sexta-feira, 29 de maio de 2020

4584) "A thing of joy... is a beauty forever" (29.5.2020)




O grande poeta John Keats afirmou uma vez, num poema imortal:

A thing of beauty is a joy for ever.

Grosseiramente traduzido (traduzir é consertar um relógio-de-pulso com mãos de lenhador), seria algo como:

1) Uma coisa bonita é uma alegria eterna.

2) Uma coisa que contém beleza é uma alegria que nunca se esgota.

3) Basta uma coisa ser bela para ficar para sempre.

4) Toda beleza é duradoura.

Observem que a primeira frase acima é uma tentativa de real de tradução da frase em inglês. As outras três são desdobramentos, paráfrases, explicações. A gente encontra com frequência, em livros traduzidos, desdobramentos desse tipo, quando o tradutor chega à conclusão de que, em vez de tentar reproduzir a forma com que o autor disse algo, é mais jogo explicar ao leitor o que o autor quis dizer.

Às vezes o tradutor faz uma tentativa meio canhestra, prega ali um asterisco, vai lá no pé da página, explica ao leitor a dificuldade da tal da forma, e mostra “o que o autor quis dizer”. Essa prática é muito desaconselhada hoje em dia, principalmente em romances e obras de ficção em geral, “porque quebra o ritmo da leitura”.

E também porque um número grande de notas-de-pé-de-página passa subconscientemente para o leitor a impressão de que é um livro difícil, com muita coisa que precisa de explicações.

Eu acho melhor a nota de pé de página, que pode ser consultada apenas com um movimento dos olhos, do que a nota final, nas últimas páginas do livro. Tem livro que eu preciso ficar marcando a página-das-notas com uma caneta, porque de minuto em minuto preciso consultá-la.

Voltando à tradução em si: toda frase traduzida traz um componente de “É (suspiro), vai ter que ficar assim mesmo”. Poderia ser melhor. Deveria ser bem melhor! Mas o prazo de entrega já passou. Vai ter que ficar assim mesmo. Suspiro.

Traduzir é repetir, tentando grosseiramente reproduzir uma coisa bela, para termos a ilusão de que prolongamos sua existência.

Em cada formulação sucessiva que essa frase bonita recebe, ela perde algo, é claro. É inevitável. Cada passagem de uma língua para outra implica num desgaste, num dispêndio de energia, aumento de entropia, perda de qualidade.

Isso é compensado pelo fato de que agora, após a tradução, há mais uma coisa bonita no mundo. Era uma frase bonita em inglês; e ei-la agora bonitando em swahili, em iídiche, em castelhano.

Algum DNA da frase original é passado adiante, e é por isso que há sempre a necessidade de novas traduções, porque cada tradução é uma foto da nuvem. A próxima será diferente (a nuvem não é a frase: é a mente do tradutor ao ler a frase).

No verso acima, nessa tradução imperfeita que fiz, há algumas intenções questionáveis.

A thing of beauty is a joy for ever.
Uma coisa bonita é uma alegria eterna.

Quado uma frase tem, além de um sentido importante (não são todas que têm isso) uma musicalidade própria (idem), é conveniente dar uma pequena colher-de-chá a ambos. Como diria Jane Austen: razão e sensibilidade.

Se eu fosse um crítico de traduções literárias (o mundo está cheio) e visse essa tradução aí em cima feita por outra pessoa, já começaria botando defeito. "E por causa".


("Endymion", manuscrito de John Keats)

Diria por exemplo, que dentro da linguagem elevada proposta pelo poema (que, por sinal, é “Endymion”, de John Keats), caberia muito mais o adjetivo “bela” (que tem conotação mais nobre, mais literária) do que “bonita” (palavra mais banalizada, mais corriqueira).

Diante da minha crítica, o tímido tradutor retrucaria:

– É verdade! Mas eu estava pensando no lado sonoro. “Bela” contém uma vogal “É” muito aberta, e seu aparecimento precoce no meio da frase diluiria o efeito de quando ela vai aparecer mais adiante, quando eu achar uma rima para a rima final, “for-É-ver”. Num caso assim, às vezes é útil preservar esse som, para que ele possa brotar com 100% de novidade na última silaba do verso. Por outro lado, para a expressão “of beauty” a palavra “bonita”, além de estar próxima do sentido, está próxima do som, que é mais ou menos “BÍU-te”, ou “bi-Ú-te”, fica por conta da inflexão que se queira dar.

Eu torceria o nariz diante do sotaque paraibano dele pronunciando seu “bíute”, bateria com desdém a cinza da minha cigarrilha egípcia, e diria:

– Ora, ora, meu caro, não me faça rir. Se você é tão preocupado com minudências sonoras, onde está o seu equivalente para “joy”, esse monossílabo de júbilo solar tão caro ao idioma de C. S. Lewis?

– De fato – concordaria o tradutor, inclinando-se nervoso para a frente, como fazem o tempo todo os personagens de Raymond Chandler. – Não me ocorreu nenhum sinônimo de alegria, felicidade, júbilo (como o sr. tão bem assinalou) onde explodisse esse “Ó”, tão visível quanto a bandeira do Japão.

– Seria o caso de ter desistido, pois não?... Digo: em respeito ao autor.

– Concordo, mas o autor está morto e o leitor está vivo, além de seu nome ser Legião, porque são muitos. O leitor, quando compra uma obra traduzida, sabe que está levando gato por lebre, ele exige apenas que o gato seja saboroso. Ele se contenta com um simulacro da obra original, porque sabe que é simulacro mesmo, e que se ele quiser de fato saber quem foi Homero não pode se queixar de Odorico Mendes.

– Não tergiverse. Responda meu questionamento sem dar a volta ao quarteirão.

– Já dei a volta e já estou no portão de novo – responderia ele, todo se animando. – Não dispondo desse “Ó”, raciocinei a crédito: deixei em suspenso e passei para a unidade semântica seguinte, “for ever”. E pensei: Que diabos, se é para manter alguma coisa sonora, é este som daqui que deve vir em primeiro lugar, é o fim do verso, é o som da rima, é o “plin” que fica no ouvido. O “ó” tem brilho próprio, não contesto, mas na unidade-verso ele está levantando para o “for ever” cortar, se me perdoa a metáfora voleibolística.

– Recuso-me a ter ouvido isso. Prossiga.

– Acho que “eterna” supre mais ou menos a função de “for ever”.  Mesmo tendo havido alguma perda. Em versos, em poesia, eu costumo pensar primeiro na sucessão das sonoridades fortes das vogais, e só depois nas consoantes.

– Por que?

– Tenho a impressão de que as vogais demoram mais no tempo. Imprimem pegadas mais fundas na memória subconsciente do leitor; mas pode ser que somente eu sinta assim. Em todo caso, eu diria que no verso do poeta dos rouxinóis existe a sequência sonora “IN-ÍU-ÓI-É”.  Impossível de preservar intacta em português. Eu tentei cobri-la com “Ô-Í-Í-É”.

– Por uma questão de misericórdia, nem vou tocar no problema das consoantes.

– Peço que não o faça, porque só me restaram o “B” de beauty e um resíduozinho na rima final.

– Muito pouco, e valha o oxímoro – eu diria com menoscabo.

– Sim, mas... Como dizia o ator Fernando Teixeira, diante de qualquer problema insolúvel: “Vou fazer o quê, chamar a polícia?!”

– Ha ha ha, essa foi boa – concederia eu, com uma risada condescendente, dando mais uma baforada do meu cachimbo de raiz de roseira.

O pobre do tradutor passaria a mão no cabelo, já meio apaziguado, ansioso para fazer uma média com um crítico tão seguro de seus fundamentos. E ofereceria:

– Aliás, o senhor não quer sentar aqui nessa poltrona?... Posso lhe oferecer um suco, uma água?... É um prazer ver surgir tão de repente, aqui no meu escritório, um representante da sua categoria.

– Não, obrigado – responderia eu. – Aliás, nem sei que vim fazer aqui, caí foi de paraquedas no seu juízo. E não sou crítico coisa nenhuma, acho que sou um Viajante no Tempo, porque estamos até agora no futuro do pretérito, não sei se você notou.

Isso quebrou o encanto, gargalhamos em uníssono, fomos juntos à geladeira, abrimos uma Skol, e brindamos dizendo: “Itaipava!”.









quarta-feira, 27 de maio de 2020

4583) Entrevistas Transcendentais: Agatha Christie (27.5.2020)




A chegada ao aeroporto de Londres foi tranquila, e a motorista que me mandaram era uma irlandesa cinquentona, sardenta, com duas turmalinas nos olhos. Trocamos algumas frases de cortesia enquanto cruzávamos os viadutos e os trevos de concreto armado, mas ao chegarmos à rodovia principal a viagem transcorreu em silêncio, enquanto o motor da Mercedes emitia uma nota contínua de violoncelo, e as verdes colinas do Devonshire deslizavam e sumiam à distância.

A casa era a das fotos que eu já conhecia. Desci, enquanto o carro dava a volta rumo à garagem na parte traseira. Toquei a campainha e me preparei para encarar um típico mordomo christiano, de porte cavalheiresco e rosto impassível. Mas foi a própria Dame Agatha que veio abrir a porta, o que me desmontou.

– Ah – disse ela sorrindo. – O jornalista brasileiro! Você é mais jovem do que eu pensava. Entre, por favor.

Somente naquele instante percebi o quanto estava nervoso. Apertei-lhe a mão com brevidade; os olhos azuis dela entraram nos meus, me reviraram pelo avesso, avisaram-na de que poderia ficar tranquila. Fui conduzido a uma sala de estar discreta e antiquada, e daí a alguns minutos estávamos sentados, tendo diante de nós aquela instituição inglesa que sobreviverá ao afundamento da Ilhas Britânicas: uma bandeja de chá.


BT– Sempre imagino que a senhora colhe os assuntos para alguns dos seus livros prestando atenção aos objetos mais banais que há numa residência.

AGATHA – Os críticos literários gostam de ver simbolismo em tudo. Se num livro um cão estava cochilando no jardim e de repente levantou a cabeça, eles acabam achando que isso indica a presença de Anúbis, o deus egípcio da morte. Ora... talvez o autor tenha querido dizer apenas que o cão ouviu uma pessoa abrindo o portão, ou coisa parecida.

Claro que eu aprecio lendas: Anúbis, Gilgamesh, Ishtar... Claro que algumas relações podem ser feitas pelo subconsciente. Mas quando escrevo estou preocupada com as relações reais entre pessoas, lugares, objetos... Um cálice pode aludir ao Santo Graal? Sem dúvida, mas meu interesse é saber se cabe nele a dose de bebida suficiente para diluir um veneno específico... (suspira)  Bem, não posso me queixar. Pior seria se ninguém se interessasse pelo que escrevo.

BT– A senhora fez sucesso com relativa rapidez. Seus primeiros livros são muito fluentes, em termos de enredo e de tipos humanos.

AGATHA – A escrita só se conquista depois de muita prática, mas oh, claro, eu tenho uma afeição grande por aqueles livros, embora nunca os releia, para não achar defeitos. Tenha em mente que foram escritos por uma moça que ainda não sabia se era capaz de escrever ou não. Naquele tempo... ah, não gosto de usar essa expressão, mas, enfim... naquele tempo uma mulher publicar um livro era algo como pedir a palavra num auditório onde só houvesse homens. E eu sempre fui tão tímida! Ainda bem que para escrever eu podia imaginar que estava escrevendo só para mim, e que nenhuma pessoa iria ler aquilo com hostilidade, ou com galhofa. Quando penso que vou ser lida assim, fico bloqueada, não consigo produzir mais uma linha. Então guardo o caderno, vou ver se o jantar está sendo bem encaminhado, ou alguma outra coisa que me distraia o espírito.

BT – Qual o seu livro favorito entre todos que escreveu?

AGATHA – Ah, essa pergunta é tão banal... Tem certeza de que quer uma resposta?

BT – Eu concordo com a senhora. Acontece que quem a sugeriu foi o editor do jornal que me trouxe aqui.

AGATHA – Então vou respondê-la, para você não se prejudicar. Digamos que eu tenho um carinho especial pela minha Autobiografia. Sabe, quando escrevemos um romance estamos dentro de uma espécie de sonho controlado. Eu considero meus romances bastante realistas, e tudo o mais, mas eles têm só um pouquinho da minha realidade pessoal. Nesse livro, em que pude falar de mim, senti uma espécie de alívio. Ainda acho que poderia ter escrito o dobro.


BT – Pode ter certeza de que a imensa maioria dos seus leitores aprecia esse livro muitíssimo, tanto quanto eu. Embora, é claro, ninguém queira abrir mão de Hercule Poirot. Como é sua relação com ele, hoje?

AGATHA – Eu seria ingrata se não dissesse que Monsieur Poirot tem toda minha afeição, não concorda? A verdade é que ele entrou muito inesperadamente na minha vida, como aquele visitante que se hospeda em nossa casa-de-campo para passar uma temporada de férias e acaba morando ali por trinta anos. Eu não me planejei para que fosse assim, mas nunca tive uma oportunidade, para não falar num motivo forte, para mandá-lo embora. Ele tem seus cacoetes, mas é um cavalheiro de verdade, algo cada vez mais raro. E tem uma inteligência admirável.

BT – E Miss Marple? Para muitos de nós, ela é ainda mais simpática do que M. Poirot, quando mais não seja pelo fato de que é mais frágil, parece ter menos recursos...

AGATHA – Oh, ela tem imensos recursos, não se engane. Todas essas senhoras são mais perceptivas do que parecem à primeira vista, e sabem se valer de séculos de dissimulação e de estratégia como forma de defesa. Sim, são frágeis, é fácil acabar com elas, é fácil livrar-se delas, mas não é fácil enganá-las.

(Neste momento, um grupo de crianças tagarelas irrompe na sala, e todas se calam instantaneamente ao constatar a presença do visitante. Ms. Christie as chama para perto, apresenta-as – são netas ou bisnetas, não entendo muito bem, porque são meninas muito lindas, muito brancas, com sorrisos encantadores; vieram mostrar-lhe dois ou três livros que acharam na biblioteca da casa, e pedir-lhe conselhos de leitura. Ms. Christie ergue e me mostra, com um sorriso cúmplice, uma capa dizendo Nursery Rhymes. As garotas agradecem, fazem na minha direção uma pequena mesura bem ensaiada e retiram-se envoltas num silêncio que se desfaz em alacridade quando chegam ao corredor.]

BT – Uma das coisas que mais me chamavam a atenção em seus livros era a utilização de cantigas infantis como mote, como ponto de partida para uma história de crimes tenebrosos.

AGATHA – Nós aprendemos muito cedo que a infância é um jardim de terrores. Devo ter sido uma menina muito medrosa, e desde cedo tive uma consciência muito clara de que os seres humanos são capazes de maldades terríveis entre si. Toda criança sabe disso, mas em geral elas têm medo de comentar com os pais. Comentam apenas os temores que já viram alguém comentar, porque acham que estes devem ser um assunto permitido.

BT – Isto inclui o assassinato, sem dúvida.

AGATHA – Claro. Durante boa parte da minha infância tive pesadelos com uma figura ameaçadora, um criminoso que era capaz de entrar no corpo de qualquer pessoa da minha família para me fazer mal.

BT – O Homem do Fuzil.

AGATHA (sorrindo) –  Vejo que lembra desse detalhe. Era uma espécie de soldado napoleônico que minha imaginação infantil produziu, com chapéu de tricórnio, mosquetão... Ele não atirava em ninguém, mas tinha olhos malignos e sempre que eu o “avistava” sentia um pânico controlado. Depois ele deixou de aparecer pessoalmente, mas seu olhar surgia nas pessoas. Muitas vezes olhei para minha irmã e vi que quem me fitava com os olhos dela era o Homem do Fuzil.


BT – Não deixa de ser uma forma de personificar um sentimento para tê-lo sob controle.

AGATHA – Sim, os psicólogos modernos são capazes de correr rios de tinta em torno disso. Mas, sim, era tudo muito próximo, quando eu era menina: medo, família, infância, violência, a guerra... Um assassino sem corpo que de repente brotava no olhar de alguém à minha volta. Tornar-se adulto é ir ficando coberto de camadas protetoras. Esquecemos o quanto uma criança se sente nua, desprotegida, vulnerável diante de qualquer possibilidade de violência física.

BT – Um personagem por quem tenho uma certa parcialidade é Parker Pyne, o homem da observação cuidadosa e da experiência bem comparada.

AGATHA – Gosto dele, mas é um modelo limitado, jamais me teria proporcionado dezenas de romances inteiros, como Poirot. Até que tentei fazê-lo viajar, mas nunca o senti muito à vontade quando longe do seu escritório, e do seu pequeno exército de assistentes, não muito verossímeis, talvez, mas enfim... A vantagem de Poirot é que ele é um homem cosmopolita, conhece pessoas influentes, e ao longo dos anos é natural que haja muita gente que se sente devedora dele, não acha? Convidam-no, levam-no a visitar lugares pelo mundo... Então é tão normal encontrá-lo no Cairo quanto no Surrey. Gosto de viajar e gosto de imaginar histórias em lugares que eu talvez conheça melhor do que o leitor, mas me divirto tentando descrevê-los como me convém.

BT – Lembro-me de quando era bem jovem a surpresa que tive vendo fotos de suas viagens. Especialmente uma foto sua numa escavação arqueológica, e outra com uma prancha de surf.

AGATHA – Os leitores imaginam às vezes que nós não fazemos outra coisa senão escrever e dar entrevistas. Minha autobiografia foi escrita em parte para preservar recordações de pessoas queridas e de momentos felizes, mas também para mostrar que uma escritora é também uma dona de casa,  e uma mulher como qualquer outra, só que é uma dona de casa que escreve. Não direi todas, mas muitas donas de casa poderiam escrever, se o meio em que vivem as estimulasse para isso. Eu enfrentei preconceitos, mas tive também amigos que me encorajaram, e paguei-lhes tributo em meu livro.

BT – A verdade é que sempre sabemos pouco a respeito dos nossos autores preferidos. A leitura dos romances nunca nos satisfaz, principalmente quando se tornam tão importantes para nós... Não acha que essa curiosidade é justa?

AGATHA – Numa certa medida, sim; não esqueça que também sou leitora, tenho meus autores preferidos, minhas curiosidades, minhas fantasias a respeito deles. E sempre procurei ser atenciosa com os que me leem. Meu livro de memórias foi escrito para eles, em primeiro lugar...

BT – Sou um deles.

AGATHA – Fico feliz que seja, porque há moços e moças da imprensa que vêm aqui conversar comigo e começam o diálogo perguntando quem sou, e o que fiz de tão importante para ser entrevistada.


BT – Que é isso. A senhora é talvez a escritora mais famosa do mundo.

AGATHA – Há certos números anunciando isto, mas não quer dizer muita coisa. Já aprendi que, se acumularmos números sobre tudo, acabamos achando alguns que confirmam qualquer opinião nossa. O mundo não para, surgem novos leitores a todo instante, novos escritores. Tenho uma consciência bem clara de que a fama de um autor tende a diminuir com a passagem dos anos.  Um escritor só é famoso entre pessoas que leem, e lamento perceber que esse número está diminuindo. O número de alfabetizados cresce, mas o de leitores de literatura não faz senão diminuir. Mas não posso me queixar, não é mesmo? Tenho mais leitores que uma grande parte dos meus colegas, sei que sou lida, amada, lembrada... O que mais podemos querer?

BT – Poder continuar escrevendo, talvez.

AGATHA  - Ou, melhor ainda, acreditar que continuarei escrevendo mesmo depois que não esteja mais aqui. Sabe, não sou uma pessoa religiosa, pelo menos não tanto quanto muitos da minha família. Desde menina, no entanto, imaginei que mesmo que não houvesse dentro de cada um de nós uma alma imortal, havia sem dúvida um espírito cuja existência nos sobrevive, capaz de ser evocado com palavras. Você deve lembrar um dos meus livros onde brinco com a existência de bruxas, pessoas que fazem encantamentos rituais... Para elas, é tudo pretexto para um crime, é claro, e no meu caso, pretexto para uma história. Mas quando lemos Shakespeare, não estamos mantendo viva uma parte daquela mente tão privilegiada? Talvez não a pessoa dele, que já morreu e se desfez, mas algo que ele prezava muito, tanto que dedicou a vida a isso: seu humor, seu conhecimento de nossas fraquezas e nossas forças, seu entusiasmo para com o heroísmo de que somos capazes às vezes, seu desprezo pela vilania, sua paixão... Não creio, ou pelo menos creio apenas formalmente, numa alma imortal como as religiões aconselham. Creio nesse outro tipo de alma, presa em palavras, e que pelas palavras se propaga.

BT – E que revive, a cada leitura, a cada vez que aquelas palavras são repetidas em voz alta...

AGATHA – Ou mesmo quando lidas à noite, em silêncio. Ou mesmo quando outros dramaturgos, que ali beberam, produzem versos e inventam personagens que poderiam ter sido criados pelo mestre. Para que dele sobreviva algo. Para que seu modo de ver e de sentir não morra. A pessoa deixa de existir, mas ela ficaria feliz se soubesse que suas palavras, e sua maneira de criar histórias, não desapareceu de todo.

Finalizamos o chá, recusei o convite sincero para jantar, pois naquela mesma noite tinha marcado um jantar com meu editor londrino, e no dia seguinte voaria até Paris para encontrar Monsieur Leblanc. Ela despediu-se de mim com o mesmo sorriso, e aquela formalidade inglesa tão ansiosa para agradar, tão consciente da distância que impõe às pessoas; disse-me (todos dizem) que sempre teve vontade de conhecer o Brasil.

No caminho de volta a Londres, vim revisando as provas do meu livro Fanfic e pensando como os círculos continuam a se expandir na água mesmo depois que a pedra repousa no fundo.




(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)   

Augusto dos Anjos:

Julio Cortázar:

Philip K. Dick:






segunda-feira, 25 de maio de 2020

4582) Janelas Indiscretas (25.5.2020)




(ilustração: Laurent Durieux / laurentdurieux.com)


Durante este período de quarentena coletiva muita gente descobriu que tem janelas, que tem vizinhos, que tem curiosidade malsã pela vida alheia.

Pior: que não lhe resta outro remédio senão ficar voyeurizando o dia a dia de quem surge naquelas janelas, naqueles jardins, naqueles terraços. Ficar brechando, como se diz em Campina Grande.

Alfred Hitchcock construiu o hino mais sofisticado ao voyeurismo com o filme Janela Indiscreta (“Rear Window”, 1954), em que James Stewart faz o fotógrafo novaiorquino L. B. Jeffries, que, por estar com a perna quebrada no gesso, fica imobilizado à janela, olhando o pátio dos fundos do seu prédio, que dá para os fundos dos prédios vizinhos.

É verão, o que leva todo mundo a erguer as persianas e escancarar as janelas – menos, é claro, o casalzinho de jovens recém-casados que passa o dia de persiana abaixada, e quando o rapaz se debruça ali para fumar um cigarrinho rápido é logo convocado de volta ao leito pela respectiva.

O pianista tentando compor uma música, sem conseguir... a dançarina gostosinha cercada de admiradores... o casal que deita na varanda para curtir um ventinho... a solteirona de coração solitário precisando de companhia...


Jeffries está prestando atenção nos vizinhos possivelmente pela primeira vez, porque é um daqueles fotógrafos internacionais que passam meses fora de casa, cobrindo insurreições populares no Zimbábue ou registrando safaris no Serengeti. Seis semanas com a perna no gesso o levam a descobrir, nos fundos do seu prédio, um mundo igualmente fascinante e perigoso.

Um casal que vive às turras... certa madrugada ouve-se um grito... pelo dia seguinte inteiro as persianas ficam abaixadas... a mulher não é mais vista... vê-se o marido embrulhando facão, serra... saindo de madrugada, embaixo de chuva torrencial, com uma mala metálica, voltando, saindo de novo... que coisas, ou que partes de coisas, ele está levando naquela mala?

O DVD que revi agora tem um Making Of mostrando como aquele gigantesco cenário foi todo construído de verdade, são varandas de verdade, salas de verdade. Para ter altura suficiente foi preciso rebaixar o chão – o nível do solo é o apartamento de Jeff, e o pátio embaixo foi construído no lugar onde havia um porão.




A história original de Cornell Woolrich é muito diferente do filme. Foi publicada em 1942 no livro After Dinner Story, onde o autor usou seu frequente pseudônimo de “William Irish”. Começa assim (trad. minha):

Eu não sabia o nome de nenhum deles. Nunca ouvi suas vozes. Nem sequer os conhecia de vista, propriamente, porque seus rostos eram pequenos demais para que eu reconhecesse suas feições àquela distância. Mas eu poderia ter construído uma tabela com o cronograma de suas idas e vindas, seus hábitos cotidianos, suas atividades. Eles eram os moradores das janelas dos fundos que me cercavam.

O conto, mesmo sendo de um dos meus autores preferidos, nem de longe é tão bom quanto o filme. Primeiro, ele se concentra no crime, e esses figurantes, no livro, somem depois da primeira página; foi o roteiro de John  Michael Hayes que deu personalidade, história própria e cognomes a cada um deles.

Em segundo lugar, o cara do conto não tem enfermeira nem namorada. Hitchcock trouxe o talento de Thelma Ritter (aquela típica coadjuvante hitchcockiana a quem cabe ser o olho mais lúcido de toda a trama, e ter as falas mais mordazes) e a presença mesmerizante de Grace Kelly, uma dessas mulheres que se disserem “venha cá” o cara vai.

No conto há um diarista, Sam, que prepara comida para Jeff e o substitui nas incursões externas que o filme transfere para Grace Kelly; e há o detetive, mais ou menos na mesma função em ambos.

E um detalhe: no conto, vemos Jeff o tempo inteiro sentado à janela, pedindo a Sam para ir ali, ir acolá, e não sabemos por que. Somente no último parágrafo, à guisa de “final surpresa”, ele revela que está com a perna no gesso. Essa surpresinha só serve para tornar a história implausível durante 99% de sua extensão -- o leitor se pergunta o tempo todo por que o cara não sai dali. Deve ter sido a primeira coisa que Hitchcock resolveu mudar, e revelar a perna-no-gesso desde o início.

Comentando para François Truffaut (em Le cinéma selon Hitchcock, 1966) a multitude de pequenos dramas revelado pelas janelas traseiras dos apartamentos, Hichcock diz:

Do outro lado daquele pátio há todo tipo de conduta humana, um pequeno catálogo de comportamentos. Era absolutamente necessário fazê-lo, senão o filme não teria interesse. O que se vê na parede do pátio é uma quantidade de pequenas histórias, é o espelho, como você disse, de um pequeno mundo.
(Cap. 11, trad. BT)

Essa “quantidade de pequenas histórias” me traz à mente uma outra obra que não tem nada a ver, e tem tudo, com o filme: o romance A Vida Modo de Usar (1987) de Georges Perec (trad. Ivo Barroso). Nele, Perec parte da visualização de um edifício de dez andares com dez apartamentos por andar, visto de frente e sem a parede que tapa a visão desse observador externo.


A visão sugerida por Perec se assemelha a um tabuleiro de xadrez posto em pé, com 10 x 10 casas. Cada casa é um apartamento, visto do outro lado da rua (e sem parede atrapalhando). E o trabalho que o autor se propõe (seguindo regras complicadas demais para comentar aqui) é contar a história do que acontece nesse cem apartamentos – pois ele não é um mero observador (como o de Janela Indiscreta): é o Autor Onisciente, ele conhece aquele povo todo, sabe a história de todas as suas familias, suas aventuras e desventuras, sabe o que pensam, o que guardam em cada gaveta.



Perec não parece ser grande fã de Hitchcock. No romance, há uma menção muito en passant ao diretor no capítulo LXXV, e é ao filme Os Pássaros. Não há menções a Hitchcock no Cahiers des Charges de la Vie Mode d’Emploi (Paris : Zulma, 1993); e na biografia de Perec por David Bellos aparece apenas uma menção rápida, meramente biográfica, do dia em que Perec foi com uma namorada assistir Intriga Internacional (na França, La Mourt aux trousses).

Na adolescência (segundo Bellos), quando morava com seus tios em Blévy, Perec era leitor assíduo da edição francesa do Alfred Hitchcock’s Mystery Magazine e do Ellery Queen’s Mystery Magazine, além das versões de revistas de ficção científica como Galaxy e The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

O autor francês cita algumas imagens que o inspiraram no seu romance, mas não o vi falando de Hitchcock. Ele cita um desenho do mestre Saul Steinberg:


Cita também a tradição das “casas de bonecas” dos artesãos da Europa, obras variadíssimas que se encontram em muitos museus:



Em todo caso, para mim existe uma afinidade total de espírito entre Janela Indiscreta e A Vida Modo de Usar: um cenário visto de longe mas visto em sua totalidade, e o entrecruzamento dos dramas daquelas pessoas que vivem lado a lado, que se conhecem, que se ignoram, que se relacionam, que se esbarram ao acaso, e o fato de que provavelmente cada uma delas se julga no centro de uma tela de cinema que é só sua.









sábado, 23 de maio de 2020

4581) Uma vida a mais ou a menos (23.5.2020)




Eu tinha uma piada, nos anos 1980, cuja graça ninguém entendia. Pense numa coisa que nunca fez efeito em mesa de bar. Era na época em que o Brasil tinha uma dívida externa gigantesca e todo mundo dizia que o país estava quebrado, falido, o país ia acabar. (Sobrevivemos a isto.)

A dívida externa era (digamos) algo em torno de 100 bilhões de dólares. E havia uma equipe de economistas e ministros que todo ano ia a Washington para negociar essa dívida com os credores. Tentar um abatimento.

A minha piada era que um ministro brasileiro dizia para um credor norte-americano: “Ora, ora, um bilhão de dólares a mais, um bilhão a menos, que diferença faz?...”

A piada tinha uma mensagem. (Se as pessoas acreditam que um filme pode ter mensagem, por que uma piada não teria?)  A mensagem é que valor e quantidade são fatores inversos, vistos de um certo ângulo. Se você está negociando uma dívida de 100 reais e o credor diz “Tá bom, tá bom, deixo por 99”, existe um ganho; miudinho, claro, mas não deixa de ser um ganho.

O que é um real? O que é um bilhão de dólares? Pode ser muito ou pouco, dependendo da soma total de que faz parte.

Na época, eu bolei também uma gag de humor tenebroso, tipo filme dos Irmãos Marx. O país está em guerra. Todo dia chegam estatísticas da frente de batalha. Dois caras trabalham na rádio do Exército, transmitindo informações para a Pátria. Um deles está ao microfone, prestes a iniciar a transmissão. Chega outro com um papel:

– Sargento, aqui está a estatística de nossas baixas na batalha de ontem.

– Morreram quantos?

– (Olhando o papel) 3.424.

Quando ele entrega o papel, alguém abre a porta e avisa:

– Morreu mais um, agora.

Os dois em uníssono:

– Coitado! – E fazem o sinal da cruz.

A gente acusa emocionalmente uma morte individual, mas as mortes coletivas são sempre um mero número. Ninguém faz o sinal da cruz 3.425 vezes.

Comparo isto tudo a uma reportagem que li numa revista há muitos anos: uma família perdeu um filhinho, que se afogou numa piscina pública dos EUA. A certa altura do texto, o redator diz:

A piscina, é claro, tinha um salva-vidas, um homem de confiança, professor de natação, profissional atento. Mas nem sempre é fácil perceber que num segundo há 50 cabecinhas para fora da água, rindo, gritando, espadanando água, e no instante seguinte só tem 49.

Quem assistiu Minority Report de Steven Spielberg há de lembrar a cena em que o filhinho de Tom Cruise desaparece numa piscina assim. É muito difícil, numa multidão, cuidar de cada individualidade única e insubstituível.



Essas meditações estatísticas me vêm à mente depois que revi, ontem à noite, O Terceiro Homem (“The Third Man”, 1949), de Carol Reed. É um clássico de sua época, um desses filmes onde tudo se encaixa bem, a começar pelo roteiro de Graham Greene, e pela fotografia de Robert Krasker, que faz o filme ser incluído em listas de “policial noir” e de “cinema expressionista europeu”.


(Ilustração: John Harbourne)

O grande tchans de The Third Man é o personagem Harry Lime, interpretado por Orson Welles. É aquele personagem tradicional, o Canalha Irresistível, um bandido que seduz pessoas a contragosto delas. O filme é construído quase como uma homenagem a Welles e seu Cidadão Kane – começa anunciando a morte do personagem, e depois, com ele fora da história, começamos a saber dele através dos depoimentos de quem o conheceu.

O filme é a história de uma desilusão, a de um amigo (Joseph Cotten) e uma namorada (Alida Valli) que ficam sabendo ao longo das investigações (Lime está vivo, apenas fingiu a própria morte para escapar da polícia) que ele estava envolvido num esquema de adulteração de remédios. 

A história se passa em Viena, pós-II Guerra, há epidemias, principalmente de meningite entre crianças. E Lime inventou um esquema de misturar penicilina com água, e vender pelo dobro do preço.

O amigo fica chocado, não acredita que Harry seja capaz disso. O policial o leva a um hospital de crianças e sai caminhando com ele, de leito em leito, mostrando os resultados da penicilina-batizada. A câmera, com admirável autocontrole, mostra apenas os rostos deles dois.




Harry Lime fingira estar morto para escapar da polícia, mas Holly o descobre e os dois se encontram num parque de diversões, e têm um confronto no alto de uma roda gigante. Holly questiona. Lime dá de ombros e aponta para as pessoas lá embaixo.

– Olha, nunca me senti à vontade com essas coisas. Vítimas? Não seja melodramático. Olhe lá pra baixo. Me diga. Você ficaria mesmo com pena se um daqueles pontinhos ali parasse de se mexer de repente? Se eu lhe oferecesse 20 mil libras por cada pontinho que parasse de se mexer, hein, meu velho, você me diria mesmo que não queria? Ou você ficaria calculando quantos pontinhos daria para poupar?

É a Europa da Guerra Fria, e guerra é guerra, independe de temperatura. Os países estão tentando se reconstruir depois de seis anos de bombardeio, incêndios e massacres. Como se sabe, no capitalismo "crise" é sinônimo de oportunidade. Tudo se reduz a pontinhos, a números, a estatísticas, a dinheiro. O que é uma vida a mais ou a menos? Os judeus perderam seis milhões de pessoas nos campos de concentração. Os soviéticos perderam 27 milhões no total da guerra. Diante disso tudo (pensa Harry Lime) o que é a vida de algum garoto que teve meningite e tomou penicilina batizada?












quinta-feira, 21 de maio de 2020

4580) Primeiras Estórias: "A menina de lá" (21.5.2020)




A quarta estória deste livro de Guimarães Rosa (Primeiras Estórias, 1962), “A menina de lá”, é um continho curto e intrigante sobre uma menina milagreira.

Dizer milagreira é talvez dizer muito, porque dá a impressão daquelas histórias, tão comuns no Brasil, de meninas mortas que fazem milagres. Meninas que foram assassinadas “com requintes de crueldade” e por isso viram uma espécie de santinhas, para cuja capela funerária se dirigem peregrinações sem fim...

Não é o caso de Nhinhinha, esta protagonista. É uma menina como as outras, só que mais calada. Num dos seus prefácios a obras de Rosa, Paulo Rónai comentava o quanto em seus contos apareciam dois tipos de personagens pelos quais ele parecia ter um fascínio especial: os doidos e as crianças.

São pessoas a quem a gente não pode pedir prestação de contas, pode somente observar. A gente pode interrogar a sério um adulto lúcido, pode pedir explicações disso ou daquilo, pode argumentar, comparar conceitos... Com doido e com criança, isso rapidinho se esgota. São criaturas-em-si a cujo mistério interior a gente não tem acesso. Pode somente observar o que fazem, e tentar formar opinião.

“Sua casa ficava para trás da Serra do Mim”, principia o conto, e qualquer interpretador profissional (ou diletante, como é o meu caso) entende que tudo isso se passa à sombra do Ego, numa parte inconsciente e não visível, “além do horizonte do Ser”. Um lugar pré-entendimento, não por outro motivo chamado “o Temor-de-Deus”. É um condado mítico, pré-racional.

E nesse lugar aparece uma menina que faz as coisas acontecerem.

No começo, ela é apenas uma menina como as outras, brincando, sorrindo, dizendo as coisas inesperadas e imprevisiveis que as crianças dizem:

A gente não vê quando o vento se acaba...

Alturas de urubu não ir...

O passarinho desapareceu de cantar...

São da menina, estas frases? Sim, mas acima de tudo são do Autor, que é menino também, pensa desse jeito, imagina desse jeito, e se expressa desse jeito. E anota tudo em cadernetinhas a que recorre quando precisa de exemplos.

Nhinhinha é no entanto alguma coisa mais, escondida por trás da Serra “do Rosa”, da Serra do Moimeichego. Ela faz milagres.

A princípio, a família se admira apenas porque ela “adivinha” o futuro.

Diz: “Eu queria o sapo vir aqui”... e daí a pouco o sapo comparece, pulando. Diz: “Eu queria uma pamonhinha de goiabada...” e logo surge uma vizinha, sem saber de nada, trazendo o doce desejado.

Diz o narrador: “O que ela queria, que falava, subito acontecia”. Mas não era tão fácil assim. A Serra está passando por uma seca braba. O pai, todo mobilizado, sente-se na obrigação de tomar alguma providência e convoca a milagreira da casa. A menina refuga, não quer, não explica: “Deixa... deixa...”.

E um dia a menina explica outra coisa que queria: “um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes...”  E o resto é estória.

É um desejo de nossa infância (dizia Freud): o da Onipotência do Pensamento, de fazermos as coisas acontecerem apenas pela vontade, sem mexer uma palha, sem assoprar um grão de areia. Quando julgamos que isso acontece (=pedimos uma coisa e a coisa sobrevém), nos assustamos. Temos a sensação do Uncanny, do Unheimlich.

Todo mundo conhece alguma história sobre, sei lá, um marido farrista que sai para a esbórnia e a esposa revoltada pragueja: “Era bom que batesse com esse carro...”, e quando o sinistro acontece ela desaba de culpa.

Um caso clássico (nas minhas referências literárias) da Onipotência do Pensamento é o conto tenebroso de Jerome Bixby, “It’s a Good Life” (1953; foi depois adaptado para a série Twilight Zone).



É a história de um menino, Little Anthony, que nasce em Peaksville, um vilarejozinho do interior dos EUA, e desde cedo desenvolve poderes muitos mais fortes do que os de Nhinhinha. Ele faz se abater sobre aquela gente simples, interiorana, por trás de alguma outra Serra, toda a força-em-bruto da pulsão desejante de um ser humano normal em seus primeiros meses de vida.

Tudo que ele deseja acontece – instintiva e irreversivelmente.

Aos três anos, Little Anthony é capaz de apagar a mente de uma pessoa e transformá-la num robô amnésico e sorridente. É capaz (para se divertir) de fazer um rato devorar a si próprio. É capaz de ler pensamentos e de, mesmo quando está de bom humor, provocar catástrofes terríveis porque tenta, às vezes, realizar o que aquela pessoa está pensando.


("Twilight Zone")

Por isso todas as pessoas, quando se aproximam dele, murmuram sem parar algum mantra sem sentido, para misturar os próprios pensamentos, e não darem idéias erradas a Little Anthony.

Claro que o Pequeno Tirano Cósmico não aceita interferência ou admoestações. Aliás, a primeira coisa que ele fez foi remover o vilarejo do mundo em que nós estamos. Peaksville tornou-se uma ilha no meio do Nada. E uma ilha onde tudo está acabando: mantimentos, bebidas, cigarros, roupas... Não há como trazer mais “do mundo de fora”, porque ninguém sabe mais onde está.

Mamãe olhou pela janela, para além da estrada escura, para além do trigal escuro dos Henderson, para o vasto, interminável Nada cor-de-cinza  em que o vilarejo de Peaksville flutuava como uma alma – o imenso Nada que ficava mais evidente à noite, depois que o dia brilhante de Anthony acabava.

Não adiantava de nada imaginar onde estariam... nem um pouco. Peaksville estava em algum lugar; e pronto. Algum lugar longe do mundo. Estava ali desde aquele dia, três anos atrás, em que Anthony emergira do ventre dela e o Doutor Bates, que Deus o tenha, gritou e largou o bebê e tentou matá-lo, e Anthony soltou um vagido e fez aquilo. Levou o vilarejo para algum lugar; ou destruiu o mundo e deixou apenas o vilarejo, ninguém sabia qual dos dois.

A literatura tem disso. Por mais que um tema seja claro, específico, por mais que uma história pareça já ter sido contada, por mais que tenha mesmo sido contada mil vezes, quando ela passa através de um autor ela sai do outro lado transformada em outra coisa.

O que em Guimarães Rosa é lirismo e carinho, ainda que com uma mão-de-tinta fúnebre nos últimos parágrafos, em Bixby é terror puro, “fantasmas do Id”.


("Twilight Zone")

A Onipotência do Pensamento é uma fantasia resultante de uma fase em que a criança não distingue entre o mundo material e a representação mental que faz dele; e pulando daí para o plano coletivo, entramos no reino dos animismos de toda forma. Em que é possível à mente dominar a matéria sem usar a matéria. Encantamentos, pragas, bruxarias, magia à distância, tudo isto são derivações desse desejo: o de olhar para uma coisa que nos incomoda, pensar: “Desapareça!” – e essa coisa desaparecer.

Bixby é só pesadelo. Rosa, que gostava de doidos e de crianças, era capaz de imaginar uma menininha milagreira do-bem:

Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita.


O conto é uma fantasia benigna sobre o Poder. Na sua delicadeza, leveza, Nhinhinha parece estar flutuando, e mesmo quando colocamos os dois lado a lado ela não é sugada pelo “black hole” desejante que é Little Anthony.