segunda-feira, 22 de abril de 2019

4459) Em Meu Ofício ou Arte Soturna (22.4.2019)



(foto: Dylan Thomas)

Fiz uma tentativa de tradução de um dos poemas mais conhecidos do galês Dylan Thomas (1914-1953). Thomas é um poeta de um vigor verbal extraordinário. Espirituoso e grave, ele tem a destreza das imagens inesperadas, reveladoras, arrebatadoras, bizarras. Tem aliás um bom lote de contos fantásticos, todos escritos com verve e imaginação.

Abaixo, a minha tradução. O poema em inglês pode ser lido aqui:


***


Em meu Ofício ou Arte Soturna
(Dylan Thomas – tradução BT)

Em meu ofício ou arte soturna
neste exercício de noturna paz;
quando somente a lua vaga
e os amantes jazem na cama
abraçados às suas dores,
eu laboro à chama fugaz;
nem ambição nem pão me inflamam,
nem o canto-sereia dos mercadores
nem o marfim da ribalta;
a mim basta a modesta paga
daqueles corações ocultos.

Não é para o orgulhoso que se posta à parte
que escrevo, sob a lua furiosa,
nestas folhas ao vento;
nem para esses mausoléus de mortos
com seus salmos, seus rouxinóis.
É para os amantes: seus braços protetores
em volta dos ombros, em todos os tempos.
É para esses desinteressados, para esses desatentos;
que nem ligam para meu ofício e arte.

***

Já comentei aquele velho princípio segundo o qual “traduzir é perder, mas nós escolhemos a perda”.

Ou seja: às vezes o tradutor sacrifica a beleza do sentido de um verso para manter sua musicalidade; outras vezes sacrifica essa musicalidade para preservar uma alusão (mitológica, biográfica, qualquer coisa) que era cara ao poeta; outras vezes o tradutor manda essa alusão para o espaço em troca de reproduzir um efeito métrico de rara beleza.

Traduzir, entre outras coisas, é também negociar perdas e danos. A gente perde, mas pode escolher o que ganha.

Às vezes pode-se mandar a rima para o espaço, numa tradução. Neste caso, mandei para o espaço a métrica, porque o poema varia suas linhas entre 6-7 sílabas, e eu liberei este aspecto.

Por outro lado, tentei captar a idéia do que está sendo dito, e tentei manter a mesma disposição meio aleatória de rimas do original, que seria algo como ABCDEBDECCA-ABCDECCA. Não mantive sempre a correspondência fora da estrofe, ou seja, a rima “A” na primeira estrofe não é necessariamente a mesma rima “A” usada na segunda; no interior das estrofes, as rimas são obedecidas.


Notas

·        Quando um poeta rigoroso usa explicitamente uma forma clássica como o soneto ou o vilancete ou o hai-kai, ele se sabe vigiado. Um dos impulsos modernistas mais saudáveis é o de a certa altura, depois de decolar usando as formas clássicas, mandar as formas para o espaço e deixar que, se for uma história, ela se conte a si mesma, e se for poema, que ele invente sua própria dicção e sua cadência pessoal.

·        Não sei se a estrutura de rimas de “In my Craft...” corresponde a alguma forma clássica. São cinco rimas distribuídas em duas estrofes de onze e nove versos. Cada estrofe começa com cinco rimas diferentes em sequência. Na segunda, há dois versos a menos, e é como se a primeira estrofe tivesse perdido as linhas 6 e 7, e com elas as rimas BD no primeiro esquema.

·        Esta tradução aí ficou com uns versos quilométricos em relação às poucas sílabas do verso em inglês. Já me disseram, na editora, que na proporção de palavras uma tradução em português é 25% mais extensa do que o original em inglês. Se for verdade, todo poeta deveria ter direito a usar um quarto de palavras a mais ao traduzir um verso de Dylan Thomas ou de Bob Dylan.

·        E às vezes é preciso inventar um efeito porque não se pode aproveitar o do original, mas o que importa é que naquela linha, àquela altura do poema, precisa acontecer algo parecido.

·        Existe um verso de Shakespeare, mais de um talvez (que é isso, deve haver centenas), onde as dez sílabas são preenchidas com dez palavras diferentes, formando uma frase lógica e cristalina. Pode-se fazer o mesmo em português, mas é uma gincana, como compor um palíndromo ou um monovocalismo. Deve-se (pode-se) exigir isso do tradutor? Só se ele quiser, por amor à arte.

·        Toda tradução é uma proposta de criar algo que ainda não se sabe o que vai ser, só depois de criado. Traduzir é produzir uma obra que, naquele idioma, nunca tinha sido formulada por extenso.

·        Às vezes um poema nos seduz para traduzi-lo por ter uma idéia original, ou por um ritmo aliciante. Outros, porque aludem a um mito. Outros, porque usam uma linguagem inventiva. Em algum poema, o tradutor pode achar que as imagens visuais são mais importantes, no poema original, do que o rigor métrico, por exemplo. Ou vice-versa.

·        Essa escolha se reflete na tradução. O que era mais importante para o autor, ao escrever exatamente assim? Nunca saberemos, só nos é dado adivinhar e saltar no escuro. Traduzir é psicografar. Em termos literários, claro.

·        Alguém já disse: “O tradutor profissional deve fingir ser capaz de pensar igual ao autor, acreditando nisso o bastante para de fato canalizar o espírito verbal desse autor, e ao mesmo tempo desacreditando o suficiente para saber que é preciso não extrapolar. Traduzir é a melhor das tarefas: reescrever, uma reescritura aliás aprovada e encorajada pelo autor e pelos editores do original.”