domingo, 22 de dezembro de 2019

4534) Leituras 2019 - 1 (22.12.2019)




Os jornalistas têm uma rotina decemberista onde comentam as novidades do ano que se encerra. Não é o meu caso. Como ninguém me paga para monitorar os lançamentos, me desobrigo de acompanhá-los, o que é um alívio. Só leio um livro novo se me interessar muito e não for muito caro. Minha leituras são fruto do acaso (pessoas que encontro e que me dão seus livros), das amizades (livros remetidos por amigos, conhecidos e desconhecidos), e de impulsos inexplicáveis que me fazem pegar, hoje, um livro que estava intocado na estante há mais de 25 anos. Por que logo hoje? Não sei, e não preciso saber.


Poesia

Leio muita poesia, mas tenho o defeito (e sei que é defeito) de na maior parte do tempo estar lendo e relendo os mesmos vinte poetas que já leio há meio século. Fazer o que? Não leio para saber de novidades. Leio para saber se o que fazia sentido continua fazendo. (Spoiler: nem sempre faz.)

Mesmo livros de poesia, que em geral são fininhos e têm vastos latifúndios de página em branco, eu não leio do começo ao fim. Livro de poesia é como caixa de chocolate. De vez em quando a pessoa vai lá e saboreia um.

Eu tenho amigos poetas que não leem os livros dos amigos, nem sequer os meus, com esta imbatível desculpa: “Não quero correr o risco de ser influenciado pelos meus adversários.” Eu não vejo os outros poetas como adversários, assim como não vejo como adversários (nem sequer como concorrentes) aquelas pessoas silenciosas e resignadas na fila da Lotérica. Estão ali fazendo sua fezinha, tal como eu.

Dito isto, destacarei entre muita boa poesia que li uns poucos livros. Um deles é de um poeta que não conheço pessoalmente, Izalco Sardenberg, e me foi enviado através de um amigo comum. É um poeta da minha idade e de leituras aproximadas às minhas, o que de certo modo aproxima os diapasões. O livro é Remissão (São Paulo: Amar-Amaro, 2019), onde se leem coisas como:

Choro por besteira,
um dia chorei ao ver a mãe
com o filho de perna mais curta que a outra.
Iam de mãos dadas, sob a guarda de um anjo cruel.
Chorei ao ouvir no Spotify uns versos
que não entendi (mas os sons, encadeados
e escandidos naquela voz eram tão belos).
Talvez seja hora de desistir,
talvez suba de novo a montanha de lava
e então encare a boca ardente.  (p. 16)

Outro poeta da mesma geração é o nosso paraibano-por-consagração W. J. Solha, que nos últimos anos vem desenvolvendo em linhas paralelas uma série de romances muito pessoais sobre a Paraíba e o sertão paraibano, e uma série de livros de poemas em versos longos, salpicados de divertidas rimas internas, onde ele rastreia, identifica e coleciona as “rimas do mundo”, as pequenas continuidades que parecem tornar a nossa civilização uma obra de arte escrita por uma consciência coletiva.

O livro da vez é Vida aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019), onde ele comenta:

O trem, a enferrujar na mata que lhe sobrepuja os trilhos,
não se altera ante o outro que – de repente – ao lado lhe aflora,
a quinhentos quilômetros por hora.
Vida... é isso que te põe ao lado da estrada.  (p. 33)


Li muitos cordéis este ano, em função de uma série de TV que escrevi (No País da Poesia Popular, Truque Produções, Bahia, direção de José Araripe, lançamento previsto para 2020 no CineBrasilTV). Comentei vários deles aqui no Mundo Fantasmo ou em redes sociais. Vou destacar um, pela ousadia da idéia e pelo vigor da linguagem: Veredas – versão em cordel, de Edmilson Santini (Rio: ed. Do autor, s/d).

Santini faz num cordel de tamanho padrão um resumo dramatizado dos episódios principais do romance-fluxo de Guimarães Rosa, o Grande Sertão. Usando estrofes de extensão variável, mas sempre coladas à sextilha e à décima, e seus esquemas de rima tradicionais, ele recria a prosa de Rosa com seus recursos, que não são poucos, e produz um cordel com medidas iguais de reverência e de originalidade.

Diadorim, toda gateza,
o ódio, a faca, a vantagem:
seus verdes olhos: Coragem;
Coração, toda afoiteza...
Frente à tamanha proeza,
puxei da mente meus ais,
do fundo dos embornais,
tirei alegre um suspiro;
num clim de costelas, um tiro!
Ele arriou pra jamais...  (p. 35)


São amostras, apenas. Como falei acima, não faço balanços minuciosos da produção literária. Deixo isso para os profissionais.


Memorialismo

Por gosto pessoal e eventualmente por leituras de trabalho, acabo entrando em contato com livros de pessoas que em forma de crônicas, autobiografias ou relatos confessionais falam do passado, de suas experiências, do tempo que viveram sobre a terra.


Falam de sua história familiar, como o cearense Arievaldo Viana em Sertão em desencanto (Fortaleza: Queima Bucha, 2016), uma reconstituição que parece escrita a quatro mãos por um historiador e um memorialista. O primeiro retraça as árvores genealógicas de várias gerações até um passado distante, com nomes, datas e locais escrupulosamente anotados. O segundo vai pincelando comentários ao longo dessa história, registrando lembranças, encontros pessoais com um avô ou avó, histórias pitorescas ou estranhas que passam de geração em geração como uma moeda rara que se pode dar de presente mas é proibido gastar.

Numa raia parecida corre o livro Novas cartas do sertão do Seridó (Natal : edição do autor, 2009) de Paulo Bezerra “Balá”, que já comentei mais extensamente aqui no blog. Paulo Balá, já falecido, era um fazendeiro da velha estirpe, afeito ao trabalho manual e à lida com os trabalhadores. Seu livro reconstitui histórias de época, personagens esquecidos, e principalmente serve como um documento valioso de hábitos, costumes, técnicas, detalhes da vida cotidiana nas velhas fazendas nordestinas, que ele registra com olho infalível e uma prosa sóbria e vívida.



A crônica curta e leve também cumpre esse papel, e foi pra mim uma surpresa agradável o livro Onde davam esses trilhos, de Lido Loschi (Vitória: Cousa, 2019). O autor é ator do grupo Ponto de Partida, de Barbacena (MG) e suas crônicas são todas sobre lembranças de infância. Em vez do tom meramente nostálgico e individualista do “que saudades que eu tenho da aurora da minha vida”, o livro de Lido Loschi é cheio de episódios de traquinagens (algumas meio cruéis), brincadeiras, tristezas, desobediências, aventuras que tanto terminam bem como mal, a excitação coletiva de garotos que vivem na fazenda e parecem ter o mundo à sua disposição. A prosa não é nostálgica nem sentimental: narra e descreve em palavras poucas mas precisas.

Outra surpresa foi ter folheado um volume memorialístico carioca, Antonio’s – caleidoscópio de um bar (Rio: Record, 1992), de Mário de Almeida. O Antonio’s foi um bar famoso do Leblon carioca, frequentado por músicos da Bossa Nova, artistas plásticos, escritores, diplomatas, cineastas, jornalistas e o escambau, além de políticos importantes e gente com muita grana no bolso. Seu administrador, o Manolo, era um boa-praça que cuidava dos fregueses e eventualmente lhes servia de psicanalista, confessor, avalista, enfermeiro, consultor conjugal, e sei mais o que. É a história de algumas décadas da boemia carioca, com muitos textos do autor Mário de Almeida, e numerosas contribuições fornecidas por boêmios famosos e saudosos.


E gosto de pessoas contando (meio egoisticamente, mas somos todos egoístas) os episódios da própria vida, naquela narrativa eu-eu-eu onde o resto da humanidade aparece com meros coadjuvantes. É o caso do excelente Vivir para contarla, de Gabriel Garcia Márquez (já traduzido no Brasil). Márquez tem o dom da narração, e este livro tem camadas superpostas de memorialismo familiar (talvez um terço dele se ocupe das peripécias da conquista da mãe pelo pai), relato da vida política da Colômbia (que conheço muito pouco), apanhado de leituras, descobertas e influências. Pulando de Aracataca para Cartagena, daí para Bogotá, daí para alguma outra cidade, Márquez acumulou a experiência pessoal no trato com pessoas que acabou encorpando de maneira única o seu “realismo mágico”. É um livro longo, cheio de idas e vindas, que depois da última página dá uma vontade danada de voltar para a primeira e começar a re-entender tudo aquilo.