quarta-feira, 19 de março de 2008

0290) Numerologia e destino (24.2.2004)




Assim como existem pseudo-ciências como a Numerologia, que fornece explicações transcendentais baseadas nos números, existem ramos na Matemática dedicados ao estudo das coincidências numéricas. A maioria das pessoas se maravilha diante das coincidências, achando que elas são um recado do Destino. É engraçado como as pessoas atribuem um significado místico a um número qualquer e aí passam a ver esse número em toda parte. O número 3, por exemplo. É a Santíssima Trindade, os três poderes da República, os três estados da matéria (sólido, líquido e gasoso); a Terra é o terceiro planeta em redor do Sol; o Tempo se divide em 3 fases (passado, presente e futuro)... Parece óbvio, então, que alguma coisa na Natureza, ou na Divindade, se comunica conosco através do número 3. Quanto ao 7, nem é bom falar: as 7 artes, as 7 notas musicais, as 7 cores do arco-íris... Pouco importa que tudo isto sejam construções culturais nossas: onde quer que o “número mágico” apareça, vale como prova de que significa alguma coisa.

Se fôr assim, nada me impede de imaginar que o Número Mágico, aquele que guarda em si a Explicação Final do Universo, é, por exemplo, 1.651. Ele está por toda parte. Só não o percebemos porque, ao contrário do 3 ou do 7, ele é difícil de enxergar. Mas quem me garante que não é este o número de folhas destas árvores que vejo agora, pela minha janela? Quem me garante que os eventos decisivos de minha vida não estejam acontecendo a intervalos de 1.651 dias (ou horas)? Quem me garante que entre as pessoas que cruzam comigo na rua não é a pessoa 1.651 que me traz uma influência positiva? Quem me garante que se eu sair dividindo todos os números da minha vida por 1.651 não encontrarei coincidências inexplicáveis e perturbadoras?

Qualquer coisa que possa ser descrita em números pode ser teorizada numerologicamente. É sintomático que os sobrenomes de Lincoln e Kennedy tenham 7 letras, e que os nomes completos de seus assassinos (John Wilkes Booth e Lee Harvey Oswald) tenham quinze!! Isto deve significar alguma coisa, sem dúvida. (Pouco importa se com os nomes completos dos presidentes e os sobrenomes dos assassinos a conta não bata). Coincidências numéricas são as mais fáceis de perceber, porque tudo no mundo pode ser contado, portanto vivemos num oceanos de uns, de dois, de três, de quatros, de cincos, de seis, de setes, de oitos, e assim por diante, a perder de vista. É o mesmo que ocorre com figuras geométricas básicas: o círculo, a cruz, o triângulo... Para onde a gente se vire, encontre uma variante delas, e tudo começa a parecer uma conspiração cósmica que nos envia mensagens cifradas.

A melhor sátira já feita a esta mania está em O pêndulo de Foucault de Umberto Eco. Mas devemos ter paciência com esse viés paranóico da mente humana. Quem me garante que em cada 1.651 teorias numerológicas não há uma que seja verdadeira? Isto basta para justificar os fracassos restantes.

0289) A Bíblia e a criptografia (22.2.2004)




Ontem falei sobre Cabala e criptografia, e não tive tempo (ou melhor, espaço) para entrar no assunto do Código da Bíblia. Um livro com este título foi publicado em 1997 pelo jornalista americano Michael Drosnin, e ficou um tempão nas listas de best-sellers, inclusive aqui no Brasil. Drosnin afirma que matemáticos israelenses descobriram, graças a um sistema de permutações, que o texto em hebraico da Bíblia está cheio de alusões a acontecimentos modernos, desde o assassinato de Yitzhak Rabin até a eleição de Bill Clinton e a invenção do avião pelos irmãos Wright.

Como descobriram? Bem, o computador procura quantas letras é preciso saltar a intervalos regulares para achar um nome próprio (a Bíblia tem 304.805 letras). O nome de Rabin, por exemplo, aparece quando se salta de 4.772 em 4.772 letras. O texto completo, então foi disposto em 64 fileiras de 4.772 letras. Disposto desta forma, é possível encontrar na proximidades do nome palavras como “assassino que assassinará” e “Amir” (o nome do fanático que o matou).

Há várias refutações científicas deste processo. O leitor que quiser se aprofundar pode ir à página de Brendan McKay (onde ele mostra que, usando os mesmos artifícios, pode-se encontrar em Moby Dick previsões dos assassinatos de Indira Gandhi, Leon Trotsky e muitos outros), em: http://cs.anu.edu.au/~bdm/dilugim/torah.html. Outra página com dezenas de links para investigações semelhantes é a de Jochen Katz, “Mathematical Miracles in the Qu´ran and the Bible?”, em http://www.answering-islam.org.uk/Religions/Numerics/ .

Tudo isto me veio à mente dias atrás, quando fui parar no saite Cryptographever, que se oferece para encontrar mensagens cifradas em qualquer texto que a gente forneça. Vi uma dica no weblog MetaFilter (http://www.metafilter.com/) e fui lá. Havia um campo para preencher com um texto em inglês. Como pediam um texto longo, achei mais simples digitar algo que sabia de cor, e copiei lá a letra de “She´s leaving home”, uma das minhas músicas preferidas dos Beatles: “Wednesday morning at five o´clock, as the day begins...” Copiei, cliquei no botão, e daí a pouco veio a resposta. No meio das letras entrelaçadas, destacava-se verticalmente a frase: “John dreams”. “John sonha”! O impacto foi tão grande que descartei de cara, por irrelevante, o fato de que a música é de Paul. Fiquei alguns segundos suando frio, e acreditei estar catucando algum segredo do Universo.

Aí voltei lá no Metafilter. O sujeito que administra o blog, Matt Haughey, diz que quando submeteu a esse sistema todas as mensagens daquele dia no saite, encontrou “Buy now share” (“compre ações agora”); examinando as do dia anterior, encontrou, adivinhe o quê? “John dreams!” Foi um balde de água fria na minha epifania. Como diria o próprio John, “vamos ficar jogando nossos jogos mentais para sempre, projetando nossas imagens no espaço e no tempo”.

0288) O Código da Bíblia (21.2.2004)





(Tabela criptográfica de Giovanni Della Porta, séc. XVII)

Creio que o leitor já terá ouvido falar da Cabala. Para ouvir falar nela não é preciso freqüentar o Centro Internacional de Estudos Judaicos, ou folhear a obra de Jorge Luís Borges. Basta assistir os talk-shows da televisão brasileira, onde volta e meia aparece uma atriz de TV e madrinha-de-bateria-de-Escola-de-Samba dizendo que nas horas vagas, para “relaxar da agenda estressante”, está se dedicando ao estudo da Cabala. (Existem também aquelas modelos internacionais que dizem estar estudando Física Quântica, o que me desperta um imediato desejo de passar noites inteiras perscrutando os recessos mais íntimos de um tema tão palpitante).

Por que essas pessoas estudam a Cabala? Bem, porque diz-se que na Cabala estão registrados, em código, todos os mistérios do Universo, as respostas para nossas angústias e aflições nesta Passagem de Milênio, e, quem sabe, o segredo de comer chocolate sem aumentar de peso. Vai daí, as livrarias estão repletas de livros sobre o assunto, o que me lembra aquela famosa frase de um anti-semita involuntário: “A única coisa que me interessa na cultura judaica é a Cabala.”

A Cabala, curiosamente, é uma invenção ibérica. Surgiu naquela misteriosa região transgeográfica onde se misturam o norte da Espanha e o sul da França, um caldeirão de misticismo que deu origem às peregrinações do Caminho de São Tiago, aos movimentos heréticos da região da Provença, como os Cátaros. A Cabala é um sistema de combinações verbais e numéricas das palavras da Bíblia. Ela se aproveita do fato de que na língua hebraica as letras e os números são indicados pelos mesmos sinais, portanto A e 1 são a mesma coisa, B e 2, e assim por diante. Pressupõe-se que, através de mil permutações, chega-se a mensagens ocultas por trás do texto aparente da Bíblia.

Variações deste princípio básico surgem e desaparecem ao longo dos séculos. Do século 19 em diante, a escalada do jogo político e militar entre as grandes potências fêz ressurgir o interesse pela criptografia, a ciência de criar códigos e produzir mensagens secretas. Governos começaram a investir uma grana pesada nesta ciência. Por um lado, queriam proteger seus próprios segredos; pelo outro, queriam ficar sabendo dos segredos de seus adversários (e aliados) políticos. Todo um ramo da matemática floresceu nesse século, pela necessidade de estudar processos de codificação e decodificação de textos. No século 20, durante a II Guerra Mundial, a nascente ciência da Informática foi de grande utilidade para “quebrar” os códigos dos nazistas e obter vantagens estratégicas. O filme Enigma, de Michael Apted, documenta um aspecto interessante desta guerra invisível. Hoje, é possível usar computadores para fazer bilhões de combinações de letras e números em tempo recorde, o que dá aos cabalistas em potencial um enorme adianto em relação aos caras da Idade Média, com suas penas de ganso e seus tinteiros. Falei, falei, e ainda não cheguei no Código da Bíblia! Fica para amanhã.

0287) O novo latim (20.2.2004)




Dias atrás vi numa livraria um ensaio sobre a obra de Ítalo Calvino, um dos meus escritores preferidos. Dei uma folheada; o índice prometia, o preço não estava fora do alcance (bastava ficar na ponta dos pés), mas antes de levar até o caixa abri lá pelo meio para espiar um começo de capítulo – e quase caí para trás. Não decorei, nem posso copiar porque não comprei o livro. Mas o capítulo começava mais ou menos nesse tom, um tom que conheço muitíssimo:

“Coloca-se-nos, portanto, a imposição de traçar o viés ideológico, e de reunir um ferramental teórico capaz de delimitar os diversos eixos de actância presentes na Obra, sem perder de vista as condicionantes psicossociais fundadoras do ato linguístico do Autor, ao mesmo tempo Fulcro e Eixo, ponto para onde convergem e de onde se irradiam as reelaborações linguísticas do material socialmente herdado, cadinho de transformações sígnicas, de sublimações arquetípicas, pois que no transcurso entre a página e a mente do leitor, o Texto desvenda-se em sua natureza última de Fluxo coalescente, de orquestração polissêmica do Indizível.”

E pá e bola. Os amigos acadêmicos me desculpem, mas... isso pega? Parece que sim. De vez em quando eu pego um volume de ensaios, uma revista universitária, ou mesmo uma obra literária qualquer prefaciada por um professor. Começo a ler o texto mas sofro uma travada nos neurônios e o livro escapole da mão, porque até a coordenação motora fica comprometida. Essa algaravia acadêmica, inchada de modismos e de jargão técnico, é o pior vírus no mundo da teoria literária.

Existem saites na Internet dedicados a criticar esses exemplos de teratologia estilística, ou monstruosidades verbais. O “Bad Writing Contest” (http://www.cybereditions.com/aldaily/bwc.htm) premia todos os anos os mais intragáveis textos de prosa acadêmica. Não transcrevo um exemplo aqui, em primeiro lugar, porque são todos imensos – uma das regras do academês é justamente usar parágrafos de dimensões proustianas, com vocabulário de bula-de-remédio. E também porque teria que traduzi-los, e tenho medo de, depois dessa empreitada, nunca mais poder falar normalmente.

A teoria literária não precisa disto. Os melhores teóricos acadêmicos de literatura usam eventualmente uma linguagem complexa, mas também são capazes de se fazer entender em língua de gente, como demonstram os textos de Roland Barthes e de Umberto Eco. Críticos como Edmund Wilson (O Castelo de Axel) e Erich Auerbach (Mimesis) nos ajudam a ler as obras, lêem as obras junto conosco, comentando, guiando, sugerindo. O mal que as escolas de Letras fazem por aí é empurrar o jargão goela abaixo dos alunos, e impedir que se expressem de outra forma. É como o perna-de-pau do circo que depois de um tempo só consegue andar nas pernas-de-pau, sem elas não acerta a dar um passo sequer. Se a língua acadêmica é um Novo Latim, está na hora de diluí-lo em português, em língua de gente.

0286) Viva a língua brasileira (19.2.2004)




Tem um monte de gente aí fazendo campanha contra a invasão de palavras inglesas em nossa língua. E logo eu, que sou tão americanizado, sou a favor. É ridículo a gente ver nas vitrines das lojas um letreiro com “Sale” em vez de “Liquidação”. (Querem o quê? Poupar tinta?) Ou então “Open” em vez de “Aberto”. Por outro lado, para algumas coisas a desgraça já está feita, e não acredito que alguém deixe de dizer “milkshake” para dizer “leite batido”.

O que me preocupa, contudo, mais do que isto, é uma invasão muito mais solerte, para a qual chamo sua atenção, leitor, se você é escritor, leitor, professor, aluno, jornalista, ou qualquer outra profissão que dependa da língua portuguesa. Estou falando do português mal traduzido. Convivo com isto o dia inteiro, porque é a regra em duas áreas a que me dedico: o rock-and-roll e a literatura de ficção científica. São dois universos anglofalantes, e é incalculável a quantidade de texto traduzido amadoristicamente, onde, por falta de conhecimento da língua portuguesa, as pessoas produzem verdadeiros monstrengos estilísticos.

Isso tem um efeito curioso. Muitos jovens escritores de ficção científica no Brasil só lêem livros em inglês ou livros americanos traduzidos para o português. Não lêem livros escritos em português! Não peço nem que leiam Eça ou Machado, mas que lessem, sei lá, Luís Fernando Veríssimo ou Millôr Fernandes ou Monteiro Lobato ou Fernando Sabino ou tantos outros que escrevem de uma maneira simples, criativa, direta, e cheia de substância brasileira.

Volta e meia vejo num livro uma frase tipo: “Ela tinha um belo, esguio, bronzeado corpo.” O que é isto? Em inglês o substantivo vem muitas vezes no fim de uma enumeração de adjetivos (assim como em alemão o verbo geralmente vem no fim de frases bem longas). A frase original deve ser algo como: “She had a beautiful, slender, sun-tanned body”. Ou seja: “Ela tinha um belo corpo, esguio, queimado pelo sol”.

Na TV, vemos o tempo inteiro alguém dizer, em vez de “Eu estou fazendo o melhor que posso, ou o melhor possível”, esta aberração: “Eu estou fazendo o meu melhor.” (“I am doing my best”). A tradução literal é o caminho mais curto para o absurdo, o idiota, o ilegível. Hoje mesmo li numa revista brasileira de quadrinhos: “A publicação deste livro só foi possível com a permissão do estado do autor”. A expressão original deve ser algo como “...with the permission of the author´s estate”, que significa “com a permissão dos herdeiros do autor, ou dos seus representantes, seus executores legais após o falecimento.”

Além disso, cada língua tem sua organização sintática, seu ritmo, sua necessidade de pontuação. O primeiro erro do tradutor inexperiente é ser fiel demais: por exemplo, colocando as palavras na mesma ordem em que aparecem no original, mantendo as mesmas vírgulas e mesmos travessões do original... Isto é mais sutil e mais perigoso do que um milkshake.

0285) O método de Josué (18.2.2004)



(BT e Carlos Newton Júnior)

Quando eu era universitário cheguei a pensar na possibilidade de estudar Letras. Como todo sujeito metido a bom escrevedor, eu achava que um curso de Letras me ajudaria a estudar técnicas, estilos, escolas literárias, etc., elevando ao quadrado meu talento. Por sorte ou por azar, alguns amigos meus entraram nesse curso antes de mim, e bastou acompanhar de-banda os estudos deles para que eu fugisse dessas tais faculdades como o diabo da cruz.

O curso me atraía porque eu sonhava com uma visão mais científica da literatura. Estava cansado da crítica literária que não dizia nada, tipo: “É um poema brilhante, cheio de belas imagens, onde o poeta Fulano demonstra mais uma vez sua habilidade no trato da palavra, e a sua sensibilidade para com os problemas humanos...” Expanda isto por dez páginas e você tem um exemplo da maioria das críticas que saía por aí. Falava-se, falava-se, e nada de substancial era dito. Daí o interesse que senti pelos textos críticos dos poetas concretos de São Paulo, e pelos teóricos elogiados por eles (Ezra Pound, Jakobson). Esses caras, pelo menos, iam direto à Palavra, à coisa concreta, real. Pela primeira vez (eu tinha 18, 20 anos) a literatura de Joyce fêz sentido; e consegui ler corretamente pela primeira vez poetas como Edgar Poe, que eu pensava que conhecia.

O problema é que a abordagem científica do texto acabou tornando-se uma franquia exclusiva de grupos estruturalistas, que transformaram o estudo da literatura numa mistura de ciência cabalística e bula-de-remédio. Criaram-se métodos e mais métodos que procuram explicar a literatura em termos que, francamente, me parecem nada ter a ver com ela. É como querer abordar uma pintura apenas fazendo a análise química das tintas de que é feita. Não é por aí, amiguinhos. A fonte de significados está um nível acima disso, ou um nível abaixo, dependendo do ponto de vista de quem olha.

Daí ser mais do que oportuna a bem-humorada crítica ao linguajar “academês” feita por Carlos Newton Jr. no capítulo “O método de Josué” de sua tese-romance “Vida de Quaderna e Simão”. Tendo-se metido na sinuca de ter de apresentar uma tese de doutorado sobre a obra de Ariano Suassuna, o crítico e poeta natalense-pernambucano deu uma de joão-teimoso e fêz da tese uma paródia ao estilo adotado por Suassuna no “Romance da Pedra do Reino”, reproduzindo, diante da banca examinadora, o discurso solerte, bajulador e megalomaníaco do narrador Quaderna diante do juiz-corregedor que lhe investiga as mutretas. Entre as muitas críticas que faz ao pensamento academista, Carlos Newton aponta (no que concordo plenamente) “a recusa sistemática a se enxergar até mesmo o óbvio, se este não resulta da aplicação de um método qualquer”. Nossos cursos de Letras não formam professores de Literatura ou críticos literários: formam técnicos especializados na aplicação de modelos importados de análise linguística... e o texto que se dane.

0284) The Truman Show (17.2.2004)




O Show de Truman conta a história de um “reality show” tipo “Big Brother” levado às últimas consequências. Ele ocorre à revelia dos participantes (no caso, de um único participante), e é transmitido ao vivo, 24 horas por dia, contando a vida de Truman Burbank, um rapaz que pensa que vive numa cidadezinha comum dos EUA, mas que desde o nascimento está num enorme estúdio de TV, cercado por atores desde o dia em que nasceu. Aos que gostam do filme, recomendo o livro com o roteiro completo (Editora Manole, São Paulo, 1998 – http://www.manole.com.br/) de Andrew Niccol, com um prefácio onde o diretor Peter Weir fornece numerosas informações sobre a história de Truman – essas informações de “background” usadas durante a feitura do filme, mas que nunca aparecem na versão final.

O criador de Truman, Christof (interpretado por Ed Harris), era produtor de documentários, e ganhou um Oscar com um filme em que registrou por dois anos a vida de garotos de rua de Chicago. Os garotos se refugiavam num prédio abandonado, sem saber que o prédio pertencia a um tio de Christof e estava cheio de câmeras e microfones. O próprio Christof tivera sua vida registrada pelo pai desde o nascimento, em filmes 8 mm., como aliás muitos pais fazem hoje, filmando seus filhos na praia, brincando, comemorando aniversários, etc.

Daí, Christof teve a brilhante idéia: por que não pegar uma mulher com uma gravidez indesejada, adotar por antecipação a criança, e filmar toda sua vida, minuto por minuto, a partir do nascimento? A idéia foi oferecida à rede de TV fictícia OmniCam, que acabou aceitando. A vida do bebê era transmitida 24 horas por dia, e os custos eram cobertos com propagandas de comidinhas de bebê, fraldas, etc. À medida que Truman foi crescendo, foi preciso contratar mais e mais atores para compor sua “família” e para lhe servir de amiguinhos, babás, professores, etc. E aos poucos uma cidade inteira foi construída à sua volta, a cidade onde ele cresceu, sem saber que era a estrela de um programa visto no mundo inteiro, e cada gesto seu era visto, cada palavra sua era escutada, mesmo quando ele se acreditava só.

Não contarei aqui o fim do filme para não tirar a graça a quem não o viu. Melhor que o fim, contudo, é o começo, a idéia básica do filme. Programas como “Big Brother” são uma abordagem tímida, comendo-pelas-beiras, dessa idéia de mostrar a-vida-como-ela-é. O problema é que o “Big Brother” é tudo menos isso. Aquilo ali é a vida como ela não é. Os participantes não apenas sabem que estão sendo filmados: eles se preparam para aquilo, representam o tempo inteiro, são de um narcisismo insuportável, estão todos ali “investindo em sua carreira”. É menos cruel do que o que é feito a Truman; mas é menos verdadeiro. O “BB” não tem nada de “reality”. Como dizia Lobão, “é tudo pose, é tudo pose!” Um “reality show” autêntico teria que ser feito à revelia. E em tempo integral, sem cortes.

0283) Ganhei (perdi) meu dia (15.2.2004)




Me digam se a vida não parece uma coisa escrita por Woody Allen. Recentemente, um cidadão de 73 anos, residente no Estado de Indiana (EUA) foi sorteado num concurso de loteria onde o sorteio é gravado em video-teipe e vai ao ar algumas horas depois. 

Mr. Carl Atwood estava presente ao sorteio em que seu número foi contemplado com um prêmio de 57 mil dólares. Ao recebê-lo, ele disse: “Estou muito agradecido a todos. Nunca esperei ganhar um prêmio tão grande. Agora vou poder comprar um bom automóvel.” 

Horas depois, o sr. Atwood fêz uma visita à loja onde havia comprado o bilhete premiado (talvez para agradecer, comemorar...) e na saída, ao atravessar a rua, foi atropelado por um caminhão e morreu no hospital. 

Nesta mesma noite, o programa foi ao ar, e ao anunciar sua vitória a estação colocou no ar uma foto sua, com o letreiro: “Em memória de Carl Atwood”.

Parece brincadeira, não é? Mas uma pequena parábola urbana como esta pode ser lida de diferentes maneiras. Para alguns, é um aviso de que Deus (ou o Destino) dá com uma mão e tira com a outra. Para cada benefício, uma penitência. Para cada prazer, uma punição. Ter muita sorte é uma espécie de pecado, que deve ser expiado tendo muito azar. 

É a teoria moral dos prêmios e castigos, que embebe toda nossa cultura judaico-cristã. Ninguém será feliz impunemente. Ganhou na loteria? Pois aguarde!

Existe, contudo, outra teoria metafísica que dispensa os julgamentos morais. O sujeito tem duas escolhas: 1) uma vida calma, onde nada acontece de bom ou de ruim; 2) uma vida agitada, onde coisas boas e ruins acontecem em profusão. 

Ou seja: ele pode escolher se deseja reduzir ou intensificar o próprio campo probabilístico (v. “O campo probabilístico”, 3.9.2003). 

No caso de Atwood, quem sabe se dias antes ele não fêz uma prece: “Oh, Senhor... Não acontece nada! Setenta e três anos, nenhum problema resolvido, sequer colocado! Tá muito chato esse negócio aqui! Eu queria uma vida movimentada, onde acontecessem coisas fora do comum!” Aí Deus anotou numa caderneta, chamou o arcanjo... 

Podem achar que é uma explicação cínica, mas me parece mais equilibrada do que a velha história do castigo moral. Não existem castigos, prêmios, punições. Existem vidas onde nada acontece; e vidas onde acontece de tudo. Atwood teve 73 anos de uma, e um dia da outra.

E, filosofia à parte, podemos optar também pela explicação prática. Atwood tirou 54 mil dólares e nunca tinha visto tanto dinheiro na vida. Foi dar um abraço no dono da casa lotérica, provavelmente um sujeito que há 20 anos lhe vendia bilhetes e dizia, “Bote fé, seu Atwood! Um dia o senhor tira a sorte grande!” 

Foi lá, agradeceu, comemorou, e na hora de atravessar a rua estava tão eufórico que, pela primeira vez naqueles anos todos, esqueceu de olhar se vinha carro. 

As teorias metafísicas são muito úteis, mas eu sempre acho que tem um detalhe operacional que explica tudo.





0282) O que é “kafkeano”? (14.2.2004)




Assim como o pintor Van Gogh e o bluesman Robert Johnson, o escritor Franz Kafka deve ter murmurado, no seu derradeiro minuto de consciência: “Pense numa vida jogada fora!” Todos três tinham motivos para pensar assim, mas o fato é que estavam enganados. O Acaso, aquele deus inescrutável, que concede a uns os 40 milhões da Mega-Sena e a outros um raio na cabeça, fêz com que os quadros do holandês, as canções do americano e os livros do tcheco acabassem se salvando da vala comum. E o Mercado, que não perde tempo, transformou os três em fonte inesgotável de milhões de dólares. Uma situação, como direi? Kafkeana.

Este adjetivo talvez seja a mais imediata herança deixada pelo judeu tímido que morreu em 1924 deixando atrás de si uma porção de problemas não resolvidos, amores não consumados e livros difíceis de classificar. A obra de Kafka foi interpretada como uma premonição do nazismo, como uma busca religiosa, como uma paranóia de migrante em país estrangeiro, como um ajuste de contas freudiano com um pai autoritário. Nenhum desses temas, contudo, é propriamente kafkeano.

Usamos o termo “kafkeano” quando nos referimos a qualquer situação onde as conexões de causa e efeito parecem se romper, se dissolver. As pessoas nesse mundo não são ameaçadas por inimigos, perseguidas por monstros, tentadas pelo Demônio. Não existe um Mal personalizado, nítido, que traga uma ameaça específica. O problema com o mundo de Kafka é que as coisas nele não fazem sentido. Em “O Processo”, o escrevente Joseph K. é preso na primeira página e executado na última. Qual o motivo dessa acusação? Não o sabemos. Em “O Castelo”, o agrimensor K. pretende ter acesso a um Castelo, sem nunca o conseguir. Por que? Não o sabemos. Suas histórias são parábolas sem “moral da história” que as explique.

Em “O Processo”, temos um acúmulo de acontecimentos, mas nunca sabemos quem lhes deu origem, e por quê; é um pesadelo de efeitos sem causa aparente. Em “O Castelo”, K. tenta, por todos os modos, chegar até o Conde que domina o Castelo, mas todas as suas tentativas dão com os burros nágua: é um pesadelo de causas que não produzem efeito. Kafka inaugurou uma nova espécie de fantástico, que reside na sintaxe das coisas (ou seja, no modo como elas se articulam e se determinam entre si) e não na sua semântica (ou seja, na natureza das coisas propriamente ditas). Por este ângulo, “A Metamorfose”, onde o personagem acorda transformado num inseto, é menos kafkeano que as outras novelas, pois nela irrompe um elemento indiscutivelmente fantástico, irreal. A história “kafkeana” típica, contudo, é composta de cenários, personagens e eventos banais, cotidianos, só que articulados com uma lógica de pesadelo. É nessa lógica de absurdo que a literatura de Kafka parece ter adivinhado o nosso mundo, onde super-população, alta tecnologia e concentração de capital pulverizaram o pouco que restava de conexão entre intenções, causas e efeitos.

0281) Os filhos de Dionisos (13.2.2004)




Um dia eu estava numa sala de visitas com um casal idoso. O Jornal Nacional mostrava um show de rock não sei onde: o habitual amontoado de jovens de camisa preta, pulando feito malucos na frente da câmara, agitando os braços, gritando “Ú-Tererê” (ou o equivalente atual a Ú-Tererê), e fazendo aquele gesto tradicional: a mão espalmada, o polegar puxando para dentro os dedos médio e anular, o indicador e o mindinho esticados ao máximo.

O dono da casa falou que não sabia o significado daquilo. Visitante, solícito, não querendo deixar a conversa morrer, eu me apressei a explicar:

“São os chifres do diabo, assim, ó...” -- e reproduzi o gesto.

Pra quê que eu fiz isso? O casal teve um sobressalto, o velho empalideceu, a velha benzeu-se e murmurou:

“Meu deus, meu deus... além de drogados, são satanistas”.

Eu devia ter dito que eram as orelhas de Batman ou de Scooby-Doo, mas os velhos talvez não ligassem os nomes à pessoa. E pra falar a verdade, a pergunta que me fica (e que eu gostaria de ter respondido ao casal) é:

“Por que os jovens não têm medo do Diabo? Por que não fogem dele, por que resolvem encará-lo, tirá-lo pra dançar, domesticá-lo, esvaziar sua ameaça, trazê-lo de um contexto do Mal e da Violência para um contexto do Bem, da Festa e da Alegria?”

De vez em quando aparece nos jornais que um desses adolescentes que fazem esse gesto matou alguém. Aí pronto:

“O rapaz andava de camisa preta! Tinha argolas na venta! Escutava Iron Maiden! Só poderia acabar assim!”

Eu não acho. Gente com camisa do Palmeiras ou do Vasco também mata, e a culpa não é da camisa.

Os jovens querem acreditar em alguma coisa. Tem Deus na jogada, mas eles aceitariam melhor um deus que os acompanhasse às festas, que os aconselhasse em seus namoros. O rock os acompanha; a religião, não.

O Cristianismo é visto, de forma que considero até injusta, como uma religião que glorifica o sofrimento. Seu símbolo é um homem torturado e morto. Não é essa a mensagem do Cristianismo; mas parece ser, pela inevitável simplificação de uma doutrina de massas. Parece querer dizer que sofrer é bom, que estamos aqui para sofrer calados, e que a alegria, a sensualidade e a festa coletiva pertencem ao demônio.

Quando os jovens precisam queimar as overdoses de energia que seu organismo produz, quando precisam acasalar-se, afirmar sua independência e individualidade, eles recorrem à imagem que se identifica com essa auto-afirmação.

Os deuses antigos que correspondem a ela (Dionisos, Pan) foram identificados pelo Cristianismo com o Diabo.

As religiões deviam inventar dois deuses do Bem, para esvaziar a força do Diabo.

Um seria puro, sério, espiritualizado. O outro seria uma espécie de Dionisos grego: um deus gente-boa, do-Bem, conquistador, boêmio, festeiro.

É um lado que a religiosidade popular sempre se esforçou para suprir: aquele arquétipo pelo qual que Nietzsche ansiava – um deus que saiba dançar.