sexta-feira, 19 de junho de 2020

4591) Raymond Chandler e a novela detetivesca (19.6.2020)


Raymond Chandler já começava seu ensaio clássico “The Simple Art of Murder” (1944) dizendo: “A literatura de ficção, em qualquer de suas formas, sempre pretendeu ser realista”. 

O que equivale mais-ou-menos a dizer: “Como eu sou um mamífero que respira oxigênio, afirmo que todos os seres vivos, em qualquer de suas formas, são assim”.

Essas afirmativas tão categóricas são uma forma de petição de princípio, onde o autor legisla em causa própria, como se dissesse: “Literatura é tudo que tem as características do que eu escrevo”.  

Chandler estava certo em pensar assim. Não porque o que diz é verdade, mas porque ele não poderia dizer, sentir ou enxergar de outra forma. Ele é um escritor do romance realista, que se dedicou ao romance policial com uma coragem quase suicida – e de fato conseguiu com sua obra alargar o horizonte de expectativas do gênero.

Suas qualidades como autor são qualidades mainstream, do romance realista. Sua inteligência psicológica e social, sua percepção cínica de como a sociedade capitalista funciona, seu conhecimento e sua empatia para com as fraquezas e as coragens de pessoas comuns, seu uso perceptivo e moderno da linguagem das ruas, seu olho para ambiente e atmosfera, a verossimilhança emocional das reviravoltas nas ações dos seus personagens.

Seus pontos fracos (ele era o primeiro a reconhecer) eram enredo, dedução, pistas, indícios, horários, álibis... O feijão-com-arroz do romance detetivesco, que ele nunca apreciou e nunca soube preparar direito.


Uma das anedotas mais famosas a seu respeito é de quando alguém estava filmando The Big Sleep, houve uma discussão entre atores, roteirista e diretor por causa de alguma coisa na narrativa que não batia bem. Ligaram para Chandler: “Chandler, quem foi, afinal de contas, que matou o motorista?” E ele respondeu: “Eu sei lá quem foi que matou a porra do motorista, me deixem em paz.”

Provavelmente não sabia – e não se importava.

Chamamos de romance (ou conto) detetivesco àquelas narrativas onde há um crime, e há uma pessoa (um policial de profissão, um diletante, um investigador particular, etc.) que consegue entender os fatos, criar uma interpretação deles e apontar o culpado. Essa pessoa é chamada “o detetive”.

A narrativa detetivesca, portanto, tem como centro a atividade desse detetive, sua avaliação das pistas, seu entendimento de como o crime poderia ter sido cometido, até ser capaz de afirmar que o criminoso é aquela pessoa, e as provas são estas aqui.


É uma fórmula, e talvez uma definição para literatura de gênero seja a presença de uma fórmula que o leitor conhece bem e que já espera encontrar, ao iniciar a leitura. Claro que com o passar dos anos a fórmula de subdivide em dezenas, às vezes centenas de variantes, muitas delas tentando, como é inevitável acontecer, “fugir à fórmula, negar a fórmula, virar a fórmula de cabeça para baixo”.

Existe violência nos livros de Chandler, mas não tanta quanto se presume. Nos seis romances que traduzi (O Sono Eterno, Adeus Minha Querida, A Janela Alta, A Dama do Lago, A Irmã Mais Nova, O Longo Adeus) Philip Marlowe briga bastante, troca tiros, mas só mata uma pessoa: o pistoleiro Canino, no confronto final de O Sono Eterno.

Os resenhadores da imprensa o chamam de mulherengo ou conquistador: há vários episódios em que ele repele uma mulher que está se oferecendo a ele, e as únicas que ele leva para a cama são Linda Loring, a socialite de O Longo Adeus, e Miss Vermilyea, a secretária de Playback.


Estamos muito longe do universo de Shell Scott, que fatura uma loura por capítulo, ou do Nick Carter “Killmaster” de Donald Hamilton, cujas cenas de sexo bastante detalhadas se estendiam por duas ou três páginas.

Chandler é considerado um dos fundadores da escola hardboiled, mas essa escola avançou tanto que hoje as aventuras de Philip Marlowe estão numa espécie de zona intermediária entre o policial clássico de Conan Doyle e Rex Stout e as investigações verdadeiramente hardboiled de Mike Hammer (de Mickey Spillane).


Seus livros são essencialmente realistas, mesmo quando fazem concessões, que ele admitia constantemente, ao que o gênero policial tem de melodrama de aventuras. Chandler achava que cada fato isolado, cada evento isolado de seus livros era totalmente possível, mas achava altamente improvável que tudo aquilo acontecesse a um grupo tão pequeno de pessoas, num espaço de tempo tão curto.

Essa opinião tão singela estabelece, na minha opinião, um critério importantíssimo para se avaliar qualquer tentativa de “realismo literário”. Já que a literatura é síntese, recorte, simplificação, intensificação do real, cada vez que executamos um desses processos (que são a própria razão de ser da literatura) nos afastamos da realidade.

“Ficção realista” é um oxímoro, uma contradição, um paradoxo. A ficção totalmente realista é impossível, e foi satirizada por Jorge Luís Borges num texto onde ele fala de mapas geográficos tão detalhados e precisos que precisavam ser do tamanho do país que reproduziam.

Chandler abriu seu ensaio citado no início dizendo: “Fiction in any form has always intended to be realistic”.

Teria sido mais prudente dizer: “Fiction in any form has always pretended to be realistic”. Ou seja: “A literatura de ficção, em qualquer de suas formas, sempre fingiu ser realista”.