terça-feira, 23 de junho de 2009

1120) A arte do quebra-cabeças (17.10.2006)




Todo mundo já brincou de quebra-cabeças na infância. Pode ter sido um daqueles mais simplezinhos, com desenhos da Turma da Mônica. Talvez tenha tido a sorte (eu não tive) de ser promovido àqueles que vejo hoje nas lojas de brinquedos, os famosos “puzzles” de 1.500 peças que mostram enormes castelos medievais ou deslumbrantes paisagens de florestas.

O quebra-cabeças propõe ao jogador o desafio de reconstituir a figura, baseado em dois critérios: a imagem e o corte. O corte das peças (que é padronizado) não coincide com a imagem. Se fosse assim era muito bom – a árvore era cortada em forma de árvore, o cachorro em forma de cachorro, etc. 

Corte e imagem, no quebra-cabeças, são, por definição, mutuamente irredutíveis. Não podem coincidir.

Georges Perec (“A Vida Modo de Usar”) cita o exemplo dos quebra-cabeças artesanais, de madeira, nos quais o artesão corta a peça individualmente, dando a cada uma um formato ligeiramente diferente do formato das outras, mesmo que num primeiro olhar as duas pareçam idênticas. Não há duas peças cortadas de modo idêntico nestes puzzles, e não há dois jogos idênticos saídos da mão do mesmo artista.

Nossa tarefa é encaixar as peças pelos dois critérios. Tem horas em que duas peças se encaixam pelo corte, mas não pela imagem. Tem horas em que parecem se encaixar pela imagem (digamos, dois pedaços de céu azul), mas não encaixam pelo corte.

Esse processo lembra a poesia, que também parece um “puzzle”. Isto pode se dar em dois níveis. 

Numa forma fixa, como o cordel ou o soneto, as frases gramaticais não coincidem com a extensão métrica dos versos e das estrofes. Ficam o tempo inteiro transbordando para a linha ou a estrofe seguinte. Uma das habilidades do poeta consiste em conseguir produzir um texto gramaticalmente fluente e ao mesmo tempo obedecer com rigor aos “cortes” que a métrica impõe ao discurso verbal.

Num nível mais elevado, a "imagem" é o conteúdo, tema ou assunto; aquilo que estamos tentando ler, entender. E o corte são as escolhas feitas pelo artista: as palavras que usou, o modo como organizou frases, versos, estrofes. 

Ler um poema corretamente não é lê-lo em função da “imagem”, embora ela deva estar presente em nossa atenção. Ler bem uma obra literária é lê-la tendo em vista os “cortes” verbais feitos pelo poeta, o seu modo pessoal de recortar a substância do poema, o seu “conteúdo”. Se nossa leitura não satisfizer plenamente esses cortes, será uma leitura errada, de peças que parecem se encaixar, mas não se encaixam.

Perec afirma que o “puzzle”, por estas características, não é um jogo solitário: 

“Todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”. 

É assim que o poeta, como um maestro, rege a leitura do poema.



(imagem de Perec recolhida no blog Besta Quadrada, de Halem Souza, Belo Horizonte)




1119) Para encurtar a história (15.10.2006)




Faz uns quinze anos. Eu tinha ido passar o feriadão na fazenda de um amigo, no interior de Pernambuco. Perto de lá ficavam as ruínas de um antigo Engenho abandonado. 

Durante o dia a gente caminhava e tomava banho de rio (era uma turma de oito ou dez pessoas); de noite, cerveja e violão. Depois do terceiro dia ninguém agüentava mais uma rotina tão estafante. Começamos a procurar alternativas. 

O dono da casa sugeriu que ficássemos fazendo hora até meia-noite e fôssemos para as ruínas do Engenho, aproveitando que era noite de lua. Por quê?, perguntamos. Ele explicou que o Engenho era mal-assombrado, e que à meia-noite apareciam coisas esquisitas lá. As esposas (havia várias esposas na turma) disseram que “nem mortas”, e que fôssemos nós, o contingente masculino. Um dos caras piscou o olho discretamente e disse que tudo aquilo era pretexto nosso para um encontro clandestino com algumas moçoilas da vila próxima. Houve um certo reboliço, e, para encurtar a história, acabou indo todo mundo.

O trecho acima é mentira, ou ficção, se quiserem. Inventei-o apenas para enaltecer as virtudes dramatúrgicas desta expressão, “para encurtar a história”, cuja utilidade nunca pode ser superestimada quando se trata da Arte da Narrativa. 

O leitor já terá ouvido referências ao Paradoxo de Zenão de Eléia; se não ouviu na Faculdade, ouviu aqui nesta coluna, que não fica devendo a muitas Faculdades que tem por aí (“O Paradoxo de Zenão”, 24.8.2005). É aquela situação filosófica em que antes de tomar uma decisão o sujeito examina um número tão grande de alternativas ou possibilidades que a decisão nunca chega a ser tomada. 

Do ponto de vista literário, isto se manifesta através de cenas onde personagens estão discutindo algo, e o autor, inebriado pela própria capacidade de saltar da mente de um para a mente do outro, e do outro, e do outro, acaba redigindo uma discussão interminável, cuja primeira consequência é fazer o leitor largar o livro e pegar outro.

Surge então esta agudíssima espada capaz de cortar de um só golpe o mais complicado nó dramatúrgico: “para encurtar a história”. Use-a com parcimônia, caro candidato a escritor, mas use-a sempre que sentir seus pés afundando na areia movediça de uma troca de argumentos onde ninguém consegue desferir o golpe final. 

Voltemos à nossa ficçãozinha aí em cima. Se isso for um conto, é claro que os rapazes e as moças discutiram por algum tempo mas acabaram indo ver o Engenho assombrado, sem o qual não haveria história digna de ser contada, não é mesmo? Botar personagens para discutir vantagens e desvantagens de algo, contudo, é uma armadilha onde a maioria dos ficcionistas novatos cai, e nunca mais consegue sair. Ele mostra um lado, o outro, um lado, o outro... 

Então, chega! O leitor já entendeu. O leitor quer ver serviço. Então, amigo, não hesite. Enfie a mão no bolso do colete, e puxe o papelucho mágico, onde está escrito: “Para encurtar a história...”





1118) O espírito cristão (14.10.2006)


(os Amish, no filme de Peter Weir)

Há alguns dias, nos EUA, um homem chamado Charles Roberts entrou numa escola da comunidade Amish, na Pensilvânia. Mandou todos os meninos saírem. Queria apenas as meninas. Ficaram dez garotas entre 8 e 12 anos. Ele amarrou todas, e atirou nelas de uma em uma, antes de se matar também. Cinco das garotas morreram, outras cinco estão hospitalizadas no momento em que escrevo. As escolas norte-americanas “têm um chama” para esses Exterminadores do Futuro, que agem como se quisessem matar um Messias qualquer mas tivessem que fazê-lo às cegas.

Os Amish são um grupo religioso conservador, concentrado em alguns estados ao Nordeste dos EUA. Eles recusam coisas como a eletricidade, o automóvel, o telefone, etc. Muitos hão de se lembrar do filme A Testemunha, onde Harrison Ford, no papel de um policial disfarçado, vai viver numa destas comunidades para proteger um garoto que presenciou um assassinato. Após o crime da Pensilvânia, um grupo de 30 ou 40 pessoas da comunidade Amish foi ao enterro do criminoso, para prestar solidariedade à família. Quando eu leio uma coisa assim, perco o prumo. Se eu tivesse uma filha de dez anos e ela fosse rendida, amarrada e fuzilada a sangue frio por um sujeito, eu não compareceria ao enterro dele. Faria o possível para comparecer ao linchamento.

Como sou agnóstico na teoria e cristão na prática, é claro que não lincharia ninguém. Sou até contra a pena de morte. Mas descubro que os Amish, com seus chapéus largos, suas barbas soturnas, seus cabriolés negros, são muito mais cristãos do que eu. Li em algum lugar que sua prática religiosa (eles são cristãos anabatistas, de origem suíço-alemã) se baseia em dois conceitos. Um é o de “Gelassenheit”: submissão à vontade de Deus, deixando que as coisas sigam seu próprio rumo; e “Demut”, humildade, que para eles é o contrário de “Hochmut”, arrogância, orgulho, “húbris”. Os Amish cultivam a solidariedade, e sua recusa às máquinas deve-se em parte a acreditarem que estas diminuem a necessidade do trabalho coletivo e do apoio mútuo. Eles rejeitam a competitividade, a vaidade pessoal (não gostam de fotografias), o individualismo.

Vai daí que, depois de sepultadas as suas próprias crianças, eles se aprontam, trocam de roupa, pegam as charretes e vão confortar a viúva e os filhos pequenos do criminoso, porque acham que aquela família, tanto quanto as deles, foi vítima de uma tragédia. Seu senso comunitário os leva a solidarizar-se até mesmo com aquela família que não pertence à sua comunidade, mas que, por causa do crime cometido por um de seus membros, uniu-se a eles. Um antigo e profundo mote de Cantoria de Viola diz: “Chora a mãe do assassino / e a mãe do assassinado”. Um crime de morte é sempre uma tragédia com duas vítimas, porque pior do que morrer, para muitas religiões, é matar. No mito bíblico do primeiro assassinato, quem sofreu mais, a mãe de Abel ou a mãe de Caim?

1117) A linguagem dos sonhos (13.10.2006)




A afirmativa de Sigmund Freud de que a linguagem dos sonhos funde numa mesma imagem objetos contraditórios, é facilmente comprovada. Sempre que alguém conta um sonho, diz coisas como: 

“Eu estava na minha casa, só que minha casa era um navio. Aí chegava minha tia Florisbela, que vinha passar uns dias. A gente começava a arrumar um lugar onde ela pudesse dormir, na sala. Enquanto arrastávamos os móveis para abrir espaço ela me dizia que ia ficar apenas uma semana, mas aí já não era Tia Florisbela, era Madre Teresa de Calcutá”. Ou coisa parecida.

Uma característica do pensamento onírico (e agora estou falando por conta própria, não sei se o Dr. Freud concordaria) é que ele muda de idéia o tempo todo. Nossa mente sonhante começa a dizer uma coisa mas aí pensa melhor e a substitui por outra. 

Há quem ache que isto é feito pela nossa rememoração, depois de acordar; eu acho que ocorre durante o próprio sonho.

Essas substituições absurdas e inesperadas se parecem muito com os processos de idas e vindas durante o trabalho criativo da ficção. Quando temos uma idéia para escrever uma história, essas mudanças são freqüentes: 

“Já sei. Vou escrever um cordel sobre um casal que tem três filhos. Não, três filhos homens é muito clichê. Vou dizer que são três mulheres! Aí todas três têm um sonho que precisam ir num reino distante. A filha mais velha parte, mas aí se perde no caminho e fica presa numa caverna. Não, melhor dizer que ela cai num poço. Aí a segunda filha sai, e é presa por um feiticeiro. Ou melhor: ela é enfeitiçada por ele, mas não percebe. Aí a filha mais nova sai e no caminho encontra três pássaros que querem ajudá-la. Ou melhor: um pássaro, um sapo e um peixe”.

Já falei aqui do estudo de Freud sobre palavras iguais que significam coisas opostas. Isto mostra o quanto a linguagem onírica é literária. Me traz a mente uma frase de Machado de Assis, ao descrever uma mulher já madura: “Uma senhora que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo”. 

Toda a força do trecho reside nesta palavra com dupla negação, à primeira vista desnecessária. Ele poderia dizer: “Ornara os salões do primeiro reinado, e ornava então os do segundo”. Mas reconhece implicitamente que a beleza da dama acusou a passagem do tempo; já não orna tanto quanto antes. Mas ao mesmo tempo se corrige: ora que diabo, já não é mais tão bela, mas também não é feia! Não desorna! 

E esta dupla negação, de braço dado com esse verbo um tanto raro (mesmo dicionarizado, o verbo “desornar” não é de uso corrente) são os sintomas visíveis do processo interno de dúvidas, recuos e auto-correções do autor à medida que a pena corre no papel. Ele vai caminhando, recua um passo, avança dois... 

O resultado é uma palavra pouco comum, resultado de sucessivas interferências. Palavra que é sintoma do vai-e-volta da mente que a gerou, exatamente como as imagens de um sonho.