quarta-feira, 15 de março de 2023

4922) O barco de Teseu (15.3.2023)



 
O dilema filosófico do “barco de Teseu” serve de ilustração, e de ponto de partida, para uma boa discussão sobre o lado material e o lado imaterial de um ser, uma pessoa, um objeto.
 
A lenda explica que o barco que serviu ao herói Teseu em sua expedição para matar o Minotauro, no Labirinto de Creta, foi preservado por muitos séculos, e de vez em quando era levado em peregrinação de uma cidade para outra. 

Acontece que o navio era de madeira; algumas partes se quebravam, outras sofriam com o cupim, e aos poucos cada parte do navio foi sendo substituída.  A questão é: depois que trocaram todas as tábuas do casco e do convés, todos os mastros, todos os bancos, todas as velas... aquele ainda era o barco de Teseu?




O escritor Douglas Adams, criador da série de romances O Mochileiro das Galáxias, passou por uma experiência curiosa no Japão, que ele mesmo descreve:
 
Lembro que certa vez, no Japão, fui visitar o Templo do Pavilhão Dourado, em Kyoto, e fiquei um tanto surpreso com o bom estado de conservação do tempo, já que ele foi construído no século 14. O guia me explicou que ele não estava tão bem conservado assim, e que na verdade tinha se incendiado duas vezes só neste século.
– Então, este não é o templo original? – perguntei.
– Claro que é – disse ele, surpreso com a minha pergunta.
– Mas ele foi todo queimado no incêndio?
– Sim.
– Duas vezes?
– Várias vezes.
– E reconstruido?
– Mas, claro. É um edifício importante, de grande valor histórico.
– Usando materais completamente novos.
– Claro que sim. O material antigo queimou no incêndio.
– Nesse caso, como pode ser o mesmo edifício?
– É sempre o mesmo edifício.
Tive que admitir, comigo mesmo, que era um ponto de vista perfeitamente racional, apenas partia de uma premissa diferente. A idéia do edifício, sua intenção, seu design, tudo isto é imutável e constitui a essência do edifício. O que sobrevive é a intenção dos que o construíram pela primeira vez. A madeira que foi usada para isto se deteriora, e precisa ser substituída. Dar importância excessiva ao material original, que é apenas uma lembrança sentimental do passado, desvia a nossa visão do edifício propriamente dito, que continua existindo.
(“Last Chance to See”, trad. BT)
 
Um navio e um templo são objetos físicos tão imponentes que tendemos a dar um valor excessivo ao que eles têm de propriamente material. 

Esse tema foi trazido novamente à discussão poucos anos atrás, quando a Catedral de Notre Dame sofreu um incêndio e ficou parcialmente destruída. Houve uma lamentação generalizada pela destruição de certos aspectos da catedral, mas na época transcrevi esta citação de Sara L. Uckelman, estudiosa da Idade Média (Durham Centre for Ancient and Medieval Philosophy), comentando no Facebook:
 
Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas, são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam porque a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem novas ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem verdadeira importância



Acho que detalhe crucial nesse contexto é o conceito de “presença constante”: a continuidade através do tempo tem tanta importância quanto a presença no espaço, e talvez mais. No caso de Notre Dame, alguns vitrais eram preciosos porque tinham duzentos anos; mas eles próprios já estavam ali substituindo vitrais ainda mais antigos, que foram destruídos dois séculos atrás por algum outro acidente.  E la nave va. 
 
É diferente o caso da destruição, por exemplo, da Biblioteca de Alexandria ou do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Porque em casos assim não se trata da destruição de um objeto que pode ser substituído, mas de milhares ou milhões de objetos únicos (livros, artefatos, manuscritos, etc.) – e quem vai produzir substitutos, ou seja, continuidade temporal, para tudo isto? 
 
No caso de um livro, é preciso distinguir a obra literária  e o objeto-livro.  O livro de Victor Hugo O Corcunda de Notre Dame, por exemplo, tem incontáveis edições e traduções mundo afora. Mesmo se pensarmos apenas na língua original, o francês, não importa quantos exemplares sejam destruídos, basta que se preserve pelo menos um para que a “presença constante” do livro tenha continuidade. 
 
É a premissa do clássico Fahrenheit 451 (livro de Ray Bradbury, filme de François Truffaut), em que os livros são preservados oralmente, na memória de pessoas capazes de recitá-los do começo ao fim.
 
Outra é a situação do manuscrito original de Victor Hugo, as folhas onde ele escreveu, com sua mão e sua caneta, a história original. Este não pode ser substituído – ganha um valor histórico de objeto único, valor que não se reduz se ele for xerografado, digitalizado e reproduzido. É a materialidade daquelas folhas, que foram tocadas e manuseadas pelo artista, que estamos reverenciando quando criamos bibliotecas destinadas à preservação de manuscrios. A obra literária está viva como nunca, reproduzindo-se lá fora – mas o objeto precioso, reverenciado pela nossa cultura enquanto existe, pertence a outra ordem de valores.



(manuscrito de Victor Hugo)