sábado, 23 de maio de 2020

4581) Uma vida a mais ou a menos (23.5.2020)




Eu tinha uma piada, nos anos 1980, cuja graça ninguém entendia. Pense numa coisa que nunca fez efeito em mesa de bar. Era na época em que o Brasil tinha uma dívida externa gigantesca e todo mundo dizia que o país estava quebrado, falido, o país ia acabar. (Sobrevivemos a isto.)

A dívida externa era (digamos) algo em torno de 100 bilhões de dólares. E havia uma equipe de economistas e ministros que todo ano ia a Washington para negociar essa dívida com os credores. Tentar um abatimento.

A minha piada era que um ministro brasileiro dizia para um credor norte-americano: “Ora, ora, um bilhão de dólares a mais, um bilhão a menos, que diferença faz?...”

A piada tinha uma mensagem. (Se as pessoas acreditam que um filme pode ter mensagem, por que uma piada não teria?)  A mensagem é que valor e quantidade são fatores inversos, vistos de um certo ângulo. Se você está negociando uma dívida de 100 reais e o credor diz “Tá bom, tá bom, deixo por 99”, existe um ganho; miudinho, claro, mas não deixa de ser um ganho.

O que é um real? O que é um bilhão de dólares? Pode ser muito ou pouco, dependendo da soma total de que faz parte.

Na época, eu bolei também uma gag de humor tenebroso, tipo filme dos Irmãos Marx. O país está em guerra. Todo dia chegam estatísticas da frente de batalha. Dois caras trabalham na rádio do Exército, transmitindo informações para a Pátria. Um deles está ao microfone, prestes a iniciar a transmissão. Chega outro com um papel:

– Sargento, aqui está a estatística de nossas baixas na batalha de ontem.

– Morreram quantos?

– (Olhando o papel) 3.424.

Quando ele entrega o papel, alguém abre a porta e avisa:

– Morreu mais um, agora.

Os dois em uníssono:

– Coitado! – E fazem o sinal da cruz.

A gente acusa emocionalmente uma morte individual, mas as mortes coletivas são sempre um mero número. Ninguém faz o sinal da cruz 3.425 vezes.

Comparo isto tudo a uma reportagem que li numa revista há muitos anos: uma família perdeu um filhinho, que se afogou numa piscina pública dos EUA. A certa altura do texto, o redator diz:

A piscina, é claro, tinha um salva-vidas, um homem de confiança, professor de natação, profissional atento. Mas nem sempre é fácil perceber que num segundo há 50 cabecinhas para fora da água, rindo, gritando, espadanando água, e no instante seguinte só tem 49.

Quem assistiu Minority Report de Steven Spielberg há de lembrar a cena em que o filhinho de Tom Cruise desaparece numa piscina assim. É muito difícil, numa multidão, cuidar de cada individualidade única e insubstituível.



Essas meditações estatísticas me vêm à mente depois que revi, ontem à noite, O Terceiro Homem (“The Third Man”, 1949), de Carol Reed. É um clássico de sua época, um desses filmes onde tudo se encaixa bem, a começar pelo roteiro de Graham Greene, e pela fotografia de Robert Krasker, que faz o filme ser incluído em listas de “policial noir” e de “cinema expressionista europeu”.


(Ilustração: John Harbourne)

O grande tchans de The Third Man é o personagem Harry Lime, interpretado por Orson Welles. É aquele personagem tradicional, o Canalha Irresistível, um bandido que seduz pessoas a contragosto delas. O filme é construído quase como uma homenagem a Welles e seu Cidadão Kane – começa anunciando a morte do personagem, e depois, com ele fora da história, começamos a saber dele através dos depoimentos de quem o conheceu.

O filme é a história de uma desilusão, a de um amigo (Joseph Cotten) e uma namorada (Alida Valli) que ficam sabendo ao longo das investigações (Lime está vivo, apenas fingiu a própria morte para escapar da polícia) que ele estava envolvido num esquema de adulteração de remédios. 

A história se passa em Viena, pós-II Guerra, há epidemias, principalmente de meningite entre crianças. E Lime inventou um esquema de misturar penicilina com água, e vender pelo dobro do preço.

O amigo fica chocado, não acredita que Harry seja capaz disso. O policial o leva a um hospital de crianças e sai caminhando com ele, de leito em leito, mostrando os resultados da penicilina-batizada. A câmera, com admirável autocontrole, mostra apenas os rostos deles dois.




Harry Lime fingira estar morto para escapar da polícia, mas Holly o descobre e os dois se encontram num parque de diversões, e têm um confronto no alto de uma roda gigante. Holly questiona. Lime dá de ombros e aponta para as pessoas lá embaixo.

– Olha, nunca me senti à vontade com essas coisas. Vítimas? Não seja melodramático. Olhe lá pra baixo. Me diga. Você ficaria mesmo com pena se um daqueles pontinhos ali parasse de se mexer de repente? Se eu lhe oferecesse 20 mil libras por cada pontinho que parasse de se mexer, hein, meu velho, você me diria mesmo que não queria? Ou você ficaria calculando quantos pontinhos daria para poupar?

É a Europa da Guerra Fria, e guerra é guerra, independe de temperatura. Os países estão tentando se reconstruir depois de seis anos de bombardeio, incêndios e massacres. Como se sabe, no capitalismo "crise" é sinônimo de oportunidade. Tudo se reduz a pontinhos, a números, a estatísticas, a dinheiro. O que é uma vida a mais ou a menos? Os judeus perderam seis milhões de pessoas nos campos de concentração. Os soviéticos perderam 27 milhões no total da guerra. Diante disso tudo (pensa Harry Lime) o que é a vida de algum garoto que teve meningite e tomou penicilina batizada?