terça-feira, 7 de julho de 2020

4597) Júlio Cortázar e o Brasil (7.7.2020)



(Cortázar, em Ouro Preto) 

Dias atrás circulou aí pelas redes sociais uma foto de Julio Cortázar em Ouro Preto, compartilhada por Romério Rômulo, grande poeta daquela Arcádia barroca e penumbral.  Alguns amigos se espantaram: “Ué!... Cortázar já esteve em Ouro Preto?  Cortázar já esteve no Brasil?”

Pensei que isto era de conhecimento público, mas como aconteceu na época sumeriana de 1973, é fácil de entender por que muita gente não sabia ou não se lembrava.

Não sei se a coleção (preciosíssima) do Suplemento Literário Minas Gerais está digitalizada e aberta a pesquisas. Caso esteja, sugiro aos interessados que cascavilhem um pouco na coleção daquele ano e acabarão achando um número especial dedicado à aventura mineira do enormíssimo cronópio platino. Há inclusive numerosas fotos dele, acompanhado de sua então namorada Ugné Karvelis (da Editora Gallimard), e de vários escritores mineiros.

Um livro muito útil, e simpático, para conhecer melhor as idéias e o varejo biográfico de Cortázar é a coletânea epistolar Cartas a los Jonquières (Buenos Aires: Aguilar, Altea,Taurus, Alfaguara, 2010) que reúne em 500+ páginas as cartas dele para o casal Eduardo e María Jonquières, amigos da vida toda.


São cartas importantes porque ele se dirige a amigos íntimos, que acompanharam sua evolução como escritor desde os primeiros livros. Eduardo Jonquières era pintor e poeta, com vários livros publicados e uma carreira sólida nas artes plásticas. Numa época em que as cartas serviam a muita gente como uma espécie de diário momentâneo para organizar e fixar idéias e opiniões, Cortázar discutia com o casal de amigos assuntos que talvez não mencionasse numa entrevista pública.

A viagem ouropretana foi comentada por ele junto aos Jonquières num bilhete (que no livro vem transcrito, e em fac-símile) enviado de Brasília, sem data, num cartão ilustrado com reprodução de obras de arte de Arequipa (Peru), publicado pelas Damas Rotárias (= do Rotary Clube).

Cher Maître. Espia só do que são capazes as Damas Rotárias (uma dama rotando parece uma coisa feia, não é?). Aqui estou, em Brasília, enviando-te com atraso este delicado testemunho da arte arequipenha.  Certamente Arequipo é uma cidade maravilhosa, que talvez tenhas conhecido em tuas missões huneskianas. E agora, depois de ter sobrevivido ao aluvião equatoriano e peruano, vou conhecendo este Brasil (Ouro Preto, Congonhas, Rio, São Paulo, Brasília) e amanhã estarei na Bahia com Caetano Veloso e os demais cronópios da música. Aqui faz um calor do quinto caralho mas Niemeyer, que grande figura! Ainda voltarei por São Paulo, onde os poetas (milhares!) me levarão aos seus países concretistas, com Haroldo de Campos e Décio Pignatari à frente. Tudo é uma imensa loucura, o Cusco, Otávalo no Equador, as pessoas, a bebida, a amizade, as noites com estrelas enormes.

Acho que são conhecidos os laços de amizade distante do escritor com os compositores baianos e com os concretistas de São Paulo, com referências em entrevistas, artigos, etc.

É interessante o detalhe de que Cortázar passou por Congonhas do Campo, uma peregrinação que tantos estrangeiros (sou testemunha) se interessam em fazer e tantos brasileiros nem batem a pestana. Eu mesmo nunca fui, apesar de ter morado em Minas; tenho a meu favor o fato de que foi num tempo de pindaíba absoluta. Dez anos atrás, passei a alguns quilômetros de lá, mas vinha na estrada em uma van cheia de gente, rumo a um aeroporto, não havia como fazer um desvio nem de meia hora.

Cortázar era um grande apreciador das artes plásticas, da pintura, da escultura, da arquitetura. Nas cartas aos Jonquières, os primeiros anos de sua moradia em Paris são cheios de relatos de viagens pela Europa, visitando não somente os grandes museus, mas também fazendo incursões naquelas cidadezinhas medievais obscuras onde estão algumas jóias arquitetônicas e históricas. Ele era daqueles viajantes que, num trajeto de trem entre duas grandes cidades, são capazes de descer numa estação insignificante, pernoitar num hotelzinho qualquer, e na manhã seguinte ir até a Capela Fulano de Tal (já devidamente pesquisada e anotada) para ver um quadro raro de Cimabue ou de Fra Angelico, e de tarde pegar o próximo trem e seguir viagem.


(Mural de cartões postais, na casa de Cortázar)


Ele tinha esse temperamento metódico de planejar viagens de enriquecimento cultural, com uma longa lista de coisas para ver.

Nesse aspecto, se parece muito com o brasileiro Osman Lins, que em seu Marinheiro de Primeira Viagem e outras obras registra o quanto se preparou, metodicamente, para estudar a arte européia in loco quando viajou para o “Velho Continente” por seis meses, no intervalo entre sua saída do Recife e sua transferência definitiva para São Paulo.

Diz Osman Lins:

Esta minha temporada na Europa foi muito importante, porque eu a levei muito a sério, estabeleci programas muito rígidos de visitas a museus, concertos, de visitas a determinadas cidades, fui a Arezzo só para ver certos murais de pedra.
(Evangelho na Taba, Summus, pág. 212)




É o mesmo espírito de Cortázar, que nas compridas cartas aos Jonquières relata suas viagens e comenta um por um os museus e galerias que visitou, compara quadros, anuncia missão cumprida quando finalmente se depara com um conjunto escultórico ou um mural.

Por isso, Ouro Preto e Congonhas do Campo (e provavelmente Brasília, pelo aspecto arquitetônico) foram lugares que ele certamente insistiu em conhecer, mesmo que os baianos o quisessem arrastar para o Rio Vermelho e os paulistanos para Perdizes.

Para não dizerem que sou eu que estou inventando essa afinidade de espírito entre Osman Lins e Cortázar, aqui vai o testemunho dele próprio, em outra correspondência aos Jonquières, datada de fevereiro de 1983:

(...) Me alegrou o fato de você gostar tanto de Avalovara, porque ainda que não me lembre dele em detalhe, ficou-me como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecília rodeada de leões”, perduram em minha memória nos tempos de hoje. Às vezes penso que as coisas mais fortes que li nos últimos dez anos são as obras de dois brasileiros, Clarice Lispector e [Osman] Lins; dá quase vontade da gente se lançar ao português em busca de outras coisas que por acaso possam existir.

A gente sabe que a barreira entre a língua castelhana e a língua brasileira é uma barreira desigual. Nós os entendemos e os lemos com relativa facilidade, enquanto que para eles a via contrária é muito penosa, quase inacessível. Cortázar provavelmente leu Avalovara em francês, na tradução de Maryvonne Lapouge, pela Denoël, de 1975.