Ser urbanóide é preferir morar perto de um supermercado
do que de um pomar de árvores frutíferas.
Ser urbanóide é saber olhar para o trânsito, num viaduto
ao longe, como algumas pessoas olham para um regato murmurejante.
Ser urbanóide é ir passando a pé por uma rua bem
conhecida e de repente virar a esquina e entrar numa ruazinha transversal, só
para ver o que tem ali.
Ser urbanóide é ser capaz de parar na porta de um bar,
olhar para dentro, e dois segundos depois pensar: “Aqui não”, e seguir em
frente.
Ser urbanóide é ver poesia em nomes de lojas, de salões
de manicure, de borracharias, de oficinas, de botequins pé-sujo, de malharias.
Ser urbanóide é atravessar uma rua larga de olho no carro
que se aproxima, e à distância negociar direções e velocidades com o motorista.
Ser urbanóide é olhar cada janela de edifício acesa, e
mandar uma energia boa para os companheiros de madrugada.
Ser urbanóide é acompanhar todas as crueldades, as
explorações e as violências que se praticam na cidade, e não botar na cidade a
culpa.
Ser urbanóide é passar uma tarde numa biblioteca só para
saber quem foi Fulano de Tal que deu nome à rua em que a gente mora.
Ser urbanóide é ir à feira livre, voltar carregado de
sacolas, deixá-las em casa, e depois voltar, só pra curtir a feira.
Ser urbanóide é ter três ou quatro percursos diferentes
para ir e para voltar dos lugares habituais – para colorir a rotina.
Ser urbanóide é não se entristecer nem com o outono das
demolições nem com a primavera dos projetos imobiliários.
Ser urbanóide é perceber em si mesmo, de repente, uma
certa rivalidade com esse pessoal do bairro vizinho, quem pensam eles que são?!
Ser urbanóide é ver numa exposição a foto de uma parede e
lembrar onde fica.
Ser urbanóide é chegar numa metrópole desconhecida,
deixar as coisas no hotel, e sair andando pelas ruas com olhos de começo de
namoro.
Ser urbanóide é cochilar no metrô e acordar pontualmente na
estação onde vai descer.
Ser urbanóide é estar numa fila, num vagão de trem, numa
sala de espera, olhar todos aqueles rostos e pensar: “Nunca mais estaremos
todos juntos novamente”.
Ser urbanóide é ter um sexto sentido sempre ligado para
perceber as bicicletas que surgem na contramão ou cruzando a calçada.
Ser urbanóide é ter saudade de uma linha de ônibus que
foi desativada.
Ser urbanóide é não ter problema para dormir enquanto
trinta pessoas cantam Tim Maia a plenos pulmões no bar da esquina.
Ser urbanóide é pedir ao porteiro que receba a encomenda e
mande pelo elevador.
Ser urbanóide é ouvir um tiroteio na madrugada e prestar
atenção para ver quantos calibres estão envolvidos.
Ser urbanóide é vir pela calçada e atravessar a rua só
pra olhar os livros sobre uma lona na calçada oposta.
Ser urbanóide é voltar a uma certa rua trinta anos
depois, ver uma certa porta e ter vontade de tocar de novo a campainha.
Ser urbanóide é ter na memória uma agenda instantânea informando
eletricista, pedreiro, loja de conveniência, “vende-se gelo”, mecânico,
conserto de malas, quentinha caseira.
Ser urbanóide é chegar à faixa de pedestres com o sinal
fechado para os carros, mas esperar primeiro que abra para eles, depois que
feche de novo, e só então atravessar com segurança.
Ser urbanóide é saber que cidades e florestas morrem e
renascem o tempo todo, de um modo tão parecido e tão diferente.
Ser urbanoide é estar andando numa cidade estrangeira e
distante, pensando em mil outras coisas, e ao virar uma esquina se deparar com
uma cópia fiel de um recanto de uma cidade querida, um lugar que talvez nem
exista mais.
(ilustrações: "Bing", Inteligência Artificial)