quinta-feira, 25 de agosto de 2016

4150) Geneton (25.8.2016)



Um mês  atrás compartilhei no Facebook um pedido de doação de sangue para o jornalista Geneton Moraes Neto, que estava hospitalizado. Acendi a luz amarela de alerta, mas não houve novidade nos dias seguintes e acabei esquecendo. Não tínhamos contato direto (mais por culpa minha, que hoje sou um anacoreta com direito a redes sociais). Eu o via por acaso – fosse num corredor da Globo (nas vezes em que trabalhei lá), num lançamento de livro, ou algo assim. Nosso último papo tinha sido antes da sessão de lançamento do filme Brincante de Walter Carvalho e Antonio Nóbrega, aqui no Rio.

Geneton, como tantos de nós, era um Mágico de Oz comandado de dentro por um cineclubista. No caso dele, um cara moreno, barbudo e enfezado, que fazia uns filmes despirocantes no Recife, no meio de uma turma que incluía Jomard Muniz de Britto, Paulo Cunha, Amin Stepple – este último de Campina Grande, amigo meu de geração, que me apresentou aos demais. Quando Amin e Geneton surgiam caminhando lado a lado na calçada me lembravam Dom Quixote e Sancho Pança, um longilíneo e encurvado, o outro atarracado e hirsuto.

O superoitista virou jornalista. Acompanhei muitas das grandes entrevistas que ele fez para a TV Globo, e ver Geneton entrevistar era um pouco como ver alguém montar num boi brabo. Ao vê-lo formular certas perguntas a um ex-presidente ou a um general, minhas mãos se cobriam de suor frio. Eram perguntas que eu tinha vontade de fazer, mas morreria e não faria mesmo que por trás de mim, me bancando, estivessem não apenas a Rede Globo, mas o Pentágono, a KGB e os duzentos jagunços de Augusto Santa Cruz.

Perguntar é a arma do repórter (o que GMN foi na medula, ao fim e ao cabo; o que se orgulhava de ser), mas uma arma de alto risco, cuja bala pode inclusive inverter a direção depois de disparada. O entrevistado pode até ter um acesso apoplético (como o general Newton Cruz esteve a ponto de ter diante das câmeras) e não responder. Mas a pergunta pressupõe que existe uma resposta, que existe a questão; que existe, na multidão silenciosa que o repórter representa, a necessidade de ficar sabendo.

E não me refiro às perguntas sensacionalistas dos escândalos miúdos, das pegadinhas onde são feitas perguntas infantilóides, canalhamente indiscretas, perguntas que não passam de fofocas ou maledicências encomendadas.

São perguntas como (me deem licença para um exemplo provinciano) o jornalista Chico Maria fazia no seu programa “Confidencial” da TV Borborema de Campina Grande, olhando nos olhos do ex-prefeito Plínio Lemos e perguntando: “Por que o senhor mandou matar o vereador Félix Araújo?”, ou para Luís Carlos Prestes, e dizer: “Por que o senhor apertou a mão de Getúlio Vargas, que entregou sua esposa Olga Benário aos nazistas?”. (Ver aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/06/1123-confidencial-20102006.html).

É a pergunta feita de pessoa para pessoa – o respondedor carregando consigo o peso do passado, e o perguntador trazendo o peso do presente. A pergunta (agora num exemplo em escala nacional) da escola de Joel Silveira, mestre de Geneton, repórter batedor de perna na calçada, questionador, atrabiliário, pavio curto, cuja frase era uma guilhotina.

E, curiosamente, no trato pessoal Geneton desmentia a imagem de enfezado que passava num primeiro contato, porque era meio retraído e sempre afável, discreto como um verdadeiro cineclubista, um “prestador de atenção” na expressão de Jessier Quirino. Tinha o humor escarninho do recifense, mas nunca se alterava.  Entrevistando, era incisivo sem ser hostil, mesmo quando a gente sabia que ele não gostava do entrevistado.

O lado cinéfilo era o outro prato da balança que o fazia escapar das tentações do “furo de reportagem” como valor absoluto. O amor à Arte equilibrava nele o amor à Verdade. Feliz de quem (principalmente quem tem talento e/ou poder) consegue equilibrar Arte e Verdade, essas duas coisas aparentemente próximas, e na prática incomensuravelmente distantes, e em última análise apenas duas faces de uma coisa maior que ninguém enxerga.

Dos trabalhos de Geneton nos últimos anos vi apenas seu documentário sobre o tropicalismo, Canções do Exílio (comentei aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2481-labareda-que-lambeu-tudo.html), e sua longa entrevista com Geraldo Vandré (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/10/2364-entrevista-de-vandre-4102010.html).

Pesco aqui um trecho de um longo post de Sérgio Rodrigues no Facebook, citando Geneton: “Não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado.“ Vale para a literatura, vale para tudo.