Nem fui dos que conviveram muito com ele, e não devo ter
muitos episódios pessoais para contar. Eram encontros na rua, no bar, na festa,
em camarim de show. Quem conviveu com ele foi o Rio, a cidade que ele percorria
como uma lançadeira, sem parar, impedindo que as águas estagnassem.
Principalmente a Zona Sul, é claro, porque foi ali que o conheci, provavelmente
nas mesas da Pizzaria Guanabara ou nos agitos do CEP 20.000, que ele ajudou a
fundar.
Fizemos parte dessa misteriosa entidade chamada de Poesia Marginal. Num tempo em que todo mundo se batia para ser publicado pelas grandes casas editoras, houve centenas de poetas jovens que deram de ombros, e começaram a publicar seus versos de forma precária, mas por conta própria. Mimeógrafo, offset, xerox, cordel.
Quando cheguei aqui no Rio, percebi que para o carioca em
geral, inclusive a imprensa, “marginal” era sinônimo de assassino, ladrão,
bandido, estuprador. O rótulo “Poeta Marginal” vinha tingido disso tudo.
Surpresa para mim, que visualizava o mercado editorial
como um rio poderoso, carregando em seu “mainstream” os empaletozados poetas
oficiais, enquanto nós caminhávamos no mesmo rumo – mas na margem.
Íamos a pé pela margem, porque naquele tempo (Drummond
já se queixava) “era livre a navegação, mas proibido fazer barcos”.
Tavinho tinha um barco – o barquinho de papel que salva todos os poetas – e tinha um vento próprio que lhe enfunava as velas: o vento da fala, da recitação, do riso, da conversa, o sopro de vida que muitas vezes nem lembramos quando lemos o livro de alguém, mas está sempre presente quando alguém sobe num palco (numa cadeira, num caixote, num degrau) e manda ver.
Seu formato preferencial era o livreto, de que a bolsa
estava sempre cheia.
“Toma, toma esse aqui, é o mais novo, esse aqui também é
bom, leva dois, esse aqui eu lembro que você já tem, mas leva mais um e passa
adiante.” “Tavinho, eu estou sem
bolsa.” “Bota no bolso da calça. Você
anda de metrô, que eu sei. Lê no metrô. Se gostar de alguma coisa, fica em pé e
recita, grita, porra, acorda aquele pessoal.”
Onde estão os livretos, agora que preciso deles?! Desaparecem
no meio das estantes, nas gavetas, por entre as revistas, enfiados em algum
livro grande. Livro pequeno é um problema. Os dele eram menores do que um
folheto de cordel.
“Isso aqui é um mini-cordel.” “Chama do que você quiser, mas espalha, passa
adiante.” “Você vende por quanto cada um?”
“Depende, não é essa a questão, vender é projeto, vender acontece, mas o
importante é circular.”
Vivia (penso eu) mergulhado naquela filosofia do “bendito
quem semeia livros, livros à mão cheia...”
E os recitais, que ele encarava com uma displicente segurança,
mandando-ver com o destemor dos que têm na palavra falada o seu aviãozinho de
papel. Aquela bossa de quem se sente à-vontade no fio da navalha do palco
iluminado, e com aquele sotaque de malandro-erudito.
Falei que ele circulava pela Zona Sul carioca? Não tem problema, circulou por Campina Grande
também, recitou nos meus bares, nos meus teatros, como quem se sente em casa. “Ô
paraíba, tu tem música gravada por teu conterrâneo Genival Lacerda?...” “Ih, rapaz... tenho não. Quem me dera.” “Pois eu tenho.”
Será que tinha mesmo? Não importa: ele tem música gravada
pelo Trio Nordestino (“Parada Boa”) e eu não.
É curioso, e triste, que em poucos dias a poesia carioca
tenha perdido Antonio Cícero e Tavinho, dois poetas tão próximos e tão
diferentes.
Cícero era o filósofo, tímido em público, mas fluente e
cristalino na escrita. O verso pensado, polido, engastado, mas na hora da
leitura dando aquela impressão de que corre fácil como água da torneira.
Tavinho era um camelô-de-si-mesmo, sempre com um livreto novo
na ponta do braço e um trocadilho mordaz na ponta da língua. Criando e
produzindo o tempo todo, dando a impressão de ser um barril transbordando,
do qual a gente só percebia o que sobrava. E o que se derramava dava aquele
barato que a gente só sente diante da frase brilhante, da frase salto-mortal.
“Camelô” não é ofensa, e eu me chamo assim com frequência. O camelô descobre um belo dia que se não descer à calçada e apregoar sua água-de-coco as pessoas vão morrer de sede por não saberem que ela existe.
Somos camelôs das redes sociais. Volta e meia estamos
aqui compartilhando poemas, textos publicados, capas de livro, fotos de palestra,
fonogramas gravados pelos amigos. Com esses tijolinhos (todos diferentes uns
dos outros) estamos criando um edifício que não será nenhum Taj-Mahal – será
algo que não existia antes e cujo formato final não chegaremos a ver.
É a poesia que não se destina aos livros, mas à vida, ao momento, às pessoas de carne e osso. Algma coisa, claro, vai ter que resultar em livro, porque livro é uma coisa tão boa de se ter na mão, de se ter à vista, de entregar a alguém, de receber. O livro recolhe aquela parte que não se evaporou no fim de tantas conversas, tantos chopes, tantos cafés, tanto recitais, tantos bares enfumaçados. A poesia roda, roda, roda e acaba num livro, assim como a noite roda, roda, roda, e acaba no dia.
A CIDADE DOS 1000 POETAS
Tavinho Paes
Eu nasci num subúrbio da maravilhosa
Cidade dos 1000 Poetas.
Nasci na noite do Iguana,
numa maternidade
ao sopé do Morro dos Ventos Uivantes
de cujo cume
o beato Sebastião via a ilha
que o cangaceiro Satanás cria ser real.
Minha mãe, naquela noite de luzes,
foi tão natural quanto a de Máximo Gorki.
Meu pai,
cercado de famas e cronópios,
permaneceu acordado noite adentro,
fumando charutos da mesma marca
dos prediletos de Gabo
comprados naquela Tabacaria
que Pessoa via de sua janela.
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