domingo, 20 de dezembro de 2020

4654) Leituras de 2020 -- parte 1 (20.12.2020)



Não vou comentar aqui tudo quanto li este ano, até porque alguns desses livros foram comentados mais extensamente na época da leitura. Darei o link abaixo, quando for o caso.
 
Vou começar com autores brasileiros, dos quais li relativamente pouca coisa este ano. Tenho uma certa dificuldade em “ficar em dia” com os lançamentos. Conheço gente que lê 50 livros lançados durante o ano.
 
Como conseguem? Não sei. Sou um leitor pedestre, e eles devem ser leitores ciclistas. O que não significa que eu um dia não chegue ao mesmo destino. E que quando eu chegar eles já estejam lá adiante, respirando outras paisagens.
 
Até pouco tempo atrás eu estava numa de preencher as lacunas nas obras de alguns autores clássicos. Este ano dei com os burros nágua, mas consegui, felizmente, ler um livro que me despertava a curiosidade há muito tempo: A Casca da Serpente (1989), de José J. Veiga.


O pessoal o considera uma espécie de romance de “Realidade Alternativa”, porque o enredo postula que Antonio Conselheiro sobreviveu ao massacre de Canudos, tendo sido retirado do arraial por um grupinho de seguidores, antes da derrocada final. Longe dali, eles começam a fundar um outro arraial fundado no trabalho coletivo. O mais interessante é a transformação que o Conselheiro sofre. Depois de se recuperar da doença, ele corta a barba, o cabelo, para de rezar o tempo todo, pede conselhos aos seguidores, enfim – transforma-se num líder de perfil mais moderno e menos fanatizado.
 
Veiga o mistura no final com outras figuras históricas da época que por motivos variados estão de passagem pelo sertão da Bahia. Entre elas estão a compositora Chiquinha Gonzaga e o anarquista russo Piotr Kropotkin.  Veiga escreve de maneira simples, compacta, sem encher muita linguiça, defeito que prejudicou um pouco outro livro interessante dele, O Relógio Belisário. Aqui, o melhor mesmo é sua tentativa de imaginar um “Canudos passado a limpo”, pequeno, discreto, sem fanatismo, sem guerra, um Canudos mil vezes mais utópico do que o Canudos real.


Li pela primeira vez uma coletânea de Moacyr Scliar, O Olho Enigmático (1986), com muitos contos curtos, alguns sem muito impacto, outros criando bem aquele clima em que Scliar era muito bom – histórias cotidianas de gente comum que pouco a pouco resvalam para um absurdo meio kafkeano. Era um tipo de história que teve grande força aqui, nas décadas de 197-80. Foi substituída talvez pelas histórias de crueldade urbana na linha de Rubem Fonseca.
 
São contos curtos, a maioria tendo saído em revistas. Como também pratico esse tipo de publicação, me arrisco a dizer que em muitos casos o conto curto é um fim em sim, uma pequena história contada num pequeno texto, definitivo, irretocável. E em outros casos é uma espécie de grão de areia que ao autor joga pra ver se depois cresce alguma pérola em torno dele. Um conto curto que a gente escreve para segurar a idéia, para não esquecer, para guardar o lugar e depois, se o vento soprar favoravelmente, tentar uma ampliação que está sempre possível no horizonte. Tenho muitos contos de vinte páginas cuja primeira versão tinha uma página e meia.



Comentei aqui no blog há alguns dias a Viagem a Altemburgo (1990) de Guilherme Figueiredo, cuja primeira versão é de 1955. É um romance utópico seguindo o modelo tradicional onde um sujeito vai parar, inadvertidamente, numa sociedade oculta e aparentemente perfeita, dirigida pela razão, pela lógica, pelo espírito coletivo, etc. O que difere o livro de Figueiredo dos outros dessa linha é que ele se diverte escrevendo. Em geral o romance utópico brasileiro é muito pedante, muito professoral, muito politicamente correto, e a primeira reação que produz no leitor é de “eu detestaria morar numa sociedade assim”. O Altemburgo imaginado por ele é uma cidade olímpica, perfeccionista, “do bem”, “de bem”, meio pretensiosa. Tem alguns detalhes meio surpreendentes – quando alguém é eleito prefeito, por exemplo, é obrigado a tomar um preparado que vai matá-lo no fim do mandato de cinco anos. Enfim – de idéias utópicas está pavimentado o caminho do inferno.
Bartolomeu Campos de Queirós é um autor que vim a conhecer através do grupo teatral Ponto de Partida, de Barbacena (MG). Vermelho Amargo (Cosac Naify, 2011) é uma noveleta de recordações de infância numa prosa intensamente poética, elíptica, concentrada, e cheia de flashes muito perceptivos sobre vida cotidiana.
 
Esses pequenos livros (às vezes chamados meio impropriamente de romances, porque na verdade são muito maiores do que um simples conto) costumam surgir obscuramente, revelar-se aos poucos, provocar impressões profundas nos leitores e com isso se perpetuar. É a intensidade de sua linguagem que os preserva, o seu impacto exigente sobre os leitores. Este pequeno livro poderá ser tão duradouro (expandindo-se tanto na memória coletiva) quanto Um Copo de Cólera (1978) de Raduan Nassar, A Casa da Paixão (1977) de Nélida Piñon e outras pequenas jóias compactas.
 
 
(continua nos próximos dias)