quarta-feira, 14 de março de 2018

4325) Alguns clichês narrativos (14.3.2018)



O clichê é algo que surgiu como novidade, como informação original, apresentada de um jeito diferente do que se fazia. Funcionou. Funcionou tanto que passou a ser utilizado por outras pessoas. Depois, por muita gente, o tempo inteiro. Deixou de ser novidade e virou mera repetição. Deixou de ser informação nova e passou a ser a muleta da preguiça e da desatenção. Virou clichê.

Essa é uma visão defensável. Mas será o clichê um pecado mortal, uma doença grave? Nem tanto. Ele tem sua função. Isaac Asimov, por exemplo, num artigo discutindo a sério assuntos altamente abstratos, nos quais o leitor comum pode se perder, sabia usar clichês de vez em quando. Idem na ficção.

É bom dar ao leitor de vez em quando uma sensaçãozinha de certeza absoluta. Isso o clichê lhe dá, como uma Coca-Cola lhe dá glicose. Nossos clichês atuais de trama e de enredo foram concebidos do século 19 para o 20. Vêm desde os romances de capa-e-espada europeus até as telenovelas sul-americanas do horário nobre.

O clichê é indispensável para que o leitor não se perca? Nem sempre. Porque nem sempre o clichê é usado tendo em mente um efeito no leitor. Muitas vezes certos efeitos narrativos surgiram para facilitar o trabalho dos autores ou tirá-los de enrascadas narrativas onde eles tinham se metido sem saber onde iam acabar.

Um clichê é uma chave mestra, abre qualquer porta. Tem que ser usado sem culpa, mas é bom poder usar também sem culpa certas descontinuidades ou quebras narrativas. Se a história está com crédito junto ao público, pode ousar. Quem pagou foi o clichê.

Eis alguns deles.

O CORPO DESAPARECIDO
Uma pessoa numa novela sofre um acidente (afogamento, incêndio, desmoronamento), os bombeiros e a polícia fazem busca, o corpo nunca é encontrado. Alguma dúvida de que essa pessoa reaparecerá vivinha da silva assim que o autor precisar dela?

O SONHO INTERROMPIDO
A certa altura do filme, alguma coisa bem improvável começa a acontecer. Pode ser algo fantasticamente sobrenatural. Pode ser um acontecimento banal, mas que se for verdade vai alterar de maneira irremediável o rumo da história. No momento culminante, há um corte brusco e vemos o personagem, sobressaltado, sentando na cama de noite, estremunhado, abrindo os olhos.

O ATO CLANDESTINO
Um casal que não pode se beijar se beija. A câmera corrige, o foco corrige, e vemos que havia alguém espreitando os dois pela fresta de uma porta, ou por trás de uma cortina, ou através de uma vidraça. Quem está espreitando é a última pessoa que o casal gostaria que visse aquilo: uma pessoa diretamente prejudicada, ou uma denunciadora interesseira.

Usa-se em geral para economizar tempo. Se num desses melodramas ingleses vitorianos a baronesa casada vive aos beijos com o mordomo pelos corredores do castelo, podem-se passar meses até que alguém descubra. Num filme, tem que ser logo. Narrativa geralmente é uma compressão do tempo.

Em geral mostra-se uma “escapada por um triz”, algo que deixe desconfianças e testas franzidas, e na vez seguinte, bingo!  No melhor momento do amasso os dois são vistos pela governanta fofoqueira ou pela despeitada Condessa de Eastminster.

A CONVERSA ENTREOUVIDA
Uma variante clássica do Ato Clandestino, um Deus-Vindamáquina predileto do romance policial. No momento crucial, surgem as portas entreabertas, a pessoa que ao rodear a casa passa por baixo de uma janela e entreouve o que se diz naquele quarto, ou alguém que ergue distraidamente a extensão telefônica e se arrepende pelo resto da vida, ou está sentada no reservado no restaurante e reconhece vozes no compartimento contíguo.

Alguém está sempre escutando. O Acaso diegético (que faz parte da realidade do filme) é sempre um Determinismo dramatúrgico. É preciso fazer com que “os acontecimentos se precipitem” logo. Além do mais, a maioria das polícias do mundo depende mais disso do que de algum raciocínio sherlockiano digno do Cavaleiro Dupin ou de Poirot.

O INQUILINO DEVEDOR
Dificilmente veremos uma história em que o personagem esteja em dificuldades financeiras, morando numa pensão ou prédio de apartamentos, sem nos depararmos mais uma vez com a cena em que ele tenta sair para a rua mas é forçado a se esconder do síndico, ou da concierge, ou do porteiro, ou de qualquer outra pessoa com autoridade suficiente para cobrar-lhe os atrasados.

A FALA PRECIPITADA
Filme. Um personagem entra num ambiente, acompanhado pela câmera, que mostra ele, não o ambiente. Crendo que quem o espera ali é a pessoa “A”, começa a dirigir-se a ela em voz alta, antes mesmo de vê-la. Claro que quem está ali não é A, e sim B ou C, a última pessoa a quem ele poderia dizer aquilo.

Uma variante desta é “A Fala de Costas”. Dois personagens estão conversando. Um deles dá as costas ao outro e se distrai fazendo algo, enquanto continua falando com o interlocutor. A câmara permanece nele. Quando ele se vira, vê que o interlocutor sumiu, ou foi substituído por uma Presença Ameaçadora.

A APROXIMAÇÃO NA TREVA
Um grupo de personagens está num recinto quando de repente alguém entra, seja de maneira inesperada, seja depois de uma cultivada expectativa. A iluminação está de tal modo que o recém-chegado está totalmente na sombra, e ao se adiantar para a zona iluminada do aposento a luz alcança primeiro suas pernas, a cintura, o tronco, e finalmente o rosto – revelando quem é.

A FALA PELAS COSTAS
Um personagem sozinho num aposento, esperando alguém.  É um visitante aguardando os donos da casa. Ele se interessa por um quadro na parede, por exemplo. Aproxima-se, fica olhando, tem algum tipo de reação (quando é num livro, temos acesso ao que pensa sobre o quadro). De repente, ouve às suas costas um comentário sobre o quadro, feito pelo anfitrião que acabou de chegar sem que ele visse. Vira-se, e os dois se defrontam.


*  *  *


O que são essas coisas? Chamei de clichês mas talvez devesse chamar de tropos, ou de figuras da retórica narrativa. São como efeitos pré-gravados na música, ou “stock photos”, coisas já prontas, que se usa como ilustração.

E são um idioma comum a duas ou três gerações de realizadores e quatro ou cinco gerações superpostas de espectadores, que constituem a platéia de cinema, em qualquer lugar do mundo.

Estou falando meio injustamente em termos de câmera, dá a impressão de que a literatura é só criativa e o cinema só derivativo. Quem criou grande parte desses efeitos, na verdade, foram gerações sucessivas de narradores com relativamente pouco intercâmbio ou influência direta entre si: os folhetinistas das capitais européias no século 19, os autores dos incontáveis gêneros de pulp fiction nos EUA no século 20, os telenovelistas latino-americanos e principalmente os brasileiros. E os autores dos romances chamados de best-sellers.

O que os best-sellers (com as exceções de praxe) têm em comum? Pode-se dizer que é o uso proposto e cumprido de usar algo que o leitor já conhece e já pede.  Seja o clichê displicente, seja a reviravolta final longamente esperada, como no romance de detetive.

O autor best-seller pode ser descrito como “reader friendly”, ou amigão do leitor. Ele diz ao leitor: “Ei, estou aqui falando o mesmo idioma que você fala.” Pode até estar trazendo uma mensagem originalíssima (se é que isso existe) junto com o resto, quem sabe? Mas o principal é o fato de ele dizer, e o leitor confiar, que a expectativa será satisfeita.

O clichê fica interessante quando é tirado dos produtos de rotina e cai na mão dos desconstruidores. No tempo dos surrealistas, muita gente repaginou o clichê, como Max Ernst em Une Semaine de Bonté e outros, ou Buñuel em seus melodramas eróticos.

O clichê só mostra suas verdadeiras possibilidades quando em vez de encontrá-lo nos sitcoms da TV, que alguns consideram o último elo da cadeia alimentar da Narrativa, o encontramos no quarteirão vizinho: em André Breton, em Raymond Queneau, em contextos fraturados ou absurdistas. Nos surrealistas, nos caligarescos, nos artistas underground ou marginais das metrópoles latinas.

O clichê é uma promessa, ao leitor, de tranquila certeza. Usado por artistas mais irrequietos, pode ser uma armadilha com reações imprevisíveis.