quarta-feira, 26 de setembro de 2018

4389) "Nós que aqui estamos, por vós esperamos" (26.9.2018)



O poeta Glauco Mattoso dizia que todas as palavras de que é composta a Ilíada já estão no dicionário, só que em outra ordem.

E teve uma roteirista de Hollywood que ouviu um produtor dizer que escrever era apenas colocar palavras na ordem certa. E ela retrucou para o patrão: “É mais do que isso, é colocar as palavras certas na ordem certa”.

A nobre arte da montagem (eu não deixei de pensar em termos do cinema de celulóide e de tela), ou da edição, no mercado financeiro das imagens digitais, consiste em colocar na ordem certa um material que nem sempre se escolheu.

Uma coisa é um diretor montando um material que ele próprio (com ajudantes) concebeu, encenou, filmou, com alguma idéia em mente.

Outra coisa é um montador ou editor receber um material “na linha de montagem”, no sentido de que um editor muitas vezes está recebendo um material “cru” e que às vezes, quando não há diretor disponível, o que ele tem é um roteiro e algumas indicações. As outras decisões serão só suas.

Qual é o inverso disso? É mais ou menos quando diretor e editor são a mesma pessoa, ou melhor quando uma pessoa dirige o que é preciso dirigir e edita onde for preciso editar. O material não é de ninguém, em filmes como Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, de Marcelo Masagão (1999).

Usando material de numerosos arquivos no Brasil e fora, ele compõe uma história ilustrada do século, mais ou menos organizada com uma sucessão de temas: vida urbana, a guerra, as mudanças tecnológicas, a mulher, as micro-histórias de gente anônima. Nenhuma daquelas imagens foi filmada ou mandada filmar por ele. E muitas delas certamente não conviviam nos mesmos filmes. Talvez estejam aparecendo perto uma da outra pela primeira vez.

Quando Marcelo Masagão recolhe imagens nos arquivos públicos é como se estivesse recolhendo as palavras da Ilíada num dicionário? Eu diria que é mais parecido com estar escrevendo um poema semi-imaginado na cabeça e procurando palavras num dicionário de rimas.

Qualquer pessoa que embarca num projeto assim já prevê centenas de noites em claro e se prepara. Já tem um roteiro. Tem um fio de história, mas está em busca justamente da cena caída do céu, do golpe de sorte de achar o material certo no momento certo.

O filme não ganha muita coisa em ser chamado de documentário. Eu diria que é mais um ensaio de imagem e palavra. Documentário sugere algo um pouco mais científico, ou didático, ou jornalístico; o filme de Maagão está mais para um poema narrativo ou uma crônica sobre a História contemporânea, vista com distanciamento e curiosidade.

Do mesmo jeito que cita Franz Kafka ou Sigmund Freud, o filme cria microficções interessantes usando imagens aleatórias de pessoas anônimas e dizendo que ali é Fulano de Tal. E contar a história de Fulano em duas ou três frases.

A frase que dá o diapasão desse aspecto do roteiro é uma das primeiras: “Numa guerra, não morrem milhares de pessoas. Morre um cara que gostava de espaguete, um cara que era gay, um cara que tinha uma namorada.”

Essa valorização da micro-história lembra as “Novelas em Três Linhas” (1906) de Félix Fénéon, lembra certas enumerações inusitadas de personagens nas páginas de Believe It Or Not de Robert Ripley (1919 em diante), mas lembra mais ainda, pelo tom de elegia, os epitáfios poéticos de Edgar Lee Masters em sua Spoon River Anthology (1914). 

Juntando uma imagem anônima e um nome fictício, ele compõe uma pequena história que equivale às vezes a um cartum, às vezes a uma tirinha de três quadros, mas são sempre duas ou três pinceladas de frases contando uma vida ou lembrando um tempo.

Essas resumos de história são frases mudas, por escrito, surgindo na tela, sumindo, dando lugar a outra. E não caberia uma voz interrompendo ali as espirais melódicas de Wim Mertens, um compositor meio minimalista da escola de Philip Glass.

A música de Mertens é essencial ao filme, como tinha sido a de Glass para Koyaanisqatsi (1982). Esse tipo de música usa a reiteração centrípeta de uma mesma frase, que mantém o fluxo musical inteiro presa a si. Em muitos casos essa continuidade irritante se torna benéfica quando o ouvinte está sendo submetido, ao mesmo tempo, a um jorro de imagens coladas ali de maneira poco convencional.

Quando isso se dá, a música repetitiva vira um trilho, um facho de intenções voltadas para o futuro, sempre aproximando-se da resolução melódica mas geralmente refugando diante dela e iniciando um novo ciclo. Essa música ajuda o espectador a aceitar melhor aquela sucessão de cenas tão apartadas umas das outras.

Ainda não sei se é fato ou ficção o que ele conta do pai de Yuri Gagárin: “O pai de Gagárin conheceu a luz elétrica em 1931. O filho dele, Yuri, conheceu o espaço trinta anos depois, em 1961”. Como a imagem e os dados de Gagárin podem ser facilmente comprovados, isso contamina com certa plausibilidade a primeira metade. Que pode ser uma ficçãozinha do diretor.

Há nessa sequência sobre ciência e máquinas uma hora em que ele mostra uma imagem e identifica o personagem: “Fulano de Tal, Engenheiro Elétrico Nervoso. Está supervisionando 5.700 lâmpadas que precisam estar acendendo e apagando com firmeza amanhã, na inauguração da Exposição Mundial em Paris”.

E logo em seguida mostra um homem negro amarrado às correias de uma cadeira elétrica, ladeado por policiais circunspectos. Entendemos que é um prisioneiro condenado; talvez seja o primeiro a morrer dessa forma. Esperamos que a narração dê essa resposta, mas quando a frase surge na tela diz apenas: “E não havia luz elétrica na casa em que ele morava.” 

Editar vídeo, montar filme, requer um indivíduo com certa resistência à solidão, ao sedentarismo, e também com memória, com paciência, com perfeccionismo milimétrico. E requer também, é claro, o contrário disso: que o montador seja capaz de decisões rápidas, proporcionais à desimportância do detalhe; que não fique com pena do que está cortando; que dialogue com o público através de justaposições, de cadências, de contrastes; e que resista à tentação de utilizar tudo que vê.

Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos foi exibido semana passada no cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio, cujas sessões são nos sábados às 14 horas.










domingo, 23 de setembro de 2018

4388) Notas sobre a tradução (23.9.2018)



Se o original demonstra consciência da importância do ritmo e da melodia de uma frase, é preciso valorizar essas coisas na mesma medida. Não são muitas as vezes em que se pode conseguir. Mas sempre vale a pena procurar uma frase em português que tenha uma extensão aproximada, a mesma cadência, a mesma montanha-russa de sílabas fortes e fracas... e de preferência fechando a frase traduzida com um som que seja quase uma rima toante, uma resposta à terminação da frase original.

Isso vale para todos os textos, todos os escritores? Não. Só para a tradução de escritores que também escrevem assim.

Tem escritores cuja escrita é vagarosa, e tem que ser lida e assimilada vagarosamente pelo leitor. Nesses casos a tradução precisa acompanhar esse ritmo, onde cada palavra tem um peso maior.

E tem autores, no outro extremo, cuja prosa é veloz, direta, porque menos  mais do que a escolha individual de cada palavra o que conta é a rapidez da imagem ou da situação que essas palavras estão traçando. E o tradutor deve obedecer a essa rapidez, em vez de ficar passando noites em claro por causa de um sinônimo perfeito, aqui ou ali.

É bom traduzir com esse tipo de cadência em vista quando a prosa tem aquele ritmo encantatório, onde a musicalidade pesa tanto quanto o significado direto das palavras.  É preciso estar sentindo essa indução rítmica o tempo todo. De uma certa forma visível mas inalcançável, a frase da tradução tem que ter uma cadência parecida com a do original, de preferência meio que rimando com ele.

Se o original termina um parágrafo com três palavras curtas, convém usar três palavras curtas em português, mesmo que a tradução mais fiel ao sentido pedisse quatro palavras longas.

Se a frase se esvai de sentido antes de acabar, é aconselhável manter essa dissolução.

Se no transcorrer da frase aparece um termo científico pomposo que logo adiante sugere a alguém uma expressão de gíria, manter esse paralelismo.

Se o autor usa um termo estranho, reiteradamente, para se referir a algo, não se pode a cada vez trocar isso por um sinônimo. Se é sempre a mesma palavra no original, deve ser sempre a mesma palavra na tradução.

Traduzir é fazer algo que guarde com o original numerosas características texto-topológicas, se bem me exprimo. A verdade é que ninguém traduz palavras: traduz frase por frase. O tradutor lê uma frase inteira no original e tem que produzir uma frase equivalente, mesmo alterando as palavras do original, porque percebemos que naquele ponto era o ritmo da frase a coisa mais importante na mente do autor.

É necessário esse esforço todo somente para preservar algo da sonoridade do original?

Sim, se houve no autor original a intenção de produzir algum tipo de efeito sonoro (ritmo, assonância, aliteração, trocadilho, paralelismo, etc.).

Existem autores, talvez até uma maioria nas camadas medianas da literatura, para quem o importante é dizer, informar, contar, sem muita atenção para os aspectos “melódicos”, “harmônicos” e “rítmicos” da prosa.

Para traduzir estes, não é preciso ter tanto cuidado. Basta produzir uma prosa em português que não se afaste muito do tipo de prosa produzido por eles.

Para os autores de prosa mais cuidada, é preciso traduzir de uma maneira mais cuidada. É preciso fazer com que a impressão deixada no leitor em português seja semelhante à impressão que tem o leitor no idioma original.

Uma polêmica recente a este respeito aconteceu em torno das recentes traduções de Dostoiévski, feitas diretamente da língua russa. Durante anos, Dostoiévski foi traduzido no Brasil por via das traduções francesas, de modo que o texto brasileiro seguia de perto as escolhas verbais dos tradutores franceses.


Versões recentes feitas do russo mostraram um Dostoiévski de estilo menos clássico e mais brusco, com uma linguagem meio descuidada própria de quem escreve em folhetins, cheia de hesitações, repetições, palavras meio rudes. Quando tudo isso é reproduzido pelo tradutor brasileiro, o leitor acostumado com o Dostoiévski via francês acaba estranhando. A tradução fica menos “literária”, mas é mais fiel. 



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

4387) O "Grande Sertão" e a canção de Siruiz (19.9.2018)



Um dos elementos simbólicos recorrentes do Grande Sertão: Veredas é a “canção do Siruiz”, uma cantiga entoada pelos jagunços, que não sai da memória de Riobaldo, e é evocada várias vezes por ele ao longo da narrativa.

A cantiga é composta das estrofes abaixo, que na minha opinião são uma mistura de versos anônimos e versos de Rosa:

Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...

Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...

Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando eu vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...

Esta é a versão que é citada pela primeira vez no livro (págs. 114-115; todas as citações são da 2ª. edição, 1958).

Quando acontece isso? Riobaldo está recordando a primeira vez que avistou Joca Ramiro (seu futuro chefe guerreiro; e pai de Diadorim), bem como os lugares-tenentes deste, o Ricardão e o Hermógenes. Os futuros vilões do romance.

É um episódio de quando Riobaldo, menino, já está morando na fazenda de seu padrinho Selorico Mendes (que depois entendemos ser seu pai biológico). Batem à porta, de madrugada. Riobaldo pula da cama, mas o padrinho já está botando para dentro de casa meia dúzia de homens encapotados, de chapelões desabados no rosto, armas, esporas tilintando. Jagunços em pé de guerra.

O padrinho manda fazer café, e começam as conversas. Joca Ramiro e os jagunços querem abrigo e esconderijo para a tropa, por um dia. Começam a ser tomadas providências, e o menino Riobaldo, olhos muito abertos, não perde nada daquilo. Vai servir de guia; e caminha na escuridão com os homens, até onde está a tropa.

De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. (p. 113)

A tropa é maciça, escura e surdamente ruidosa, faz um barulho “que nem o dum grande rio”. O menino se impressiona, vê mais os cavalos que os homens, aos poucos distingue no escuro os chapéus, os rifles. E começa a guiar os cavaleiros rumo ao arrancho; e é aí que o jagunço Siruiz canta aqueles versos.

Um dado interessante da canção do Siruiz é que no romance ela geralmente está associada às enumerações dos jagunços. Em termos de roteiro de cinema, ela seria a “Canção Tema da Horda Guerreira”. Basta comparar:

Anos depois, nas págs. 165-166, vem a enumeração dos guerreiros no parágrafo começando por “Permeio com quantos, removido no estatuto deles...”  E logo depois, pág. 168, surge o refrão da cantiga, quando Riobaldo descobre, no susto, que Siruiz foi morto em combate. Ensinam-lhe então

...outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:

Olerereeêe, bai-
ana...
Eu ia e
não vou mais:

Eu fa-
ço que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio
p’ra trás...

E é com esse refrão que Guimarães Rosa retoma o tema recorrente de seu primeiro livro, Sagarana, a ida e a volta, “for a walk and back again” como diz uma das epígrafes da obra.

Note-se que existe uma melodia subentendida, a meu ver, indicada pelo escritor com essas quebras de palavra entre uma linha e outra. Um recurso frequente de letristas querendo deixar claro um salto melódico, um hiato, uma quebra qualquer na dicção oral. (Em outras edições que consultei, essa disposição gráfica é modificada; com alguma perda, acho.)

E observe-se também que o “oh baiana” é responsório tradicional de um milhão de cantigas da tradição oral. (Quem não lembra Alceu Valença – “Pois eu tenho um espelho cristalino, oh baiana... / Que uma baiana me mandou de Maceió, oh baiana...”)



(desenho de Guimarães Rosa, com sugestões para o ilustrador Poty)

Outra enumeração de peso, a mais longa do livro, é a que surge nas páginas 301-303, a partir do parágrafo “Aí o senhor via os companheiros...”. São dezenas de nomes, numa verdadeira enumeração homérica, que a crítica já comparou com o famoso “Catálogo das Naves” do Livro 2 da Ilíada.

E antes de recordar cada nome (seguido de uma frase breve retratando o antigo companheiro), Riobaldo (pág. 300) conta que num momento de solidão lembrou da cantiga de Siruiz e compôs para a melodia dela esses versos “sem razoável valor”:

Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.

Urucuia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.

Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...

Não é casual a menção ao “fim do mundo”.  A esta altura, os crimes imperdoáveis já aconteceram; e o bando está em perseguição aos “hermógenes”, com sede de vingança.

E há mais uma enumeração, à pág. 511, quando os bandos convergem um sobre o outro, preparando a batalha final do Paredão. Riobaldo volta a lembrar, nome por nome, os jagunços, a quem chama comovido de “irmãos meus”, “meus filhos”, no parágrafo que se inicia com “Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal...

Mas a batalha final se aproxima, e Riobaldo sabe disso: “E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça e couro... É guerra!...” E ele recorda de novo a canção do Siruiz:

Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó Baiana:
e volto
do meio
p’ra trás!  (pág. 513)

Como se a cada vez que Riobaldo “passasse as tropas em revista” na memória ouvisse de novo a canção daquela madrugada em que ele viu pela primeira vez o seu destino futuro, a vida de jagunço, e o corte mortal entre Joca Ramiro e o Hermógenes.

A canção surge num momento mágico, de infância. O menino é tocado pela dimensão épica e cavalariana da vida jagunça. E sempre que a tropa desfila na sua lembrança, retorna a cantiga; e quando ele evoca a cantiga, esta traz à tela da memória a tropa.

A letra da canção traz camadas superpostas de significado. O “faço que vou, mas não vou” é o drible, é o negaceio, a quebrada inesperada com que o jagunço ilude perseguidores.

Ao mesmo tempo, é um aviso inconsciente de Riobaldo de que ele tantas vezes larga uma missão pela metade, desiste ou hesita na hora de definir.

Também é uma espécie de Paradoxo de Zenão: antes de chegar ao ponto X eu tenho que regredir a um ponto anterior, e assim sucessivamente. Uma armadilha lógica que evoca também a armadilha social em que o jagunço Riobaldo está preso: eu quero casar com uma mulher e ser fazendeiro em paz, mas antes eu tenho que matar algumas dezenas de criminosos que mataram meu chefe.

Naquele trecho da pág. 168, quando ele descobre que Siruiz morreu, ocorre-lhe que agora aquela canção inicial está sendo preservada nele, Riobaldo. Mais do que as próprias canções dele próprio:

Pois foi – que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?

Porque o terceiro sentido, mais psicológico, mais metafísico, é o da ida e volta da memória em si. Tema evocado por Ariano Suassuna quando chama o seu próprio “Grande Sertão” de Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue de Vai e Volta. A memória indo e vindo, como lançadeira de tear, para não deixar que as vidas (as canções) se percam.


(Aqui, uma gravação da Canção de Siruiz, musicada por Wilson Dias:)










segunda-feira, 17 de setembro de 2018

4386) A arte do estilo (17.9.2018)




(Cícero Dias, "Eu Vi o Mundo e Ele Começava no Recife", detalhe)

Uma vez, numa dessas oficinas literárias que faço de vez em quando, um aluno trouxe um conto bacana. Tinha uma boa idéia de enredo, mas o acabamento ainda era meio hesitante. Comentei isso com ele, e ele concordou.

– Eu acho a idéia melhor do que o estilo – disse ele. – Mas onde é que a gente vai buscar estilo? Enfeitando as frases?

Essa é uma questão delicada, porque para muitos leitores “estilo” é sinônimo de efeito. Talvez seja uma influência dos locutores de futebol da TV. Toda vez que um jogador faz uma posição de corpo meio caprichada e bate na bola de maneira acintosa, “self-conscious”, meio exibicionista, o locutor diz que ele “bateu com estilo”.

Neymar é um bom estiloso, neste sentido. Romário também, e Maradona. Já artilheiros como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi não são. Batem com perfeição, mas na medida exata do necessário, e parte do seu talento talvez esteja nesta percepção instintiva. Sabem numa fração de segundo a força exata, a colocação precisa, o mínimo volteio necessário do corpo para botar a bola no ponto ideal.

É a arte do não exagerar, não caprichar, não estilizar. “Estilo”, no futebol, é quando o cara quer mostrar 130% de talento num chute.

Transposto para a literatura, estilo (neste sentido, que vou logo dizendo que é equivocado) é visto como sendo uma beirada contínua de excesso que o escritor vai espalhando ao longo da frase. Me parece um erro.

A definição de estilo que eu uso atualmente é: “Maneira pessoal de escrever onde estão trançadas as qualidades e as limitações de um autor”. O estilo é o resultado não só do que o cara sabe fazer muito bem, mas do que ele não consegue fazer direito, e por isso precisa dar uma volta extra para chegar no mesmo ponto.

Ninguém no mundo tem o mesmo conjunto de qualidades e de limitações, por isso não existem dois grandes autores com estilos iguais. Só os medíocres se parecem, porque no gráfico deles tudo tende ao horizontal.

Voltando à Oficina: falei para o aluno que talvez ele pudesse enriquecer o estilo dele lendo alguns autores. “Quem você lê, quando quer se inspirar?,” perguntei. Ele respondeu:

– Ultimamente eu tenho lido Edgar Poe, Jorge Luís Borges, Roberto Bolaño...

Eu maldo que ele só disse isso porque conhecia este blog e deve saber que eu gosto de todos três. Falei:

– Pois eu vou te passar um dever de casa para os próximos 12 meses. Você vai ler a Antologia Poética de Vinicius de Morais, a Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, e qualquer livro de Cecília Meireles.

Por que falei isto? Primeiro, porque a prosa dele não tinha absolutamente nada de Borges, nada de Edgar Allan Poe. O que é uma coisa ótima, porque são dois autores cujo modo de escrever se entranha de tal forma na cabeça de um leitor constante (eu que o diga) que acabam causando mais mal do que bem.

E segundo porque os contos dele eram Roberto Bolaño puro, no sentido de que a maioria dos textos de Bolaño são textos sem pretensão de beleza, de “exuberância verbal”. Bolaño, ou pelo menos o Bolaño dos quatro ou cinco livros que li, escreve com rapidez e limpidez admiráveis. Mas é uma limpidez conseguida ao longo de décadas. Uma limpeza de quem foi se livrando de lastro ao longo da escalada e chega ao topo da montanha com um binóculo e uma mochilinha com propulsores a jato.

Faltava ao jovem contista um pouco de enfrentamento verbal, e esse enfrentamento verbal ele talvez conseguisse lendo poesia. Talvez. A gente receita essas coisas mas não pode garantir o resultado. Porque a prosa de cada autor ressoa de maneira diferente no cérebro de cada leitor.

Resumindo: se você é contista ou romancista, aconselho que leia mais poesia. Mas não é ler por obrigação, é ler gostando.  É ler estudando como os efeitos foram obtidos, como aquelas palavras foram pensadas, por que aquelas palavras e não outras.

A maior parte dos prosadores acha que se a história for boa, as frases não precisam ter ritmo, não precisam ter sonoridade balanceada. Precisam sim, e esta é a parte mais difícil. Idéia boa todo mundo tem. Todo coquetel que eu vou alguém me chega com uma idéia boa para um conto. Mas, e as palavras, autoridade? Que palavras você vai escolher pra passar essa boa idéia adiante?

Reversamente, quando um poeta me pede recomendações de leitura, eu sugiro que leia um romance clássico, leia um Jorge Amado, um Balzac, um Somerset Maugham. Por que? Porque muitos poetas estão no extremo oposto do que discuto aqui: têm as palavras, têm o eu lírico, têm a “melodiosidade”, têm o domínio da cadência, mas falta-lhes assunto, falta vastidão de sentimento, falta verdade coletiva. Ficam versejando sobre o reflexo do sol numa nuvem, e a coisa não sai disso.

Numa edição recente do ótimo jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, Sérgio Sant’Anna, um dos mestres que minha geração de contistas mais estudou, comenta, a propósito do constante diálogo de sua ficção com as artes plásticas:

Sempre me interessei por novos processos, e transformar o visual artístico em palavras me parece o melhor dos mundos. Se eu construir um livro que tenha como inspiração a própria literatura, vejo um grande risco de contaminação, até de certo plágio. Você pode se deixar levar demais pelo outro autor. Inspirando-me nas artes plásticas e no teatro, eu não corro esse perigo. Porque o que eu farei nunca será o que eles fazem.

Escritores inspirados e desafiados pelas artes plásticas têm esse misto de liberdade e impossibilidade: criar com palavras algo que lhes estará vedado para sempre, porque consiste em imagens. E essa impossibilidade (essa limitação) fará desenvolver seu estilo.

Leia-se uma boa parte da obra de Osman Lins, de Georges Perec, de Angela Carter, de Julio Cortázar, de Ariano Suassuna, de J. G. Ballard, de Umberto Eco, de Vladimir Nabokov, de Karen Blixen... São escritores com imensa fascinação pelo visual, pelo plástico, autores capazes de longas descrições pictóricas que jamais equivalerão a uma imagem – daí sua riqueza estilística, como compensação de uma limitação.

Não só a imagem, claro – só para não ampliar ainda mais essa lista já grande, vamos pensar na influência que a música exerce na prosa de Cortázar, de Ariano, de Osman Lins.

Trazidas para a prosa, essas influências “estrangeiras”, a pintura, a música, o teatro, enriquecem a prosa porque a colocam diante de uma tarefa, basicamente, de tradução. E tradução nunca é igual.

Dois escritores que leiam muito Jorge Luís Borges escreverão de um jeito parecido. Dois escritores que ouçam muito Mozart (ou Pixinguinha) podem até achar que estão reproduzindo na sua prosa certos efeitos formais ou estruturais do que ouvem: mas os resultados serão diferentes. Em cada um, a síntese pessoal produz um estilo diferente.











sexta-feira, 14 de setembro de 2018

4385) "O Tempo Desconjuntado" (14.9.2018)





Saiu há pouco tempo minha tradução, pela Suma de Letras, para Time Out of Joint  (1959) de Philip K. Dick, com o título O Tempo Desconjuntado.

Philip K. Dick escreveu esse romance numa época em que mantinha uma dupla persona literária. Estava dividido entre dois mundos, duas possibilidades de carreira como escritor.

Dick se achava qualificado para escrever romances do chamado mainstream (novelas realistas, psicológicas, ambientadas na vida cotidiana e normal) e romances de ficção científica.

Não seria o primeiro nem o último autor a se preocupar com essa encruzilhada.

Antes de 1959, ele escreveu romances mainstream, psicológicos: Gather Yourselves Together, Voices From the Street, Mary and the Giant, A Time for George Stavros, Pilgrim on the Hill, The Broken Bubble of Thisbe Holt. Alguns se perderam; outros só foram publicados décadas depois.

E produziu romances de FC como The Cosmic Puppets, Solar Lottery, The World Jones Made, Eye in the Sky, The Man Who Japed .

É preciso lembrar também que ele não era um escritor convencional, aquele que trabalha pacificamente de seis a oito horas, e depois vai ajudar os filhos no dever de casa, ou então vai aparar a grama do jardim.

Dick sempre teve uma relação problemáticas com as drogas. No caso dele, um californiano típico dos anos 1960, curiosamente a predileção não era por maconha, LSD, cocaína, heroína, etc.  Dick era viciado em comprimidos, tarja-preta de farmácia, que ele conhecia a fundo e tomava em combinações complicadíssimas.

Foi isso que o tornou capaz de escrever sem parar, sem comer direito, sem dormir direito. Eye in the Sky, de 1957, tem 255 páginas na edição da Ace Books; foi escrito em duas semanas.

Como acontece com qualquer escritor de pulp fiction, a escrita de P. K. Dick é um jorro, uma cachoeira, um derramamento incessante de peripécias mal-e-mal mediadas pela consciência. Já escrevi aqui no blog sobre o modo como o ato de escrever é um estado alterado de consciência, e como os autores da pulp fiction acabaram criando sua própria versão da “escrita automática” proposta por André Breton e os surrealistas.

O Tempo Desconjuntado me dá a impressão de um texto mais trabalhado, mais elaborado, mais revisado do que outros que Dick estava produzindo naquela fase. É um dos seus melhores livros, mas meio escanteado pela crítica.


O Tempo Desconjuntado tem a substância daquela tradicional xilogravura antiga que define o “conceptual breakthrough”: o indivíduo que perfura “a redoma do mundo”, “a bolha de Truman”. Ele rompe o hemisfério realista que o cerca e descobre que o mundo de verdade é um mundo de ficção científica onde a Terra está em guerra com a Lua.

Como em Truman, o personagem rompe a casca de dentro para fora, movido por uma paranóia, um estranhamento, a certeza de que estão acontecendo coisas inexplicáveis no mundo. Ele está disposto a ter seu mundo destruído, mas quer saber a verdade.

A cidade em que vive Ragle Gumm é uma cidade dos anos 1950; ele tem memórias da guerra, do tempo em que serviu num posto meteorológico numa ilha remota. Servir o exército numa guerra e ter que ficar vigiando nuvens pode ser péssimo para uns, adequado para outros.

Gumm sai de lá transformado num sujeito que, sem saber como, levado meramente pelo instinto e pelo esforço, adivinha diariamente onde vai tem mais probabilidade de cair uma bomba inimiga.

Gumm é um antecessor deste típico herói da FC cyberpunk, “o sujeito comum que tem um talento que ele usa mas não sabe explicar”. É o Case do livro Neuromancer e é Cayce Pollard da trilogia “Blue Ant”. É o seer, o homem que tem visões, e que na FC se transforma no homem cuja cabeça recebe algoritmos e os manipula de igual para igual.

É a pessoa cujo olho percebe detalhes, e cuja mente percebe padrões, e é capaz de tomar decisões quase sempre corretas em frações de segundo.

É o percebedor de padrões de regularidades, como os idiots savants que não conseguem se alimentar sozinhos mas resolvem em poucos minutos uma operação matemática complexa e enorme.



Esse mesmo tipo vamos encontrar depois em várias obras de Robert Silverberg, como o Martin Carvajal de The Stochastic Man (1975) cuja antevisão estatística abalava campanhas políticas e o mercado de ações, e o David Selig de Uma pequena morte (“Dying Inside”, 1972), o telepata que chegando à vida adulta começa a perder seus poderes mentais.



Anteriores ao protagonista deste livro de Dick são as raridades parapsicológicas que Theodore Sturgeon descreve em O Homem Sintético (“The Dreaming Jewels”, 1950) ou em More than human (1953). Não são heróis propriamente de inteligência superior. Desajustados sociais, marginais meio romantizados, esquisitos mas humanos. Pessoas que fazem algo sobrenatural, algo raro que pode ser útil, na paz e na guerra.

A Guerra Fria foi uma época em que todos os “talentos selvagens” relativos à mente foram sendo testados. Desde o LSD administrado sem aviso às cobaias, como na recente série de TV Wormwood quanto aos delírios de laboratório deixando sequelas.

Ou as verbas investidas em paranormalidade (há uma versão jocosa disto em Homens Que Olhavam Para as Cabras, 2009, de Grant Heslov), ou a criação de um “Arquivo X” só para rastrear o lumpen-sobrenatural.

É meio repetitivo falar em Guerra Fria como grande influência na obra de Dick, mas essa paranóia constante aparece em quase tudo dele. Não o medo do Comunismo ou do Nazismo, que aparecem citados em poucos livros. Mas o medo da sociedade de vigilância e punição a ser instalada para poder produzir uma defesa contra a ameaça comunista e nazista.

A Guerra Fria era a ameaça de uma guerra atômica que nunca chegou a acontecer (a não ser para duas cidades do Japão), e para que ela não acontecesse criaram-se imensas estruturas militares, tecnológicas, jurídicas, financeiras. A atual Sociedade da Hipervigilância pode até nem ter sido o objetivo inicial da Guerra Fria, mas é resultado dela.

É ao mesmo tempo a sociedade do espetáculo, da vigilância, da interconexão, do acompanhamento. De certa forma,Time Out of Joint é mais uma das obras de P. K. Dick onde um personagem parece dizer: “descobri que sou o homem mais importante do mundo”. Foi este o título de uma tradução portuguesa deste livro.


O paranóico descobriu-se no centro de um mundo que o conhece e acompanha suas ações com ansiedade. E não só isto: o mundo em que ele vive foi criado para ele, em função dele, é um paraíso classe-média feito à sua imagem e semelhança.

Já a vida pessoal de Truman Burbank, no filme de Peter Weir, é apenas o mais bem produzido reality show da Terra, e com uma cereja no bolo: o imenso novelão é encenado à revelia do personagem principal, para quem aquilo é uma cidade de verdade. Ele pensa que aquele trabalho é de verdade, que aquela esposa é de verdade...

Por isso que Truman Burbank gostava de tomar cerveja. Nenhum filósofo, nenhum cientista pode dizer que aquela cerveja que ele tomava ali não era real.

O Tempo Desconjuntado tem algumas das melhores páginas “philipkdickianas” da literatura de FC, aqueles trechos onde a fachada do Real se rasga e deixa entrever alguma coisa que existe por trás.

E no faz sentir admiração por um personagem que decide ir em frente e confirmar uma dessas duas hipóteses: ou eu fiquei louco, ou o mundo em que eu vivia era uma mentira.












terça-feira, 11 de setembro de 2018

4384) Lamentos sertanejos (11.9.2018)




“Ó Deus, perdoe esse  pobre coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar”.

Esta é a “Súplica Cearense”, de Gordurinha, gravada por Ari Lobo.


Essa música é um clássico de um tipo de canção nordestina que alguns chamam de protesto, mas eu acho que “protesto” é um guarda-chuva amplo demais, cabe desde certas litanias de Bob Dylan até o Faces do Subúrbio ou Mano Brown.

Poderíamos chamar esse gênero de queixume nordestino, com a desvantagem de que queixume parece a muitas pessoas uma palavra apequenadora, quando não é essa a intenção.

Lamento seria melhor; um lamento sertanejo, como o de Dominguinhos e Gilberto Gil: “Por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, / lá do interior, do mato, / da caatinga, do roçado...”

Considerado como subgênero, podemos pendurar aí títulos como “Meu Cariri” e “Aquarela Nordestina” de Rosil Cavalcanti; “Triste Partida” de Patativa do Assaré, com Luís Gonzaga; “Acauã” de Gonzaga.

Mas a súplica do nordestino daquele canção inicial de Gordurinha não é a súplica de um mero desgraçado. Acaba sendo na verdade uma intimação. Um questionamento feito a Deus pelo nordestino, cara a cara, sem intermediários. O tête-à-tête é respeitoso, mas altivo. “Meu Deus, se eu não rezei direito o senhor me perdoe, eu acho que a culpa foi – desse pobre que nem sabe fazer oração...” 

Existe um sarcasmo impotente nessa auto-depreciação diante do monarca. Não é um apequenamento. É a polidez do herói de cordel, respeitoso, chapéu apoiado ao peito, questionando diplomaticamente o Dono do Mundo na presença de toda a sua corte de vizires.

Sim que o “ai ai meu Deus, tenha pena do Nordeste” da “Aquarela Nordestina” acaba se revelando um gemido mesmo, mas a variedade de tons e de filosofias nessas letras mostra que não se trata de se queixar da vida. Em sua maior parte, essas canções são painéis visuais, panorâmicas vagarosas. Numa paisagem visualmente perfeita como a da letra de Rosil Cavalcanti:


No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.
Juriti não suspira, inhambu seu canto encerra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.

Acauã bem do alto do pau-ferro canta forte
como que reclamando nossa falta de sorte.
Asa branca sedenta vai chegando na bebida;
não tem água a lagoa – já está ressequida.

Ou então um retrato de uma pequena odisséia social nos versos de Patativa do Assaré em "Triste Partida":


(...)
O carro já corre no topo da serra
olhando pra terra seu berço, seu lar,
aquele nortista partido de pena
de longe ele acena, adeus meu lugar...

No dia seguinte já tudo enfadado
e o carro embalado veloz a correr,
tão triste coitado falando saudoso
um seu filho choroso exclama a dizer:

– De pena e saudade papai sei que morro,
meu pobre cachorro quem dá de comer?
Já outro pergunta: – Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato, Mimi vai morrer...

Essas canções, são lamentos, sim, são queixas sem grandes esperanças, são o mergulho corajoso rumo ao fundo do poço para ver se depois dele existe uma saída.

Vi uma vez em algum curta-metragem sobre o sertão uma voz em off perguntar a um velho sem dentes, de roupa rasgada, quase centenário:

– O senhor acha que o sofrimento do povo daqui é muito?...

O velho olhou para um lado, cuspiu de banda e retorquiu:

– É mió dizer que sim, né? Se disser que é pouco, mandam mais.

Essa capacidade para a auto-ironia acompanha passo-a-passo a tendência ao lamento, à súplica, ao desespero melodramático que tanto encanta o sertanejo pobre quando transformado em literatura, como em certos romances de cordel:

Nasci num berço de dores
criei-me entre os pesares
a dor, a tristeza e pranto
são meus extremosos lares
meu fado foi o carrasco
que sepultou-me nos mares. (...)

Que sorte tenho, ó meu Deus
que tudo de mim se esconde
se como não sei o que
se durmo não sei aonde
se choro ninguém me afaga
se chamo ninguém responde.

Ó mar, se algum dia ainda
passar aqui povo meu
revele uma desdita
que assim jamais se deu
dizei que dentro de ti
Cecília Afra morreu.

(A Estória de Cecília Afra – Três Suspiros de uma Esposa, de Teodoro Ferraz da Câmara, 1904-1960)

Essa veia do lamento retórico exprime uma das contradições do temperamento do sertanejo pobre: quanto mais seco, mais atenção ele presta ao derramamento sentimental; quando mais rude, mais vulnerável a imagens hiperbólicas de extravasamento de emoções.

Como se essa linguagem poética de queixumes-em-altas-vozes fosse a única maneira possível de jogar para fora tanto sofrimento curtido em silêncio ao longo de décadas por pessoas que têm vergonha de chorar ou de se emocionar em público.

Daí que os grandes momentos da emoção sertaneja acabam sendo os momentos mais contidos, onde um apocalipse inteiro se condensa numa sextilha, num par de versos, numa trova, num pequeno espaço de texto onde se deposita o peso de uma vida inteira de derrotas e aprendizados.

Como os versos de Leandro Gomes de Barros, tantas vezes recitados por Ariano Suassuna:


Se eu conversasse com Deus
iria lhe perguntar:
por que é que sofremos tanto
quando viemos pra cá?
Que dívida é essa que o homem
tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
como é que ele é feito;
que não dorme, que não come,
e assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
a gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
e outros que sofrem tanto,
nascidos do mesmo jeito,
criados no mesmo canto?
Quem foi temperar o choro
e acabou salgando o pranto?











quinta-feira, 6 de setembro de 2018

4383) Dez grandes jogos do Treze (6.8.2018)




(time do Treze, com Garrincha)


Mário Vinicius Carneiro é hoje o historiador do Treze Futebol Clube, posto que herdou informalmente do inesquecível Severino Marinho Leite. Seu livro Treze Futebol Clube: 80 Anos de História (A União, 2006) é uma obra imensa e preciosa, tornada minúscula apenas diante da gigantesca tarefa a que se propôs: contar a história do clube mais querido e mais heróico da Paraíba.

Ele me pede, para outro trabalho, um breve relato de “dez jogos inesquecíveis” do Galo. Eu poderia enumerar aqui dez vitórias arrasadoras, entre milhares. Mas prefiro destacar jogos que, independente do seu resultado, tenham sido marcantes na minha história pessoal como torcedor.

1)
Durante muitos anos eu, garoto ainda, lamentei não ter podido assistir a partida de 6 de janeiro de 1961 quando o Treze empatou em 1x1 com o Dínamo, de Bucarest. Consta que foi o primeiro jogo internacional realizado em Campina Grande. Não foi o primeiro jogo internacional do Treze: em 16 de dezembro de 1951 o Galo havia perdido de 3x2 para o Vélez Sarsfield (Argentina), num amistoso em João Pessoa. O Dínamo ficou sendo uma espécie de lenda em Campina; o pessoal dizia que no primeiro tempo o sol forte castigou os romenos, mas quando o sol foi esfriando eles botaram pra correr e deram uma prensa no time do Galo.

2)
Outro jogo histórico foi quando o Treze enfrentou a Seleção da Romênia no Estádio Presidente Vargas, em 8 de fevereiro de 1968. O time romeno era mais ou menos o mesmo que dois anos depois seria derrotado pelo Brasil na Copa do Mundo do México. O grande detalhe esse jogo foi a presença de Garrincha jogando pelo Galo. Nessa época, o grande Mané vivia viajando pelo Brasil, jogando partidas por clubes de qualquer lugar, por uns trocados. Gordo e sem muita força para driblar, mas (segundo os que tomaram umas e outras com ele) simpático e bem humorado. Só fez uma jogada certa: pegou a bola quase na lateral do campo e fez um cruzamento longo na cabeça de outro atacante, e o Estádio inteiro ficou de pé ao mesmo tempo.

3)
Não posso deixar de fora o dia histórico em que o Galo se tornou campeão paraibano invicto de 1966, derrotando o Campinense por 1x0, gol de Cocó. O presidente do Galo era Edvaldo do Ó, também reitor da Universidade Regional , que costumava bater de frente com quem se atravessasse. O Treze nesse ano rompeu com a imprensa e editou seu próprio jornal (“A Tarde”); as rádios eram proibidas de transmitir os jogos no Estádio Presidente Vargas. Um ano antes, quando o campeonato de 1965 ainda estava em curso, ele havia anunciado pelo rádio: “Este campeonato já está perdido, mas eu prometo à torcida que no ano que vem o Treze vai ser campeão invicto”.

4)
Tem jogos que nem são tão importantes assim, mas a gente não esquece. Por volta de 1976 Treze e Campinense estavam numa fase de grandes contratações. O Galo tinha contratado desde o ano anterior o meia Soares e o atacante João Paulo. Foi marcado um amistoso no Amigão, uma espécie de caça-níquel de pré-temporada, e o Treze derrotou o Campinense por 2x0, gols de Soares e João Paulo. A imprensa rubronegra estrilou, queixando-se de que os reforços do time Raposa não tinham chegado a tempo para o jogo. E foi marcada uma partida revanche para a semana seguinte, no mesmo local. E dessa vez o Campinense entrou completo, com todas as novas estrelas reluzindo. E o Treze ganhou de 2x0, gols de Soares e João Paulo. Foi o famoso “jogo replay”.

5)
Em 8 de dezembro de 1974, um jogo histórico do Galo no antigo Estádio Leonardo da Silveira, na capital. O Treze precisava de uma vitória sobre o Botafogo para conquistar o quarto e último turno de um campeonato onde o Campinense já ganhara os três primeiros. A BR-230 ficou congestionada nesse dia de tantos ônibus e carros partindo para João Pessoa. A torcida alvinegra invadiu o Estádio e vibrou do começo ao fim com a vitória por 2x1, gols de Fernando Canguru de cabeça e Vandinho. Foi um jogo literalmente “ganho pela torcida”.

6)
Nessa mesma época, o Treze inaugurou os refletores do Estádio Amigão num amistoso com o Flamengo carioca, em 13 de agosto de 1975. Isso foi no auge do meu envolvimento como torcedor. Lembro que passei a noite da véspera nos fundos do Cine Babilônia (cujo gerente, Luiz Teixeira, era trezeano autêntico), dando instruções ao pintor de cartazes (cujo nome não lembro agora) para pintar as faixas que íamos levar no dia seguinte, das quais só lembro os dizeres de uma: “O Treze saúda a imprensa, / testemunha da sua História”. Com a bola rolando, o Treze abriu o placar logo no início com João Paulo, e o Flamengo virou com dois gols de Zico, vencendo por 2x1.

7)
Seria meio ufanista registrar como inesquecíveis apenas as vitórias. As derrotas também são. Vou escolher como exemplo a da decisão do Campeonato Paraibano em 8 de fevereiro de 1965, um jogo noturno no “Plínio Lemos” (o estádio do Campinense). O Campinense ganhou por 2x1, de virada, com um jogador a menos (Zé Preto foi expulso no 1º. tempo), com um gol de cabeça de Zé Luiz. Três anos depois eu estava trabalhando na Reitoria da FURNe com Zé Luiz, e disse a ele que jamais o perdoaria por aquele gol, ao que ele deu uma grande gargalhada (pois agora já estava jogando no Treze.) Naquela “noche triste”, ensopei três travesseiros de choro.

8.
Não foi propriamente um jogo, mas ficou na história. Em 1974 o Treze estava há não sei quantos jogos sem ganhar do Campinense, um “tabu” que já durava mais de um ano. Muita coisa, considerando-se que em um ano os “maiorais” jogam várias vezes entre si. E então veio o “Torneio Início” do Campeonato Paraibano, um costume que não existe mais, onde os todos os times do campeonato disputam partidas de 15 ou 20 minutos em 2 tempos, decididas nos pênaltis em caso de empate. Nesse ano o Treze venceu o Guarabira, o Botafogo-PB e na decisão o Campinense, todos pelo placar de 2x0. Foi esse jogo que revelou o artilheiro Fernando Canguru, que marcou os 2 gols da decisão e virou grande ídolo do Galo.

9.
Tentei me lembrar de alguma grande goleada, porque goleada é sempre uma festa. E me veio à memória um período de uns dois meses, entre julho e agosto de 1973, em que o Treze aplicou uma série de goleadas em times paraibanos: 8x1 no Santos (de João Pessoa), 8x0 no Esporte (de Patos), 8x1 no Guarabira e 10x0 no Santa Cruz (de Santa Rita). Nessa época, eu assistia todos os jogos na arquibancada atrás do gol do portão de entrada, e era uma festa. Quando o Treze pegava a bola e partia em nossa direção, começava um coro frenético: “Lá vem, goleiro! Lá vem!”  E era um bombardeio, porque tínhamos um ataque muito bom, com Assis Paraíba, Vandinho, Zé Pequeno, Haroldo e outros. Quando a “carga da brigada ligeira” partia e a arquibancada ficava toda de pé, era uma beleza, nunca me diverti tanto.


10.
E para não ficarmos apenas nos jogos da antiga, registro um que curiosamente vi na tela do computador, poucas semanas atrás: Caxias 1x3 Treze, em Caxias do Sul, quando o Treze conseguiu a ascensão para a série C do Brasileirão. Uma partida impecável do Galo, que sofreu o gol de abertura, empatou ainda no primeiro tempo, virou no começo do segundo e fechou-a-tampa no finzinho com um gol sensacional de contra-ataque.


Cada jogo do Galo é uma página da História!  Amar um time de futebol é ser casado com o Imprevisível e virar sócio do Acaso. Eu vivo dizendo que larguei o vício, e de repente olha eu aqui.


(Esta crônica foi publicada no meu livro "A Fonte dos Relâmpagos", Editora Arribaçã, Cajazeiras, 2022)