sexta-feira, 27 de agosto de 2010

2331) A conexão Zevaco – Guimarães Rosa (27.8.2010)





Uma das minha leituras preferidas na infância foi a dos folhetins de capa-e-espada de Michel Zevaco (1860-1918), famoso pelas aventuras do Cavalheiro de Pardaillan. 

Um livro de Zevaco, Nostradamus, transcorria em parte no “bas-fond” parisiense do século 14, e havia um quarteto de personagens, meio marginais, cujos nomes tinham uma sonoridade rabelaisiana. Chamavam-se Corpodibale, StrapafarBouracan e Trinquemaille. 

Eram, por assim dizer, uma turma tipo Malagueta, Perus e Bacanaço, misturada com Lino Pedra Verde e Quincas Berro Dágua.

Ao saber que Rosa tinha um livro chamado Corpo de Baile, tive a idéia estapafúrdia de que Rosa tinha lido Zevaco, e o título de seu livro era uma homenagem ao truão francês! A Serpente da Paranóia Concatenadora acendeu seus olhos esverdeados dentro de mim e começou a rastejar. 

Qual não foi minha surpresa, anos depois, quando li do começo ao fim o Grande Sertão, e os outros truões do Pátio dos Milagres de Zevaco começaram a aparecer, de um em um!

Veja-se o episódio da batalha na Fazenda dos Tucanos, entre o bando de Zé Bebelo e o dos “hermógenes”. Na página 328 da 2a. edição, Zé Bebelo, cercado e sob tiroteio, envia o Joaquim Beijú e o Quipes com bilhetes, e Riobaldo fica em dúvida se aquilo é um pedido de socorro ou uma traição. E diz: 

“Só que eu ia sempre vigiar Zé Bebelo. Ele trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver. Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar”. 

Anotei.

À pág. 399 dessa edição, no episódio das Veredas Mortas, Riobaldo, tremendo de frio sob as “absolutas estrelas”, espera o Diabo, e monologa: 

“Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo”. 

Anotei de novo.

E vem o episódio crucial em que Riobaldo encara Zé Bebelo e pergunta, diante do bando: “Quem é que é o chefe?”. Nesse confronto de machos-alfa, Zé Bebelo vacila, recua: o poder do Tatarana é maior. Zé Bebelo se despede do bando, dizendo que não sabe ser segundo nem terceiro. Pega suas coisas e vai embora. Riobaldo manda o bando se organizar e parte à frente dele, pela primeira vez investido na “potente chefia”. E registra, à pág. 414: 

“Dali a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata. Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o trinca-ferro.” 

Anotei também; com uma interrogação entre parênteses.

Estarei delirando? Rosa tinha, em sua biblioteca, uma edição francesa de “Les Pardaillans” de Zevaco (cf. Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos). Costumava escrever aos jorros, sem freios, de modo quase mediúnico, e muito do seu estilo repousa no palavra-puxa-palavra. Não me admiraria que, sem perceber, sem intenção alguma, ele estivesse evocando em seu inconsciente verbal os marginais de Michel Zevaco e seus sonoríssimos nomes.



Est artigo está incluído no meu livro A Nuvem de Hoje, Campina Grande, Editora da UEPB/Selo Latus, 2011.)




2330)A origem dos sonhos (26.8.2010)



O filme de Christopher Nolan “ Origem tem sido elogiado e criticado pelas razões erradas. Elogiam-no pelos efeitos especiais, o que é o mesmo que elogiar uma mulher pela maquilagem. Elogiam pelas cenas de ação, que provavelmente nem foi Nolan que dirigiu – os estúdios têm diretores de segunda unidade: Diretor de Perseguição de Automóveis, Diretor de Perseguição A Pé Por um Mercado Oriental, etc. Profissionais que todo mês dirigem a mesma cena, com equipe diferente, para um filme diferente – e só quem percebe isso sou eu? Elogiam, finalmente, o modo como o filme transporta para a tela o mundo dos sonhos. E isso é algo que ele só consegue em pequenos trechos (embora, nesses momentos, o faça com brilhantismo).

O grande momento do filme é quando Leonardo DiCaprio e Ellen Page estão sentados na calçada de um café parisiense e de repente os prédios em volta começam a explodir; ela se assusta, e ele diz: “Calma. Estamos sonhando.” Quando Ellen assimila o fato de que aquilo é um sonho controlado, e começa a dobrar a cidade de Paris sobre si própria, estamos diante de um grande momento do cinema contemporâneo, digno da fantasia gráfica do Little Nemo de Winsor McKay ou de uma gravura de M. C. Escher. Estamos num mundo visual-narrativo que se comporta de acordo com as leis do mundo onírico. Não porque apareçam elefantes cor-de-rosa, mas porque ali a mente pode provocar mudanças instantâneas, absurdas, rompendo regras de tempo e de espaço. Isso é uma das primeiras coisas em que o mundo dos sonhos é diferente deste.

O filme de Nolan tem uma idéia audaciosa e uma narrativa controladíssima. Ele passa do plano real para três planos sucessivos de sonhos, e eu, que geralmente me perco em coisas assim, me mantive o tempo inteiro consciente do que estava se passando nos demais níveis. O problema é que esse excesso de controle faz com que o filme acabe sendo menos onírico, porque sonho é descontrole, é não sabermos onde estamos nem quem sou nem quando é. Neste aspecto, os cineastas que produziram filme de sintaxe onírica contam-se nos dedos: Luís Buñuel, Raul Ruiz, David Lynch, Peter Greenaway, Jeunet & Caro, alguns momentos dos irmãos Coen, de David Cronenberg, de Fellini, de Alain Resnais, e certamente de mais uma dúzia que desconheço.

Falei em Escher; assim como nas gravuras de Escher somos forçados a aceitar duas realidades visuais contraditórias, em A Origem somos forçados a aceitar duas realidades narrativas contraditórias, a narrativa do sonho, que é randômica e fraturada, e a narrativa do filme de Hollywood, que é articulada, cheia de conexões de causa e efeito, e converge toda para um desfecho plausível. Ora, Hollywood, que já foi chamada “a usina de sonhos”, produz tudo, menos sonhos. Produz fantasias, que são criações conscientes, inspiradas por um desejo. Um sonho é diferente. É um dilaceramento caótico de desejos e repulsas, e seus cacos são imagens que não têm a menor intenção de fazer sentido.