(ilustração: Daron Mouradian)
Nosso
conceito de tempo (o que ensinamos às nossas crianças desde cedo) é dependente
da geometria. Precisamos visualizar o tempo de alguma forma, e a maneira mais
fácil é reproduzi-lo no espaço, através de linhas e planos.
Dizemos
então (não nestes termos, claro) que o tempo é uma linha que se prolonga
indefinidamente, uma seta, um vetor (“segmento de reta orientado numa
direção”). Para trás ficou o passado; o presente é o ponto em que estamos, e
que se desloca conosco para a frente, na direção do futuro.
Santo
Agostinho tem uma definição famosa, que já comentei aqui neste blog: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/03/0158-o-que-o-tempo-2392003.html
Agora
basta-me resumir a conclusão dele: nossa mente só conhece o presente. O que
chamamos passado é a lembrança presente
de um momento que não existe mais; e o que chamamos futuro é a imaginação presente de um momento que ainda não
existiu.
Mas...
podemos dizer que o passado não existe mais? Afinal, tudo que vemos e que somos
é resultado desse passado, um resultado palpável, sólido. O trabalho que deu
origem ao prédio onde moro já deixou de acontecer, mas posso dizer que todo
trabalho se prolonga no resultado que deixa. Os dois são um só processo. O
trabalho passou; o prédio continua, isso me permite afirmar que o trabalho não
deixou de existir, apenas deixou de ser uma ação para ser um objeto material.
O
passado é algo que se prolonga materialmente no presente. Na frase famosa de
William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem sequer terminou de passar”. O
presente é apenas um conjunto de formas do passado que se prolongam.
O
passado é imutável? Sim. O que aconteceu não pode ser desfeito. É imutável, mas
só temos acesso a ele através de lembranças, registros, documentos, versões. E
essas coisas não são imutáveis. Nosso conhecimento do passado é incompleto, e
pode a qualquer momento sofrer uma reviravolta. Nossa versão do passado tem que
mudar para se ajustar aos fatos.
O
Inconfidente Mineiro que foi dado como criminoso e executado barbaramente pode
ter seus atos reavaliados e considerado herói da pátria. Outra reavaliação
talvez o descreva não como criminoso nem como herói, apenas um rapaz exaltado,
de bons sentimentos e um tanto ingênuo, que serviu de bode expiatório de um
movimento. Os fatos não mudam: mudam as histórias que contaremos aos nossos
filhos sobre eles.
O
sonho de voltar ao passado para modificá-lo está presente em milhares de
histórias de ficção científica onde alguém traça os planos mais mirabolantes
para viajar numa Máquina do Tempo e evitar uma guerra, impedir a morte de uma
pessoa amada, recuperar um objeto precioso antes que seja destruído.
O
Netflix está exibindo uma simpática série de FC, O Ministério do Tempo, que em cada episódio nos propõe uma aventura
onde é preciso evitar que alguém mude o passado.
Há
duas correntes principais na FC. Na primeira, o passado não pode e não deve
sofrer modificações, e existe uma espécie de “patrulha do tempo” voltando
constantemente para se certificar de que as coisas continuarão acontecendo da
mesma maneira; outro bom exemplo disso é O
Fim da Eternidade de Isaac Asimov (Ed. Aleph). Na segunda, o passado é
indefeso, e extremamente frágil. As bifurcações do tempo se multiplicam, não há
ninguém tomando conta, e a morte de uma simples borboleta pode alterar tudo nos
séculos futuros, como no conto clássico “Um Som de Trovão” de Ray Bradbury.
É
interessante que tanto a série da TV espanhola quanto o romance de Asimov
tratem o futuro com cuidado, como um caminho com acesso vedado. Pode-se voltar
milênios atrás, mas não se pode ir mexer no mês que vem.
Isso
me traz ao ponto inicial. Penso às vezes que o tempo não se divide em três
fases, mas em duas, a que chamo o Passado e o Passando. The Past, and the Passing. Le Passé, et le Passant.
O
Passado são todos os fatos concretos que já aconteceram na história, e a que
não temos mais acesso. O Passando é isso a que chamamos às vezes de presente e
às vezes de futuro, como se fossem duas coisas diferentes, e que não passa da
superposição daqueles estados mentais a que Santo Agostinho se referia:
lembrança presente, imaginação presente, percepção imediata de tudo que se
transforma.
Um
turbilhão de possibilidades, uma cachoeira de “pontos de mutação” que surgem e
colapsam sem parar, um estado mutável que precisamos domesticar, entender, e
por isso recorremos à confortável tríade “passado-presente-futuro”.
Essa
tríade, certinha demais, me parece uma visão de burocrata, onde o Presente é a
escrivaninha, o Passado é a caixa de Saída (processos já despachados) e o
futuro a caixa de Entrada (processos a despachar).
O
Passado tem algo de imutável porque não podemos alterá-lo, mas no Passando tudo
está sendo reavaliado e decidido (inclusive nossas versões e registros do
Passado). No Passado está tudo que é definitivo e inacessível a nós; no
Passando, misturam-se versões do passado, planos para o futuro, decisões do
presente, como num liquidificador em que todas estas coisas estão girando, num
turbilhão que nada poupa.
Em
tempos de convulsão política, vale a frase de George Orwell: “Quem controla o
Passado controla o Futuro, e quem controla o Presente controla o Passado.”
Governos autoritários tendem a incendiar (ou a matar à míngua, o que é mais
discreto) bibliotecas, museus, arquivos públicos, bem como as respectivas
categorias profissionais. É uma maneira de ir apagando o Passado para melhor se
assenhorear dele.
É
no torvelinho do presente que o passado é interpretado e o futuro se decide.
Algum filósofo disse: “Quem não conhece o seu Passado está condenado a repeti-lo.”
Algum potentado gostou da frase e disse: “Façamos com que eles desconheçam seu
passado, para que repitam a parte que nos interessa.”