quinta-feira, 1 de novembro de 2018

4400) Ted Chiang e o capitalismo (1.11.2018)



Tenho uma birra com o Capitalismo, assim como certas pessoas têm birra com o inverno ou com o verão. Ou seja: como não posso fazer nada para mudá-lo, fico falando mal, pra liberar pressão.

Faço muitas críticas a esse sistema, mas me criei dentro dele e consigo viver assim, numa boa. Sou um subproduto dele. Mesmo sabendo que o Capitalismo, pelo menos em suas pulsações mais ousadas dos tempos mais recentes, está destruindo o mundo.

O capitalismo de livre mercado tem o lado bom da gente poder trocar de trabalho quando convém, poder fazer dois ou três trabalhos ao mesmo tempo, coisas totalmente diversas, ter sempre meia dúzia de alternativas de projetos ou de encomendas, discutir pagamento na base do cada-caso-é-um-caso.

Prefiro ganhar a vida assim, como faço há décadas, do que viver numa burocracia estatal. Passar quarenta anos na fila ascendente de promoção funcional dos assistentes-secretários de Medicina de Enredo na Secretaria de Dramaturgia do Ministério das Mensagens da República Popular da Ruritânia. Um regime político onde não há espaço para freelancers não me interessa.

Por falar em distopias e ficção científica, Ted Chiang é um dos contistas mais inventivos e rigorosos de sua geração, conhecido principalmente pelos contos reunidos no volume História da sua vida e outros contos (Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros).

O conto-título foi filmado como A Chegada (Arrival, 2016) por Denis Villeneuve. Outros contos ganharam numerosos prêmios literários, entre eles o Hugo, o Nebula, o Locus e o Theodore Sturgeon Award.

Num pequeno ensaio encomendado pelo saite Buzzfeed, em dezembro de 2017, Ted Chiang comentou um debate abordado pelo mega-empresário Elon Musk, ao afirmar diante da National Governors Association que a inteligência artificial é um risco fundamental para a espécie humana.

Musk ilustrou isto com o exemplo de uma Inteligência Artificial que recebe instruções para colher morangos.

– Parece inofensivo, mas quando a I. A. começar a redesenhar a si mesma para se tornar mais eficiente, talvez ela conclua que a melhor maneira de cumprir totalmente sua missão seria destruir a civilização e converter toda a superfície da Terra em campos de morango.

Musk parece não se dar conta do caráter ominoso e eldritchiano que subitamente impregna a inocente canção dos Beatles, “Strawberry Fields Forever”. Mas decerto não era isso que Elon Musk tinha em mente. O que ele sugere é apenas que essa I. A., tentando executar uma tarefa aparentemente inócua, optou pela extinção da humanidade puramente como um efeito colateral não previsto.

Chiang escreve FC, mas na hora de interpretar o apocalipse espreitado ele não vem com reptilianos ou mutantes. A Inteligência Artificial (pensa ele) não será um robô mecânico meramente desregulado: será um composto de inteligência humanas, turbinadas por informática, tomando decisões que são inalcançáveis pela mente individual de cada um de nós. Chiang pergunta:

– Quem é que persegue os seus objetivos com um foco quase monomaníaco, cego às possíveis consequências? Quem é que adota uma abordagem de terra arrasada quando se trata de expandir sua fatia do mercado? Essa Inteligência hipotética que planta morangos faz apenas o que toda empresa startup no ramo da tecnologia gostaria de fazer: crescer a uma taxa exponencial e destruir todos os seus competidores até atingir o monopólio absoluto.

Como escritor e bom visualizador de futuros insólitos, Chiang vê um certo modelamento de modos locais de pensar durante a construção de todas as etapas que estão conduzindo à inteligência artificial.

– Quando o Vale de Silício tenta imaginar a superinteligência, o que acaba resultando disso é um capitalismo sem rédeas nem limites.

Chiang argumenta que uma característica essencial da inteligência deveria ser a metacognição, a capacidade de avaliar com clareza seu próprio comportamento. O ser humano é assim, muitos animais não o são. E esse tipo de insight, de auto-vislumbre, seria um bom teste ao qual submeter as superinteligências que estão por vir.

Chiang sabe que as guerras do futuro podem até ser atômicas, mas com certeza absoluta serão semióticas. Há uma guerra de sinais, de linguagens, de códigos.

– Já vivemos cercados por um tipo de máquina que demonstra uma ausência completa de insight: nós as chamamos de corporações. Corporações não são coisas autônomas, é claro, e os humanos que as põem em ação são presumivelmente capazes desse insight. Mas o uso dele não é recompensado pelo capitalismo. Pelo contrário: o capitalismo esforça-se para erodir nas pessoas essa capacidade, exigindo que elas substituam seu julgamento pessoal do que é “bom” por “o que quer que o mercado decida”.

Perguntaram a Chiang se não seríamos capazes de orientar essas Inteligências Artificiais a trabalhar em benefício do ser humano, obrigando seus parâmetros a servirem aos nossos. Ele ripostou: Como poderemos fazer isso, se o mais fácil não fizemos, que teria sido ensinar um senso de ética às corporações, garantir que o Facebook e a Amazon estivessem de fato voltados para o bem do público?

A Inteligência Artificial surgirá não como produto militar, mas como subproduto corporativo. Vai gerar a guerra sem quartel das corporações, no mercado financeiro, no do petróleo, no das armas, onde quer que haja um terreno a ser conquistado e um mercado a ser imposto.

Bilionários como Bill Gates e Elon Musk presumem que uma Inteligência Artificial super eficiente não se deteria diante de nada para alcançar seus objetivos, porque foi justamente essa a atitude que eles próprios assumiram.  

Diz ele: “claro que eles não viam nada de errado com essa estratégia, quando eram eles que a estavam pondo em prática; foi somente a possibilidade de alguém ser ainda mais capaz do que eles que começou a lhes causar preocupação.”

Antes que alguém comece a achar que os dois bilionários são comunistas, ou que Chiang o é, seria útil consultar uma porção de documentários contemporâneos que têm essa mesma posição cética diante da largueza ética de nossas corporações. The Corporation, onde as corporações são comparadas a sociopatas capazes de qualquer coisa para não terem sua vontade negada. Ou Salvando o Capitalismo (Netflix), onde um ex-conselheiro de Bill Clinton e Barack Obama sai pelo país conversando com eleitores ou partidários de Trump.

Todos concordam que as leis que regulam o capital nos EUA e no mundo estão gerando uma distorção absurda, insustentável. Não se trata de evitar que o Comunismo arrombe a janela e entre, e sim de evitar que o dono da casa a bote abaixo em busca de um tesouro que não existe.

A riqueza virtual de trilhões de dólares, pela qual as corporações ficam se batendo, parece com a fortuna imaginária de um doido de Guimarães Rosa, o “Coletor”, que faz uma aparição fugaz no conto “O Recado do Morro”. É um maluco inofensivo que costuma sair de cidade afora, riscando números em folhas de papel, no chão, nas árvores, por toda parte.  Gosta em particular do enorme muro branco da igreja, por ter muito mais espaço onde escrever:


“Ia alinhando números tão desacabados de compridos, que pessoa nenhuma não era capaz de tabuar: seus ouros, suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua cavalaria de ótimas eguadas, seus contos-de-réis em numerário, cada lançamento daqueles era feito uma correição de formiguinhas pretas enfileiradas.  Aquele homem tinha uma felicidade enorme.”