quinta-feira, 30 de setembro de 2021

4749) Cinco lições para dirigir melhor (30.9.2021)



Dizem que a terceira idade é a época mais adequada para a gente passar adiante os próprios conhecimentos. Em primeiro lugar, porque a essa altura já acumulamos uma boa quantidade deles. Em segundo, porque vivemos cercados de gente que estão encarando pela primeira vez um problema com o qual a gente convive há décadas. Em terceiro, porque ao transferir conhecimentos vamos ficando mais leves; asas de anjo são frágeis, não conseguem elevar muito peso.
 
Resolvi, portanto, transferir alguns conhecimentos que adquiri, ao longo da vida, sobre a arte incompreendida de dirigir carro.
 
1) Escute o carro.
 
Um automóvel é um conjunto de partes físicas, feitas de ferro, alumínio, plástico, madeira, cobre, etc. Esses materiais são vítimas de desgaste permanente durante o uso. Um carro não é feito de pixels luminosos numa tela. Carro é um bicho analógico. Todo motorista diz a certa altura: “Tou ouvindo um clac-clac esquisito aqui do lado esquerdo, embaixo...”  Um carro não é virtual, ele é “de carne e osso”, como você.
 
Ouvir o carro é como encostar um estetoscópio e pedir: “Diga 33.”  Um carro é como um corpo, é cheio de ressonâncias; de vibrações; de atritos; da expansões e contrações controladas; de partes encaixadas que não podem ficar chacoalhando impunemente; de explosões de gases que soam de um jeito quando tudo está bem e de outro quando alguma coisa vai mal.
 
Lembre do filme Um homem... uma mulher... Um piloto de corrida está azarando uma mulher bonita (Anouk Aimée, linda). Ela lhe pergunta durante um jantar romântico: “Qual a coisa mais importante, ao pilotar?”  E ele: “O ruído do motor. Houve um cara que mandou instalar tubos de órgão no escapamento, para sentir melhor como o carro estava respondendo”.
 
Claude Lelouch, o diretor, não colocou isso de graça. O cara estava tentando seduzir a mulher, e isto era uma forma velada de dizer a ela: “Eu sou capaz de ouvir. Eu estou disposto a ouvir você, para saber se está tudo bem. Ouvir faz parte da minha vida. Eu gosto.”
 
Ouça o carro como se ele fosse uma pessoa, ou como se fosse seu gato, ou seu cachorro, um ser que não fala a linguagem humana, mas que tem sua maneira própria, seus barulhinhos próprios para dizer a você: “Ei, eu tou bem, tá tudo legal”, ou então, “Ai, tou com um problema”.
 
 
2) Como fazer baliza.
 
Muita gente tem dificuldade de fazer baliza para estacionar o carro, possivelmente, porque é uma combinação anti-intuitiva de movimentos, ou pelo menos é o contrário do próprio ato de dirigir. Quando dirigimos normalmente, nossa visão e nossos movimentos (mãos e pés) convergem todos para a frente; na baliza, estamos virados para trás e precisamos reconfigurar as reações imediatas, porque estamos fazendo ao contrário uma parte dos procedimentos.
 
A prática da baliza deve ser treinada num espaço aberto, um descampado, com alguns objetos (caixotes, latas de lixo, etc.) servindo de pontos de referência. O principal é se habituar à nova relação entre, p. ex., girar o volante para a direita e ver o carro fazer algo diferente (quando em ré) do que faz normalmente.
 
É preciso encontrar uma sincronia passável entre os giros do volante, o pisar nos pedais e a avaliação visual de distância e posição. Esta parte física tem que ser muito treinada antes do indivíduo se meter a estacionar a cobaia mecânica da Auto Escola no meio-fio de uma rua no mundo real. 
 
Já que são três sistemas simultâneos (mãos, pés, olhos) agindo de maneira contraintuitiva, é preciso ver em qual dos três está a principal dificuldade. Há pessoas que fazem bem o jogo de volante e pedais, mas tem péssimo golpe de vista para calcular distâncias e deslocamentos. Há outras que até percebem isso bem, mas na hora de debrear aceleram, ou vice-versa... Enfim: é um pouco como jogar malabares. Comece aos poucos. Você não pode começar logo com meia dúzia.
 
 
3) Aprenda a se relacionar
 
Dirigir no trânsito é relacionar-se o tempo inteiro: com os outros carros; com pedestres; com motoqueiros e ciclistas; e assim por diante. Quando dirigimos na estrada, principalmente numa rodovia com pouco tráfego, é como se o carro fosse um instrumento musical fazendo um solo, onde depende só de si, tem liberdade e latitude para experimentar, e pode experimentar aquela breve euforia de um pássaro no espaço.
 
Na cidade, contudo, é diferente. Estamos cercados por todos os lados, tendo que vigiar os quatro pontos cardeais sem poder sequer piscar o olho. Tinha toda razão aquele professor que disse ao aluno: “Dirija como se todos os outros estivessem bêbados”. Ensinar direção nunca é o suficiente, ou seja, ensinar a relação do motorista com o carro não basta. Todo ensino de direção precisa ser o ensino da direção defensiva, das mil maneiras de evitar choque, colisões, arranhões, fechadas, etc.
 
Outra coisa: se você dirige automóvel, o que é o mais provável, não trate os motoqueiros do jeito que os motoristas de ônibus tratam você. Dê o bom exemplo.
 
 
4) Pratique muito
 
Se você perguntar a um motorista profissional quais são os tipos mais perigosos de motorista, ele provavelmente mais responder: os agressivos, os bêbados, e os motoristas de fim de semana.
 
Os dois primeiros são auto-explicativos, mas, e o terceiro? O motorista de fim de semana é aquele cara que comprou um carrinho mas durante a semana vai pro trabalho e volta usando o ônibus ou o metrô. No fim de semana ele pega o carro pra dar uma volta com a família, e aí começa o problema.
 
Muitos desses motoristas nunca chegam a se sentir completamente à vontade dirigindo. A falta de traquejo os deixa hesitantes, inseguros. É aquele cara que faz que vai mas não vai, e quando acaba indo deflagra um coro de buzinas e impropérios. É o que liga a sinaleira e se esquece, percorre quatro bairros e dezenas de quilômetros piscando sem perceber. É o que tem dificuldade para dirigir e ler placas ao mesmo tempo, e cada placa que aparece ele precisa reduzir a velocidade e soletrar os avisos em voz alta. É o que passa mal uma marcha, dá aquela “rasgada” de cortar o coração e fica meio minuto olhando para a alavanca de câmbio como se a culpa fosse dela (e esquece de olhar para a frente).
 
O mito de que as mulheres dirigem mal foi construído em cima de mulheres que dirigem pouco. Geralmente dirigem pouco porque o marido lhes repete o tempo inteiro que elas dirigem mal. E acabam dirigindo mal mesmo, por nervosismo e, mais uma vez, por falta de prática constante.
 
O motorista de fim de semana tem medo de ir muito depressa e causar algum desastre, e muitas vezes acaba por causá-los pelo simples fato de que numa rodovia de mão dupla insiste em avançar a 60 km por hora, retendo uma fila de veículos impacientes, até que alguém, desesperado para ultrapassá-lo, acaba fazendo uma besteira grande.
 
Um carro é um instrumento, e só funciona direito quando a gente adquire familiaridade com ele. Paul MacCartney dormia com a guitarra na cama, Pelé dormia com a bola, e mesmo que você não possa dormir com o carro, aproveite seu tempo acordado para ganhar mais e mais intimidade com ele.
 
 
5) Obedeça ao carro
 
Dirigir um carro não é comandá-lo como se ele fosse um mero agregado de matéria morta. É perceber que embora seja uma simples tonelada de ferro, plástico, etc., ele gera sua própria energia e depois de ligado comporta-se quase como um animal, meio burrinho mas voluntarioso.
 
Trate o carro como se fosse um cavalo. Entenda como funciona. Saiba para que servem aquelas engrizias e aqueles parangolés que tem embaixo do capô. Servem para alguma coisa, sim, não foram botados ali simplesmente para boquiabrir os incautos.
 
É espantosa a quantidade de gente, Brasil afora, que dirige o próprio carro sem fazer a menor idéia do que acontece no motor, nos eixos, nos pneus, no sistema elétrico, quando o carro está em movimento. Em geral a gente ironiza mulher que não sabe trocar um pneu; a maioria desses engraçadinhos não sabe trocar uma bateria nem desentupir um carburador.
 
Sinta o peso do carro em movimento como se fosse o do seu próprio corpo. Deixe o carro se projetar. Ele pesa uma tonelada, e a maneira de deixá-lo mais leve é colocá-lo em movimento. Há motoristas que têm medo de dar liberdade ao carro, mesmo numa rodovia desimpedida e sem curvas. Em vez de acelerá-lo, em vez de passar uma segunda, uma terceira, e deixar que o carro respire sozinho, ficam dando pequenas pisadas no acelerador jogando o carro em pulinhos sucessivos para a frente, como se ele estivesse com soluços. Não faça isso. Sinta quando o peso do carro se projeta por conta própria, e fique apenas administrando.
 
O carro é seu corpo, na pista de asfalto. Você é o cérebro do carro. Dê ao seu carro um cérebro inteligente.