço de um avanço cada vez mais lento mesmo que nunca venha a cessar.
Pois bem: Rogério Duarte plantou
essa faísca. Quando Chico Buarque, depois de “Com açúcar, com afeto”, começou a
se especializar em canções numa primeira pessoa feminina, alguém da nossa turma
falou: “Chico é o Chico Xavier da mulher brasileira”. É engraçado que o
Tropicalismo acabou chamando a atenção da gente para um tal de Fernando Pessoa
que fazia um cameo no famoso improviso oratório de Caetano, “Ambiente de
Festival”, onde ele gritava para a platéia em fúria: “Hoje não tem Fernando
Pessoa!”. Alguém perguntou, ouvindo o compacto simples: “E quem danado é esse
Fernando Pessoa?” Outro coçou o bigode e respondeu: “Deve ser dos Pessoa de
Umbuzeiro.”
Foi o bravo Fernando, psicografista
emérito em mais de um sentido, quem melhor explicou num famoso texto seu
conceito de poesia dramatúrgica (não sei se o termo é exatamente este). É
aquela poesia onde o poeta não imagina apenas os personagens do drama que está
a escrever, mas imagina um personagem a mais: o poeta imaginário que vai
escrevê-lo. Os heterônimos nasceram assim.
Autores imaginários são mais
interessantes do que personagens imaginários. Bustos Domecq, autor de algumas
coletâneas de contos curtos e de ensaios, é um nome fictício adotado por Jorge
Luís Borges e Adolfo Bioy Casares. Seus textos têm enredos extravagantes e
cheios de alusões, mas os autores afirmavam se deleitar mesmo era com as
paródias e os pastiches de vozes argentinas, faladas e escritas, familiares aos
dois. Nos diários de Bioy (Borges, Buenos Aires, Destino, 2006)
transparece o quanto se divertiam; era uma forma sofisticada de falar mal da
vida alheia. E nessas horas, diz Borges, brotava o ectoplasma literário de uma
terceira personalidade que não era nenhum dos dois, era uma síntese fictícia
verbalizada em voz alta (um pouco como se faz com personagens de role
playing game) e que nenhum dos dois conseguiria reproduzir sozinho.