sábado, 24 de novembro de 2012

3039) O samba e o baião (24.11.2012)



(Donga)


A industrialização musical cria modelos e processos. Tudo que não for feito de acordo com o processo e que não fique parecido com o modelo soa como coisa falsa, e muitas vezes é uma coisa mais verdadeira, “the real thing”. 

Crianças que tomam água de coco em caixinhas longa-vida tomam susto ao ver um coco de verdade ser aberto. 

Espectadores veem um grupo numa praça fazendo teatro de rua, e perguntam “onde está o teatro”. 

Algo parecido acontece na música. O disco criou um formato padrão de canção popular, imposto a ferro e fogo durante um século; e pensamos que só é canção se for assim.

Nos anos 1940, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira começaram a escrever baiões que eram gravados com grande sucesso. O sanfoneiro de Exu lembrou uma toada que ouvia desde a infância, um pedacinho melódico muito simples, com versinhos soltos e saudosos sobre uma ave que foge do sertão por causa da seca. Cantarolou esses farrapos de música para Humberto, e logo os dois deram uma formatada final na melodia, que o letrista cobriu com estrofes simétricas. 

“Asa Branca” é esse produto híbrido entre pedaços de cantiga anônima e elementos novos, eruditos. Um verso como “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” não é verso da tradição oral, é verso feito de caneta por um leitor de José de Alencar.

Algo parecido ocorreu com “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado em disco, em 1917, e assinado por Donga.  

Assinado é bem o termo, porque Donga fez um apanhado de refrões, chamadas e batuques que eram cantados nas festas da casa de Tia Ciata, na “Pequena África” do Rio de Janeiro. 

Em seu livro Feitiço Decente Carlos Sandroni analisa em detalhe essa colcha de retalhos de toadas, e o modo como ela foi alinhavada às pressas para se enquadrar nos limites de tempo de uma gravação fonográfica. “Pelo telefone” gerou numerosas polêmicas, não só de autoria, mas também quanto ao fato de ser ou não o primeiro samba gravado. (Esta discussão está no saite Cifrantiga: http://bit.ly/10dgwwO).

A criação musical popular é solta, mutante, indisciplinada. Na cultura oral, todo mundo mexe nas músicas, tira e põe versos, muda o que não gosta ou o que não lembra.  

Já a indústria cultural precisa de critérios nítidos: tamanho fixo e formato fixo para as obras, autoria inequívoca, registro, e depois do registro ninguém mexe mais. Voz no vinil, cifra na partitura, letra no livro: a indústria precisa disso para uniformizar seus produtos. 

Cultura oral e indústria sempre trabalharam com conceitos opostos. É curioso que agora a Cultura Digital começa a arrastar esses conceitos para longe da indústria e para perto da cultura oral antiga.