O circuito
« Estação Net » (em Botafogo, no Rio de Janeiro) está exibindo até o
próximo dia 17 de setembro uma retrospectiva da obra de François Truffaut, num
total de 23 filmes de longa e curta metragem. Estou aproveitando para ver e
rever alguns deles.
Um antigo clichê do filme de faroeste é o confronto
armado em pleno salloon, com mocinhos
e bandidos sacando as armas, as coristas fugindo numa revoada de saias e de
rendas... e o pianista se agachando por trás do piano.
Quem não lembra do cinéfilo Belchior cantando:
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
sem dinheiro no banco...
Por favor, não saque a arma no “salloon”:
eu sou apenas o cantor...
A canção é de 1976, época de ditadura e de guerrilha, e
esse verso era lido por muita gente como: “Eu não faço da parte da luta armada,
me deixem em paz, estou só cantando canções de rádio”.
O segundo filme de François Truffaut, Tirez sur le pianiste (1960) é a
história de um músico mais perdido do que pianista em tiroteio. Charles
Aznavour faz “Charlie”, pianista de um daqueles enfumaçados bares parisienses.
Ele mora com um irmão adolescente, Fido, e tem dois outros irmãos metidos com
assaltos e roubos. O filme começa quando os conflitos deles com alguns mafiosos
vazam para dentro da vida de Charlie, que é introvertido, suave, quer apenas
viver em paz.
Uma boa parte do cinema de Truffaut (e de seus colegas da
Nouvelle Vague) transcorre na zona cinzenta entre a lei e o crime. Fossem
filmes feitos aqui, alguém invocaria sem demora o “jeitinho brasileiro” para
justificar as acrobacias morais dos personagens que praticam o delito, a
bravata armada, a contravenção, a esperteza, a coerção ameaçadora, o pequeno
furto, o pequeno assédio.
Atirem no Pianista
parece existir no mesmo universo de filmes como Bande À Part (1964, Jean-Luc Godard): a mesma narrativa propositalmente
desconjuntada (para o horror dos autores de “Manual do Roteiro”), os mesmos
protagonistas amorais, disponíveis, um tanto simpáticos, não tão inteligentes
quanto pensam ser. São os mesmos crimes desnecessários, planejados como uma
fantasia de adolescente, executados sem crueldade, e até com certa excitação
lúdica. E acabam resultando em mortes reais.
São uma versão light,
uma versão pop do absurdo sombrio de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus,
outro admirador dos romances policiais noir
norte-americanos.
Os intelectuais franceses tinham uma fascinação pelo
gênero policial noir, fosse nos
filmes B em preto-e-branco ou nos romances de bolso. Boris Vian chegou a virar
“Vernon Sullivan” para escrever Vou
Cuspir No Seu Túmulo (1946), uma espécie de fanfic sob pseudônimo.
Era um verdadeiro parque-de-diversões, para os cultores
do existencialismo e do absurdo, essa literatura de personagens meio
sonâmbulos, morando em cortiços e pardieiros, bebendo, usando drogas, fazendo
sexo sem vontade, cultivando paixões incoerentes. Homens e mulheres sem
ideologia, sem leitura, que não conseguem se ajustar nem se rebelar. O crime,
quando finalmente acontece, não justifica nada, e basta-se a si mesmo.
Nos filmes de Truffaut, esses jovens se rebelam contra os mesmos moedores-de-carne: o Estado, a Burguesia, a Igreja, a Polícia, a
Família, a Escola. O crime e a arte serviam como dois túneis de escape dessa
prisão. Godard dizia que seus personagens eram “filhos de Marx e da Coca-Cola”,
e pode-se dizer também que eram netos de André Breton e primos de Bonnie e
Clyde.
Atirem no Pianista
é livremente adaptado de um romance de David Goodis (1917-1967), um autor
bastante conhecido no Brasil. Seus livros sombrios, doloridamente humanos,
cheios de mulheres fatais e homens explosivos, foram publicados nos anos
1950-60 pelas Edições de Ouro: Paixão
Criminosa, Viúva de Um Vivo, O Ladrão, Crepúsculo Violento, etc.
Meus preferidos são Fogo
na Carne I1957) e A Mulher de Cassidy
(1951).
Goodis teve muitos livros adaptados para o cinema. Além
do Atirem no Pianista de Truffaut, há
dois filmes bem conhecidos: em Dark
Passage (Delmer Daves, 1947), Humphrey Bogart é um fugitivo da cadeia que,
ajudado por Lauren Bacall, faz uma cirurgia plástica para não ser reconhecido,
e tenta provar sua inocência do crime que lhe atribuem; e A Lua na Sarjeta (Jean-Jacques Beneix, 1983), com Gérard Depardieu
e Nastassia Kinski, foi um projeto ambicioso mutilado pelos produtores.
Personagens de filmes assim vivem o tempo todo bordeando
a tragédia. Lá pelo meio de Atirem No
Pianista, um flash-back nos informa que Charlie era um pianista clássico,
de concerto, mas ficou seriamente abalado pelo suicídio da esposa, e acabou se
afastando das salas de concerto.
Uma garçonete do bar onde ganha a vida, Lena (Marie
Dubois), decide recuperá-lo. Lena é uma daquelas personagens que podem ser
chamadas “A Mulher Vital” – o oposto da “Mulher Fatal” que só provoca paixões e
desgraças.
As mulheres vitais são essas mulheres metade resolutas, metade ingênuas,
que arranjam os namorados mais improváveis e dizem a todo mundo: “Ele é um cara
bacana, tudo que ele precisa é uma mulher que organize a vida dele.”
(Marie Dubois e Charles Aznavour)
Não sei se é o machismo residual na alma de quem escreve, ou se
é a fatalidade estatística, mas mulheres assim, nos filmes, estão condenadas a
uma morte trágica nos últimos dez minutos.
E Charlie volta, no fim do filme, para onde? Para o
piano, para o teclado, talvez o único lugar
onde ele tem alguma noção do que está fazendo e algum controle sobre o resultado.
Como dizia o cinéfilo Bob Dylan, no poema “11 Outlined
Epitaphs” (1964):
(...)
existe um filme chamado
Atirem no Pianista
em que a última frase diz
“música, cara, isso é tudo que conta”
é uma frase religiosa
lá fora, soam os carrilhões
e eles ainda
estão soando.
(trad. BT)
Ou, mais uma vez, como avisava o nosso Belchior:
Mas se depois de cantar
você ainda quiser me atirar
mate-me logo à tarde, às três
que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
por causa de vocês...
Atirem no pianista – mas errem, porque o show não pode
parar.
(David Goodis ao
piano)