sexta-feira, 6 de outubro de 2017

4275) Ariano e a Jornada de Passo Fundo (6.10.2017)




Estive na quarta-feira passada na 16ª. Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo (RS). Participei da mesa intitulada emblematicamente “Centauro, Pedra, Rosa e Estrela”, em que quatro escritores analisaram a obra de quatro mestres, respectivamente: Moacyr Scliar (por Cintia Moscovich), Ariano Suassuna (por mim), Carlos Drummond (por Ricardo Silvestrin) e Clarice Lispector (por Nádia Battella Gotlib). Como se não bastasse, a conversa foi mediada por Augusto Massi, Alice Ruiz e Felipe Pena.

Muitas coisas interessantes foram ditas pelos colegas, e podem ser vistas inclusive neste link da Jornada:


De minha parte, foi uma oportunidade para comentar alguns aspectos da obra de Ariano que nem sempre ficam claros para os leitores que leram apenas alguns dos seus textos, e viram uma ou outra aula-espetáculo.

Felipe Pena fez uma brincadeira com o meu currículo enviado à Jornada, onde eu me apresentava, entre outros oxímoros, como “escritor de literatura oral”. Era exatamente isso que Ariano Suassuna era, até mais do que eu, aliás. Ariano fazia isso, é claro, no seu teatro: que outra coisa é uma peça de teatro senão uma literatura que é impressa no meio do caminho, mas nascendo do oral e destinando-se a ele?

Ele fazia um pouco na sua poesia, nas décimas, martelos e galopes que escreveu, nos quais, por mais que o texto seja elaborado e hermético, o impulso oral nunca desaparece de todo.

E fez, mais marcadamente ainda, no romance, ou na série de romances de “Quaderna, o Decifrador”: o Romance da Pedra do Reino, sua sequência O Rei Degolado: Ao Sol da Onça Caetana e a terceira parte (publicada em jornal mas inédita em livro) O Rei Degolado: As Infâncias de Quaderna.

A voz narrativa dos romances de Ariano é uma voz oral, se me permitem a redundância. Ariano confessou mais de uma vez que na sua idéia original do romance o herói era para ser Sinésio Garcia-Barretto, o príncipe desaparecido, e Quaderna um mero narrador.

Durante a escrita, porém, a voz de Quaderna foi ganhando espaço, ajudada pelo fato de que ele, mais do que o idealizado e sebastianista Sinésio, estava muito mais próximo do espírito moleque e galhofeiro e iconoclasta e quixotesco do escritor. Quaderna engoliu o livro.

Perguntado por que abandonou o teatro depois que enveredou pelo romance, Ariano chegou a dizer:

– Parei de escrever peças, mas não abandonei de todo. Vejam que dois terços do Romance da Pedra do Reino são o depoimento de Quaderna diante do Juiz Corregedor, então de certa forma isso é uma imensa peça teatral centrada em dois atores.

“Literaturas da Voz”, como chamava Paul Zumthor se referindo à poesia recitada e cantada, mas que pertence também ao domínio do romance. O que é Grande Sertão: Veredas senão um grande monólogo de um homem que só fala para outro que só escuta?

A inspiração oralizante e épica de Guimarães Rosa certamente presidiu a criação do Romance da Pedra do Reino. O livro de Rosa saiu em 1956, e logo em seguida Ariano recebeu uma carta (o relato é dele próprio) de Hermilo Borba Filho, seu amigo e mestre, que nessa época estava em São Paulo, dizendo que o livro era algo assombroso, e que se havia alguém capaz de fazer com o Sertão nordestino o que Rosa fez com o Sertão mineiro, seria Ariano. Ariano aceitou o desafio e em 1958 iniciou seu romance.

Essas influências dos amigos, aliás, foram decisivas para encaminhar sua obra escrita. Na década de 1950, Ariano tinha uma amizade muito próxima com João Cabral de Melo Neto, sete anos mais velho do que ele. João era agnóstico e angustiado. Ariano era católico e brincalhão.

Os dois participaram do Gráfico Amador, um grupo recifense editor de livros artesanais que hoje são verdadeiras preciosidades. Quando voltavam juntos à noite, a mãe de Cabral perguntava se o filho tinha voltado com Ariano. “Como a senhora soube?” perguntava ele. E a mãe: “Porque ouvi você dando gargalhadas na calçada, e você só ri quando está com Ariano”.

Ariano fez suas primeiras tentativas de peça teatral querendo imitar Ibsen, o clássico dramaturgo norueguês. Foi Cabral quem lhe disse:

– Deixe de ser besta, você é um cara naturalmente engraçado. Tragédia não tem nada a ver com você. Seu teatro tem que ser comédia.

Morte e Vida Severina (1954) de Cabral e Auto da Compadecida (1955) de Ariano são dois resultados dessa convivência e dessa influência recíproca. E foi certamente Cabral que repassou para Ariano o nome do seu herói, através de Quaderna, título do livro de poemas publicado por ele em 1960, que Ariano pegou emprestado e carregou de nuances estróficas, heráldicas, lúdicas e ibéricas.