sábado, 30 de outubro de 2021

4759) A mescalina de Jean-Paul Sartre (30.10.2021)



 

Um dos livros mais conhecidos sobre a questão das drogas alucinógenas e das chamadas viagens psicodélicas é As Portas da Percepção (“The Doors of Perception”, 1954) de Aldous Huxley. Este livro geralmente é publicado em conjunto com O Céu e o Inferno (“Heaven and Hell”, 1956), que é uma espécie de continuação; são dois textos curtos, complementares.
 
A experiência de Huxley ficou famosa, em grande parte, pelo respeito de que o escritor era cercado em vida. Huxley vinha de uma família ilustre de cientistas e literatos, e era considerado um dos grandes intelectuais de seu tempo. Um romancista de idéias, algo bem típico da literatura inglesa; muito respeitado e muito acompanhado pela imprensa.
 
Muitos livros seus já foram traduzidos no Brasil: Contraponto (edição original, 1928), Sem Olhos em Gaza (1936), O Macaco e a Essência (1948), O Gênio e a Deusa (1955), A Ilha (1962), Também o Cisne Morre (1939), A Arte de Ver (1942) e outros.
 
Ele havia abordado a questão das drogas em seu romance clássico Admirável Mundo Novo (“Brave New World”, 1932) em que sugeriu que as sociedades totalitárias do futuro não recorreriam à violência (muito desgastante), mas às drogas apaziguadoras. Em resumo, ele propunha substituir o chicote pelo chiclete. Basta olhar em volta e a gente percebe que funciona. (Huxley imaginava a droga sendo produzida e administrada pelo Estado, e não previu o modo bestial como ela de fato se instalou entre nós; mas não se pode prever tudo.)
 
Huxley voltou ao tema depois, com o romance utópico A Ilha (“Island”, 1962), em que as drogas eram usadas de forma igualmente utópica, ou seja, como um caminho para a transcendência. Talvez seja aqui que ele aplicou de movo mais organizado as suas observações e conclusões após sua experiência com a mescalina, feita em maio de 1953 na sua casa na Califórnia (ele era um inglês “transplantado” para os EUA), na companhia de sua esposa Maria e do psiquiatra Humphry Osmond.
 
Essa experiência mostra bem o lado apolíneo de Huxley, um intelectual sério, metódico, humanista, de cabeça aberta a novas idéias mas sempre com uma tendência britânica ao formalismo social e à necessidade de tornar cada experiência pessoal sua algo útil para a comunidade acadêmica e para a espécie humana como um todo.
 
A experiência de Huxley foi precedida por tentativas de muitos outros escritores. O poeta Antonin Artaud provou a mescalina (e não só ela) nos tempos em que andou pelo México.
 
O escritor Henri Michaux foi outro que experimentou as viagens lisérgicas, e seus escritos deram origem a um filme importante, Images du Monde Visionnaire (1964, 34 minutos), dirigido por Eric Duvivier.  O filme procura reproduzir certos efeitos visuais subjetivos, o que não é nada fácil. (Lembro de um amigo cineclubista que dizia: “Infelizmente, você não pode fazer uma câmera sentir o efeito do LSD.”)
 
Michaux se decepcionou um pouco e disse que mesmo num filme com enormes recursos técnicos e muito dinheiro isso seria impossível:
 
As imagens teriam que ser mais deslumbrantes, mais instáveis, mais sutis, mais mutantes, mais intangíveis, mais trêmulas, mais atormentadas, mais retorcidas,  infinitamente mais carregadas, mais intensamente belas, mais aterrorizantemente coloridas, mais agressivas, mais idiotas, mais estranhas.
 
O filme pode ser visto aqui na UbuWeb (“o YouTube da Vanguarda”):
 
https://www.ubu.com/film/michaux_images.html
 
Uma experiência que acho importante para a literatura, mas que não é tão comentada quanto a de Huxley, é a de Jean-Paul Sartre, que com menos de 30 anos e ainda escritor inédito fez-se administrar mescalina em 1935, no centro hospitalar universitário Saint-Anne, onde o próprio Antonin Artaud foi paciente durante algum tempo.
 
Sartre tomou a mescalina na companhia de seu colega, o Dr. Daniel Lagache. (É curioso que, tal como fez Huxley, nos momentos de maior solenidade conceitual, o pessoal da ficção gosta de se fazer acompanhar do pessoal científico.) Na época ele estava estudando “a fenomenologia da imaginação”, e os efeitos da droga fizeram-se sentir durante meses. Ele experimentou surtos da “sugesta” (paranóia de estar sendo seguido, de ver monstros, etc.).
 
O pequeno mas útil Sartre: Vida e Obra (José Álvaro Editor, 1967) de Luiz Carlos Maciel refere esse episódio. Acho que foi também nele que vi uma menção curiosa: Sartre tinha alucinações em que via a cabeça gigantesca de um gorila espreitando-o na janela do apartamento onde morava. A ser verdade, imagino que se tratasse de um eco do filme King Kong (1933), sucesso daquela época. 
 
Esta experiência psicodélica coincidiu com os anos de elaboração de A Náusea (1938), seu livro de estréia. O livro tem como protagonista e narrador o escritor Antoine Roquentin, que, passando por uma crise, começa a ter a percepção muito intensa de que as coisas que o cercam existem independentemente de estarem sendo percebidas pela sua consciência. (A maioria das pessoas admite isso como verdadeiro, mas muito poucas o sentem.)
 
Roquentin caminha pela cidade e contempla os passeios dominicais dos pequeno-burgueses de Bouville, a cidadezinha onde está morando. Vê seus rituais pomposos, suas roupas, suas conversas banais, e tem a sensação apavorante de que tudo aquilo é um mundo de mentira, de cenografia, de encenação, uma espécie de “matrix” ou de “truman-show” cuja irrealidade só ele percebe.
 
Enraivecido, ele tem vontade de agarrá-los, sacudi-los, fazer com que percebam a Existência crua, muda, indiferente à consciência humana, por baixo de tudo aquilo. O impulso do personagem se alimenta da bad trip do autor:
 
E se alguma coisa acontecesse? (...) Pode ocorrer a qualquer momento, talvez agora mesmo; os presságios são visíveis. Por exemplo, um pai de família pode sair para passear e avistar na calçada alguma coisa como um trapo vermelho, sendo arrastado pelo vento. E quando esse trapo estiver bem próximo, ele vai ver que é um pedaço de carne apodrecida, suja de poeira, que avança aos rastos, aos pequenos pulos, um pedaço de carne torturada que rola pela sarjeta expelindo jatos de sangue. Ou então uma mãe irá olhar a bochecha de uma criança e dirá: “Mas o que é isto... uma espinha?”, e verá como aquela carne incha, e se racha, e se abre, e de dentro daquela fenda brota um olho, um olho que parece estar rindo. Ou então as pessoas sentirão algo que parece uma carícia roçando seus corpos, como aqueles juncos que na água dos rios acariciam os corpos dos nadadores. E perceberão que suas roupas são criaturas vivas. E outro indivíduo vai perceber que dentro de sua boca há uma coisa que a arranha. E se aproximará do espelho, abrirá a boca: sua língua terá se transformado numa enorme centopéia viva, que agita as patas e arranha o seu céu-da-boca. Ele tenta cuspi-la para fora, mas a centopéia é uma parte do seu corpo, e ele terá que arrancá-la com as próprias mãos. E começarão a surgir coisas por toda parte, coisas para as quais será preciso inventar novos nomes: o olho de pedra, o grande braço tricorne, o artelho-muleta, a aranha-mandíbula.
(Capítulo “Mardi à Bouville”, trad. BT)
 
A Náusea é geralmente considerada como um ataque violento à pequena burguesia francesa do entre-guerras, ou como uma ilustração romanceada de algumas proposições filosóficas dos existencialistas. Acho que tem também um lugar dentro da literatura sobre os efeitos das drogas e a exploração literária dos estados alterados da consciência. Um romance que ajudou a desbravar uma trilha por onde avançariam, anos depois, autores como William Burroughs, Hunter Thompson e Philip K. Dick.