No ano passado, moradores de uma rua no bairro de
Afogados, no Recife, botaram no meio de um cruzamento uma cadeira com uma
boneca bem grande sentada em cima. Para quê? Em parte por zueira, claro. E em
parte (quem sabe?) para assustar algum indivíduo mal intencionado que quisesse
circular por aquela vizinhança. Nunca se sabe.
Circula nas redes sociais há algum tempo uma postagem
feita em 2019 por Cecília do Lago, no Twitter (@ceciliadolago). O twit original
foi compartilhado mais de 2.600 vezes, então acho que posso transcrever seu
conteúdo aqui e comentá-lo, sem estar invadindo a comunicação alheia.
Diz Cecília (transcrevo o post literalmente):
Resolvi o problema de segurança da rua atrás da minha casa. É simples e
requer apenas um roteador.
Como tenho o hábito de chegar tarde em casa, e a rua atrás da minha
casa é mais ampla e teoricamente mais segura que a minha própria rua. Acabo
voltando por lá. Entretanto, ela é muito erma. Resolvi abrindo uma rede pública
do meu roteador, com limitação de banda.
A rede não tem força para segurar um streaming (afinal não sou
operadora de ninguém) mas é o suficiente para, agora, 4 meses depois da medida,
a rua tem sempre uns 5 ou 6 adolescentes na calçada, até as 1h da manhã.
A amplitude da minha internet grátis pega apenas poucos metros, então
eles praticamente ficam sentadinhos na guia em frente à minha casa e a do
vizinho, mexendo no celular, papeando, andando de skate e até tem umas crianças
jogando bola.
Tudo isto converge para aquela idéia clássica de que rua
segura é rua frequentada, rua onde a qualquer hora tem gente passando. Um amigo
meu dizia que “ladrão gosta de multidão, assaltante gosta de rua deserta”.
Os garotos do celular são segurança suficiente? Não, se
vier alguém decidido mesmo a invadir
a casa da moça. Mas um assaltante casual passa na esquina, vê o movimento e
segue adiante, confiando que mais à frente vai ter uma rua mais indefesa do que
esta.
É como aquela tranca de segurança que se prende no
volante dos automóveis. Perguntei a um amigo se era 100% segura. Ele disse:
“Não, mas o cara vai precisar de alguns minutos a mais para desarmá-la, e
provavelmente vai passar adiante e arrombar um carro sem tranca”. Por mim, faz
sentido.
Adolescentes de skate não trazem segurança, trazem uma
impressão de segurança. Algo que contribui, em certa medida, para a segurança.
A sociologia cita muito a teoria das “vidraças
quebradas”: numa vizinhança cheia de prédios ou casas com vidraças quebradas, a
criminalidade é maior, porque a aparência do bairro dá a entender que ali vale
tudo. Terra sem lei.
Uma impressão de normalidade é necessária, e não é apenas
maquiagem, hipocrisia, disfarce, embora muitas prefeituras e administrações
públicas tentem impor essas coisas quando lhes convém (arrancar mendigos das
ruas na véspera de um grande evento, etc.).
É uma forma benigna de controle psicológico. “Te comporta. O pessoal daqui é exigente.”
As sociedades humanas apostam na normalidade, desejam a
existência de zonas de conforto. E quem pode dizer que estão erradas? Como
diria qualquer líder político, existe a hora do conflito, e existe a hora do
conforto.
No romance The
Postman (1985), de David Brin, a civilização foi arrasada por uma guerra
biológica, e regride a uma semi-selvageria. Um cara, ao vaguear de aldeia em
aldeia, acha por acaso (e veste) um antigo uniforme de carteiro. Daí em diante,
quando é avistado, as pessoas pensam que o mundo está se reorganizando, porque “os
carteiros voltaram a entregar correspondência”. Não é o caso; mas esse sopro de
otimismo ajuda a desencadear uma pequena maré civilizatória.
O livro foi filmado em 1997 com Kevin Costner na direção
e no papel do “Carteiro”. Fábio
Fernandes traduziu para a Isaac Asimov
Magazine (# 21 e 23), Ed. Record, duas noveletas (“O Carteiro” e “Cyclops”)
que fazem parte do livro original.
Claro que existem outras formas de proteção. Ryszard
Kapucinski, em seu livro Ébano – Minha
Vida na África (1998; Companhia das Letras, 2002, trad. Tomasz Barcinski),
fala, a certa altura, do tempo em que viveu em Lagos, na Nigéria. O jornalista
polonês desdenha os colegas que vão à África, hospedam-se nos bons hotéis da
capital, comem nos bons restaurantes e depois voltam para à Europa e fazem
“relatos autênticos, de quem esteve lá”.
Ele foi morar numa cabeça-de-porco num beco, no meio de
uma vizinhança paupérrima. Fala sobre o calor assassino, a falta de luz
elétrica, a falta de água, os mosquitos. Há um homem que só possui de seu uma
camisa. Outro possui um facão, e nada mais. Uma mulher possui apenas uma
panela.
Kapucinski narra seu desespero ao perceber que toda vez
que saía do seu quartinho alguém entrava ali e roubava alguma coisa. Acaba
fazendo amizade com Suleiman, um muçulmano local, e explica seu problema.
Contei-lhe que era roubado com frequência. Suleiman achou muito
natural. O roubo – embora desagradável – era uma forma de nivelar as
desigualdades.É bom ser roubado, afirmou; chega a ser um sinal de boa vontade
da parte dos moradores do beco. Eles demonstram dessa forma que lhes sou útil e
que por isso sou aceito por eles. Posso me sentir seguro. Fui ameaçado alguma
vez? Tive que confessar que não. Então! Estarei em segurança enquanto permitir
ser roubado. Se eu chamar a polícia e começar a persegui-los, então será melhor
mudar-me daqui. (p. 132)
Mas Suleiman entende o problema do polonês em terra
estranha, e o convida para dar um passeio pela feira local. Examinam vários
produtos nas barracas. A conselho dele, Kapucinski compra algumas penas de galo
branco.
Eram bastante caras, mas não fiz objeção. Voltamos ao beco. Suleiman
arrumou as penas, amarrou-as com um fio e as pendurou na parte superior do
umbral da porta.
Daí em diante, nada mais sumiu do meu apartamento.
Era um ritual de feitiçaria? Uma simpatia? Um código de
gang? Tanto faz. É outra cultura, são outros costumes. É como se isso
acontecesse numa cabeça-de-porco do bairro do São José e Suleiman colocasse ali
uma flâmula do Treze. “Não bulam. Esse rapaz
é gente nossa.”