segunda-feira, 31 de outubro de 2016

4175) Acuda, seu papa-hóstia! (31.10.2016)



Sou assinante de uma lista de mensagens chamada A Word A Day, que envia, seis dias por semana, um verbete de uma palavra da língua inglesa, com pronúncia, definição, etimologia e exemplos, além de uma “frase do dia” sem relação direta com o verbete. 

Certo dia, um leitor, ao comentar o verbete “cockalorum” (“pessoa presunçosa, que se vangloria; fanfarronice”) lembra um outro sentido para esse termo, só que desta vez numa história cômica, meio absurdista, meio picaresca. Diz Edie Bonferraro:

Cockalorum recebe um emprego diferente no conto Mestre dos Mestres, na antologia infantil My Book House. Um homem arranjou um criado e ensinou-lhe algumas palavras especiais que ele devia usar quando se referisse a várias coisas. Ele próprio, o dono, devia ser chamado ‘mestre dos mestres’, sua casa era ‘topo-top da montanha’, o gato era “siminino da carabranca”, as calças eram “buscapés e traques’, a cama era “a caramuja”; o fogo era “a quente-jactância” e a água era ‘alagoância’.
 Durante a noite, o criado acordou o patrão gritando: “Mestre dos mestres, pule da caramuja e ponha os buscapés e traques, que siminino da carabranca está com quente-jactância acesa ao rabo, e se não trouxer alagoância, topo-top da montanha vira quente-jactância.”  (No original: "Master of all masters, get out of your barnacle and put on your squibs and crackers; for white-faced simminy has a spark of hot cockalorum on her tail; and, unless you get some pondalorum, high-topper mountain will be all on hot cockalorum!").

O mundo é grande e pequeno, como diz o poeta. Isso aí na minha terra é a história do “Menino Sabido e o Padre”, que todo livro de literatura oral brasileira traz em pelo menos uma versão diferente. Eu e Antonio Nóbrega já fizemos uma adaptação dela para usar numa peça. Há versões em que se trata de uma criadinha. Há um sub-texto malicioso no fato de que o patrão chama certas coisas por nomes bem diferentes.

A história que aprendi de memória, desde pequeno, fala de um padre que emprega um moleque de recados (um pícaro como Cancão de Fogo ou João Grilo) e vai lhe ensinando: a cozinheira que faz o jantar do padre é a folgazona, ele o padre é o papa-hóstia, o fogo que está aceso no fogão é clareiamundo, o gato é o mata-rato, a água do pote chama-se abundância; o diabo que se vê numa gravura é o demo; e o algodão em cima da prateleira é a traficância. Alta noite, o menino (por alguma rixa com o padre, ou por maus tratos) prende ao rabo do gato um chumaço de algodão, toca fogo nele, e entra na alcova bradando:

Acuda seu papa-hóstia,
dos braços da folgazona,
venha ver o mata-rato
com clareiamundo no rabo;
se não acudir com abundância,
leva o demo a traficância!

Bastaria a construção destas duas últimas linhas para denunciar que quem as compôs não foi um capiau analfabeto, e sim alguém acostumado a penas e tinteiros. Podemos supor também, porque supor é só o que podemos, que histórias dessa natureza, usando tal artifício, seduzem justamente o tipo de recontador doido pra deixar uma contribuiçãozinha, dar uma melhorada na versão original.

Outro fator que vai transformando a história é o limite de nossa capacidade de memorização. Muita gente passa adiante versões incompletas, ou cheias de substituições aleatórias, simplesmente porque não lembra da história direito. 

Nem todo mundo tem a memória ou a vivência de Luzia Teresa, que gravou centenas de histórias para a UFPB. E não há duas versões orais, por mais confiáveis, que sejam igual uma à outra. Passar histórias adiante cruzando o hiperespaço da memória é sempre contaminar, ou estropiar, ou diluir, ou parafrasear, ou enxertar, ou substituir às pressas pra tapar um buraco...

Deve haver nessa anedota o resíduo de uma série de fricções culturais, atritos carrancudos ou cômicos entre indivíduos com universos verbais distintos. Personagens representando a dualidade entre a cidade e o campo, como se diz na cidade, ou entre a rua e o mato, como se diz no mato. 

As histórias em que figura um padre são plausíveis, porque subentende-se que um padre é alguém sempre a ensinar aos mais jovens e aos mais pobres a maneira certa de dizer as coisas. E em geral são nomes complicados para as coisas mais comuns, que não precisam de nenhum nome novo. 

Essa historieta é também uma avó distante daqueles milhares de esquetes cômicos de teatro, de rádio e de televisão, em que um primo rico tenta ensinar ao primo pobre e caipira os “costumes e a linguagem da cidade grande”, o que vira um moto-perpétuo de mal-entendidos.







quarta-feira, 26 de outubro de 2016

4174) O paradoxo do avô (26.10.2016)



As histórias de viagens no tempo, pela sua própria natureza, produzem um certo número de situações-padrão que se repetem  de modo aparentemente aleatório e de modo aparentemente orgânico ao longo dos tempos. 

O mais conhecido e mais desgastado deles é o famoso “Paradoxo do Avô”: João volta algumas décadas no passado, encontra seu próprio avô ainda jovem, e consegue matá-lo. Com isso, o avô não casa com a futura avó; o pai (ou a mãe) de João nunca chega a existir. Mas então João também não existiu. Portanto não poderia viajar no tempo, nem matar o próprio avô. Sendo assim, o avô ficou vivo, casou, lá vem o pai, lá vem João, a máquina do tempo...

É um loop que a cada volta anula seu próprio postulado de origem, mas prossegue em frente por pura bravata narrativa, até explodir de encontro à próxima bifurcação lógica, e tudo recomeça.  Nesse loop, a cada passada se tem uma resposta positiva e negativa, alternadamente (“matou mas então não nasceu”, “não matou e nasceu sim”), mas essa polaridade se inverte no fim de cada passada. É como um anel de Moebius, onde temos a sensação de estar numa superfície contínua mas ela muda de dimensão quando chega no ponto da “torção”.

O que sempre me intrigou neste clichê narrativo da pulp fiction foi o fato de que o avô entra na volúpia desse morticínio como entrou Pilatos no Credo e a Fiat no Pai Nosso. Por que matar o avô? Se o paradoxo inteiro se origina na possibilidade de anular a existência do viajante no tempo, bastava que ele voltasse e matasse o próprio pai, impedindo-o de gerar o filho. Pelo que entendo, o paradoxo não se alteraria.

O grande problema deve ser que talvez esse confronto ficasse freudiano e gráfico demais. Édipo anda com muita visibilidade. Voltar no tempo pra matar o próprio pai?!  Inaceitável pelas bilheterias. No máximo, voltar no tempo para garantir que seu pai vai ser homem bastante para comer sua mãe, como fizeram os autores de De Volta Para o Futuro (1985). 

Na maioria das histórias, o inconsciente coletivo (dos redatores em mesas grupais, ou de contistas em serões solitários) pulou o pai e colocou o avô em xeque. Não foi nada mal para ele. The Grandfather Paradox. Acho mais divertido ser nome de paradoxo do que ser nome de rua.

Talvez tenha sido um impulso márqueto-afetivo semelhante ao que fez Walt Disney e seus criadores transferir certos conflitos e certas liberdades, transferindo ambos para “tios” (Donald, Mickey, etc.) e não para pais e mães.

Nesse aspecto, acho que os escritores de FC nos pulp magazines dos anos 1940 tinham receio de mexer nesses países-baixos da mente humana , diante de um público leitor mais ou menos composto de jovens proto-nerds, zés-ninguéns desempregados, soldados em território de combate...  Matar o pai poderia ser perturbador, mas matar o avô era algo mais intermediado, mais diluído, era como acasalar com a prima.

O Paradoxo do Avô, portanto, é um circunlóquio, uma maneira mais tortuosa e menos impactante de sugerir uma ideia, usando uma volta mais comprida para fazer estalar o gatilho do enredo: um homem é capaz de anular a si mesmo a ponto de anular também essa anulação que ele mesmo promoveu. 

A auto-anulação voluntária: olha aí, Carlos Drummond já previa isto em seu poema “Science Fiction” (1962):

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.












sábado, 22 de outubro de 2016

4173) O que escapa da tradução (22.10.2016)




Às vezes a gente é tentado a ver no tradutor uma espécie de ourives. De fato, tem muito a ver, aquela concentração quase maníaca para produzir um pequeníssimo mas extraordinário efeito num espaço mais que minúsculo. A arte de ver uma coisa complexa e conseguir reproduzi-la igualzinha. Traduzir poesia é muitas vezes assim.

Não só poesia, claro. Um exemplo bem à mão, que pode ser estudado, é o trabalho conjunto de Guimarães Rosa com seus tradutores Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, que traduziram sua obra para o italiano e o alemão, respectivamente. Para achar o equivalente de um topônimo, de um arcaísmo, de uma imagem inusitada, passavam horas, propunham e examinavam variantes, uma delas “colava”.

No texto de Rosa o tradutor avança quase que de palavra em palavra, mas na prosa de registro mais solto pode-se parar de frase em frase. A palavra pode ser a menor unidade de significado, mas a frase é o átomo de hidrogênio da literatura. Tudo se constrói em cima dela.

A jóia que o tal tradutor-ourives está filigranando é a frase.  Para conseguir recriar com sabor de verdade a frase o tradutor muitas vezes tem que enfiar uma palavra intrusa, tem que omitir uma palavra que parecia importante. Desde que a curva, o gráfico da frase continue o mesmo.

Essa imagem me lembrou o aposentado e derrotado Coronel Aureliano Buendía, do romance de Garcia Márquez. Depois que perde a, sei lá, centésima Revolução que tentou realizar no país, ele se recolhe a um pequeno ateliê onde fica esculpindo peixinhos minúsculos de ouro, todos perfeitos e simétricos até a derradeira escama. O ouro de que dispunha dava para dezoito peixinhos idênticos. Quando ele fechava a conta, derretia todos, e recomeçava.

Não existe tradução definitiva, tal como não existe obra definitiva. Se Shakespeare ressuscitasse hoje, a primeira coisa que ele ia pedir era uma borracha, papel e tinta. O tradutor precisa somente ter a lucidez necessária para perceber quando tem diante de si um verso perfeito, porque esses existem sim, e são legião. O que é mesmo bom tem que ficar à altura.

Grandes traduções de poesia já foram feitas por não-poetas, por indivíduos que jamais produziriam um só verso de seu.

Mesmo na prosa, muitas vezes uma tradução meramente literal equivale a escutar uma orquestra sinfônica num mp3 compactado. Perdem-se os graves, os agudos, as superposições, os subtemas longamente planejados pelo autor. Mas mesmo traduções precárias são importantes pelo efeito colateral de trazer (digamos) Boccaccio para o leitor lituano, as Mil e Uma Noites para o leitor holandês, Goethe para o leitor nicaraguense. Tem tanto, no original, que alguma coisa sempre passa.

Claro que seria muito melhor se as traduções fossem sempre boas. Mas neste aspecto concordo com Jorge Luis Borges quando diz que uma boa história resiste a traduções, a paráfrases, a imitações, à má memória de quem a reconta. Histórias cujo efeito reside no enredo são mais resistentes a uma má tradução do que uma história cujo atrativo principal seja o estilo, ou alusões culturais obscuras.

Vai ser preciso uma tradução muito ruim mesmo para tirar o impacto e o mistério de histórias límpidas como “O Colar” de Maupassant, “A Pata do Macaco” de Jacobs ou “Continuidade dos Parques”de Julio Cortázar. Basta recontar, com uma voz plausível, sem precisar de enfeites, o seu mecanismo fatal de decisões, consequências e surpresas. Passando isto pro leitor, é o que importa. Estilo, no caso, é uma mera roupa. Pode mudar um pouco, desde que o plot se mantenha.

A tradução as vezes é ruim, mas para certos livros basta uma fagulha saltar a fronteira linguística para renovar o incêndio inteiro.









quarta-feira, 19 de outubro de 2016

4172) A injustiça dos prêmios (19.10.2016)





Carlos Drummond tem um verso que eu acho ótimo, quando ele diz que o que queria de verdade era “o fim sem a injustiça dos prêmios”.

Todo prêmio é injusto? Sim, sempre, para alguém, de algum ângulo, por algum pretexto ou motivo. Todo prêmio subjetivo (alguém gostou mais de A do que de B) pode ser questionado assim.

Prêmios esportivos tentam fugir à subjetividade. São atribuídos valores numéricos a performances individuais, quantificando-as de acordo com algum método que todos compartilhem. Isso produz uma mentalidade de crença de que numa disputa de qualidade existe um critério capaz de fazer a definição pender de forma indiscutível, irrecorrível, para um dos dois lados. Ganhar no basquete por 147x146 ou na corrida por 3 centésimos de segundo é algo nítido. Equivale (sempre: essa é a raiz do esporte) a ganhar de 1 a zero.

Prêmios literários são subjetivos. São conferidos por um júri de leitores que se supõe qualificados para avaliar uma obra. Não existe um ranking numérico de qualidade literária, e no dia em que houver eu me suicido.

O Nobel é um prêmio para um conjunto de obra, pelo que sempre entendi. Isso significa avaliar a carreira completa de uma dúzia de nomes (acho que isso varia a cada ano), no mundo inteiro.

O problema não é que a escolha seja subjetiva, que ela reflita opiniões pessoais, venetas, preconceitos. O problema é que quem concede um prêmio como o Nobel, por exemplo, precisaria talvez ter a respeito de cada concorrente “um iceberg, não, uma Antártida de informação”, como dizia William Gibson.

Tem política envolvida? Tem, né? Qualquer coisa dentro do radar da imprensa internacional e que conceda prêmios de mais de um milhão de alguma coisa tem política.  No caso do Nobel há dois ângulos diferentes disso: o jogo das preferências ideológicas (esquerda, direita, etc.) de cada autor e de cada jurado, e as maquinações políticas específicas da disputa e da concessão da “láurea”, as pressões, recados, ameaças, promessas. Existe política no Nobel e existe política na escolha das menções honrosas no concurso de poesia de uma escola dominical em Conceição do Mapinguari.

Na casa dos meus pais tinha uma dúzia de volumes daquela coleção Prêmio Nobel,  exemplo de resistência nas salas de visitas e estantes escolares do Brasil inteiro. Doze autores cujos nomes aprendi naquelas lombadas: Bjornstjerne Bjornson, Theodor Mommsen, Sully Prudhomme, Frederic Mistral, José Etchegaray... 

Li algum? Consegui ler dois: O Pássaro Azul, a peça-poema de Maurice Maenterlinck, que eu descobri recentemente ser cunhado de um dos meus autores favoritos naquela mesma época, Maurice Leblanc; e A Luz Que Se Apagou de Rudyard Kipling, do qual eu já conhecia Mowgli, o Menino Lobo (The Jungle Book), pela Coleção Terramarear, e o famoso poema “Se...” (“If...”), do qual meu pai tinha um vinil, na voz de Rodolfo Mayer.

Comigo, o Nobel ficou associado desde cedo ao que a imprensa já transformou em carimbo: nome impronunciável e obra ininteligível. Sempre tenho um susto quando descubro que o ganhador é alguém como Saramago ou Vargas Llosa. Quando anunciaram Dario Fo, foi a minha vez (antecipada) de achar que era pegadinha.

Prêmios têm valor?  Para mim, sim, porque eu sou primeiro que tudo um leitor, um leitor que escreve.  (Gosto muito de escrever, mas de ler gosto mais ainda. Pela singela razão de que posso ler o mundo de todo mundo, mas pra escrever só escrevo o meu.)  

Prêmio é spotlight.  Como leitor, no meu tempo de estudante, eu acompanhava na imprensa todos os prêmios. Nos anos 1970 houve expansão da imprensa alternativa, das coleções populares, dos tablóides de oposição, das antologias, e também dos concursos literários. Foi assim que Rubem Fonseca (que já era autor publicado e maduro) surgiu no radar de todo mundo, ao ganhar o Prêmio do Paraná, o maior do país, com “Lúcia McCartney” (1969).

Os leitores correm atrás, os livreiros, os editores: para todos esses é importante. Seria uma injustiça se não fosse também para o “galardoado”.

Eu já me inscrevi, já perdi deadline, gastei pequenas extravagâncias com postagens de pacotes, já perdi onde tinha certeza, já ganhei quando não esperava, já perdi sem me abalar, já ganhei sem merecer.

Prêmio só deve ter importância quando a gente ganha. Mesmo quando é preciso preparar inscrições, enviar originais, etc., o melhor é fazer isso e esquecer. Quando ganha, você vai lá satisfeito e agradece. Mas é como bilhete de loteria. Por enquanto, a gente compra, guarda... e “esquece”.

O folclore e o cerimonial em torno do Nobel são irresistíveis para a cultura popularesca.

Um retrato literário que me vem à lembrança é um velho professor sueco, jurado do Nobel de Literatura, com quem se abrem as primeiras páginas do romance The Prize (1966) de Irving Wallace, um thriller de espionagem em torno de um escritor norte-americano que vai a Estocolmo para receber o Nobel de Literatura e se envolve numa intriga internacional, cheia de tentativas de assassinato e de perseguições.

Foi filmado, claro. Criminosos Não Merecem Prêmio (1963) foi o título brasileiro do filme, dirigido por Mark Robson e tendo Paul Newman no clichê de Andrew Craig, o escritor beberrão  e conquistador (uma espécie de Norman Mailer ou Bukovsky), que confessa à imprensa sueca (enquanto azara sua cicerone estatal, Elke Sommer) estar sobrevivendo graças a contos policiais em revistas de pulp fiction.

O filme de Robson aparece de vez em quando naquelas listas tipo “Os Dez Melhores Filmes Hitchcockianos Não Dirigidos Por Hitchcock”.  Tem cenas que parecem tiradas de North by Northwest (Intriga Internacional, 1959), certamente por ter o mesmo roteirista, Ernest Lehman. Por outro lado, deve ter concorrido para que logo depois Paul Newman fizesse um papel muito semelhante, como o cientista atômico dos EUA numa suspeita visita à Alemanha Oriental, em Torn Curtain (Cortina Rasgada, 1966) de Hitchcock em pessoa.

Uma das cerimônias do Nobel mais ominosas que o cinema já mostrou foi a de A Beautiful Mind (Uma Mente Brilhante): nela, o matemático John Nash (Russell Crowe) recebe o Nobel de Economia quando está em pleno tratamento de esquizofrenia. Lá nos salões suecos, ele avista de longe os personagens de sua alucinação, contidos mas presentes.

Prêmio de literatura é bingo, é víspora, é loteria, é algo que cai do céu. As coisas que caem do céu independem de estarmos pensando nelas ou não. Melhor ir escrever o próximo livro.

O melhor comentário sobre o Nobel para Bob Dylan foi de Leonard Cohen: “É como pregar no Everest uma medalha de ‘maior do mundo’”.








segunda-feira, 17 de outubro de 2016

4171) Falando certo (17.10.2016)




(ilustração: Madoz)


Eu estava ouvindo rádio e perguntaram a um piloto a opinião dele sobre um modelo de carro, o “X”, e ele disse:

“O X é uma máquina muito prazerosa de ser pilotada”.

Está certa ou errada essa frase? Eis uma questão filosófica de primeira grandeza. E a resposta à altura é que a frase não tem erro algum, está gramaticalmente aceitável, e todo mundo entende o que ele está dizendo.

No meu caso, eu entendo que a frase está apenas mal formulada, porque é assim que todos nós em geral falamos quando estamos (como era o caso) respondendo de improviso uma pergunta, ao vivo, num programa de rádio. Essa junção de “é prazerosa / ser pilotada” enfraquece a ação, apassivando os verbos.

O primeiro impulso dele certamente foi dizer: “O ‘X’ é uma máquina muito prazerosa”.  Aí ele sentiu que faltava um complemento, né? Prazerosa de que? De escutar?  De olhar?  Faltava a alguma coisa, e numa fração de segundo surgiu o complemento: “... de ser pilotada”. O início teria sido diferente se ele já estivesse pensando nessa conclusão, o que certamente não foi o caso.

Se o mesmo cara fosse escrever isso num teclado, num email, por exemplo, ele talvez tivesse tempo de achar que a frase podia ser melhor. Se eu fosse dar uma mexida nessa frase, a próxima versão dela ficaria assim:

“O X é uma máquina que dá muito prazer a quem pilota”

A idéia que busca se expressar é a junção de: “X” + ação de pilotar + prazer. Essa semântica trindade é “o que ele está querendo dizer”.

Há mil maneiras de verbalizar isto, inclusive invertendo os enunciados:

“O maior prazer na minha vida de piloto foi pilotar o X.”
“Pilotar o X: um prazer e uma revelação.”
“X: uma máquina que bem pilotada dá o maior prazer”.

A trindade de elementos está presente em todas, mas é possível fazer centenas de variantes com ênfase nisto ou naquilo, em tom poético, em tom propagandístico.

Publicitários passam noites em claro mexendo em frases assim, até baterem o martelo e apontarem a versão definitiva. Escritores maníacos, perfeccionistas, fazem isso de moto próprio, sem receber um cachê pré-acertado por hora de trabalho, contando apenas com a compreensão do presente e a generosidade do futuro.

Uma frase mal formulada reflete o modo fragmentado que é natural da nossa comunicação. Quando falamos no dia a dia, espontaneamente, falamos aos cacos, o pensamento faz ziguezagues, mudando regências ou sujeitos no meio de uma frase. Quando a gente escreve, tem mais tempo de evitar isso.

A não ser que seja um rei da resposta rápida, como o pistoleiro que Ariano Suassuna lembrava nas suas palestras. O coronel chamou o assassino profissional e explicou quem seria a vítima, e quanto o pagamento. Ficou meio desconfiado com a tranquilidade do pistoleiro e disse: “Venha cá, mas você tem mesmo coragem de matar um caba?” E o outro disse: “Doutor, coragem eu não sei se tenho não, eu tenho é costume”.

Uma resposta como essa nem precisa ter sido de improviso para ser considerada uma resposta impecável, mas se foi improviso o jeito é emborcar a viola e pedir um café.

Mas ninguém pensa normalmente assim. Ninguém produz respostas concisas e brilhantes como essa, a não ser quem faz disso sua razão de ser, como cantadores ou contadores de histórias.

A frase bem escrita diz muita coisa em troco do esforço que exige, ou seja, por mais complexa que seja a forma ou profunda a idéia, o leitor emerge ao fim da experiência com a sensação de ter ganho alguma coisa.

A frase mal escrita é aquela que parece que vai numa direção, aí dá uma volta, muda de idéia, como uma colagem de músicas em tons diferentes. Exige um esforço danado para a gente achar que entendeu 85% dela, e quando a gente dá o balanço e vê o resultado diz: oxente, isso tudo pra tão pouco?










sexta-feira, 14 de outubro de 2016

4170) Um prêmio Nobel pra Bob Dylan (14.10.2016)



Essa candidatura de Dylan ao prêmio Nobel é coisa velha. Há muitos anos que vejo, nos saites dos fãs, imagens da documentação de inscrição oficial, etc. 

Já escrevi aqui sobre as listas de Prêmios Nobel Alternativos, que sugerem substituir premiados que ninguém conhece por autores muito mais significativos e que nesse mesmo ano estavam no auge de suas obras. Gente como Franz Kafka ou Philip K. Dick ou Jorge Luís Borges, que nunca ganharam.

O crítico Ted Gioia (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/12/1440-o-premio-nobel-alternativo.html) sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria nesse ano ter premiado Bob Dylan.  Já nessa época não concordei.  Li pouca coisa de Walcott mas concordo que seja um grande poeta e mereça o prêmio – seja lá o que isso signifique em termos de grana, imagem, poder, acesso.

Nunca achei que Dylan ganhasse. E também nunca liguei muito. Para não parecer que estou esnobando o prêmio Nobel, eu até acompanho bastante essa fórmula-um, sei do impacto que produz. Daí a considerar que os acadêmicos suecos sabem o que é boa literatura e eu não, vai uma grande distância. Mas o leitor leigo, que precisa de um formador de opinião para lhe sugerir o que pensar, fica atarantado diante dessas decisões inesperadas.

Dylan  ganhou por suas canções, mas tem dois livros excelentes, cada qual dentro do seu subgênero, sua época.

Tarantula (1966) é um daqueles textos-colagem de pequenos episódios absurdistas saturados de referências da cultura pop. É quase um prolongamento das Contracapas escritas por Dylan para a maioria dos seus álbuns, principalmente a prosa estilhaçante e eletrificada dos textos incluídos em Bringin’ It Alll Back Home (1965) e Highway 61 Revisited (1965). Uma prosa prima dos textos beat de Ginsberg, Burroughs e Kerouac.

O outro livro, que me surpreendeu, porque não esperava grande coisa dele, foi sua recolha de memórias, Crônicas, vol. 1 (2004 – aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/12/0680-bob-dylan-sabe-escrever-2452005.html). Muita gente pensou que seria uma autobiografia cobrindo, quem sabe, a primeira metade da carreira do cantor. E de fato ele fala bastante da New York pós-1960 onde caiu de paraquedas e decolou de foguete. Mas pula para a frente e para trás, fala pouquíssimo dos seus discos mais importantes, a cronologia rapidamente vai pro espaço.

A prosa de Dylan é surpreendentemente bem escrita, precisa, descrevendo o ambiente enfumaçado do Greenwich Village, mostrando os tipos, os cantores, os intelectuais, a malucada, comentando tudo. Alguns críticos observaram que Dylan nesses capítulos iniciais “ressuscitou” vários tipos da cena folk novaiorquina desse tempo.

Ele faz muitos comentários bons sobre seu processo criativo, inclusive tentando explicar uma regra numérica que tem para compor suas músicas, a qual parece até fazer sentido, embora eu não tenha entendido até hoje.

Perto do final do livro ele conta como sua namorada Suze Rotolo o levou para assistir um ensaio do grupo para o qual ela fazia trabalhos de design. O espetáculo se chamava Brecht on Brecht, e era cheio de canções de Bertolt Brecht e Kurt Weill.

Dylan descreve, com uma precisão emocionada, como, ao ouvir as canções de Brecht e Weill, principalmente Pirate Jenny, ele entendeu como escrever uma canção que fosse além das canções folk.

Ele diz:

“Aquela canção era um estímulo novo para meus sentidos, sem dúvida muito parecida com uma canção folk mas uma canção folk de outra jarra e de outro terreno. Minha vontade era pegar um molho de chaves e sai pesquisando esse território, ver se tinha mais alguma coisa por ali. Desmontei a canção inteirinha e abri para olhar dentro dela – era aquela forma, aqueles versos em livre associação, a estrutura, o descaso pela certeza dos padrões melódicos, tudo fazendo com que a canção ganhasse peso, ganhasse um gume afiado.”

Já virou um clichê da crítica aludir a Dylan falando em Rimbaud, e ele próprio de vez em quando faz uma referência. Mas parece que o impacto da poesia do “pobre B. B.” sobre ele foi mais fecundo. Foi Brecht, visto num pequeno palco de ensaios off-Broadway, que lhe deu o estalo-de-Vieira criativo.

Dylan estava acostumado às canções folk norte-americanas, aquela simetria de estrofes idênticas do começo ao fim (como em nosso cordel), e as melodias anasaladas, proclamatórias e circulares das tradicionais baladas inglesas ou irlandesas. As imagens cortantes dos versos de Brecht e as dissonâncias controladas de Weill não passaram em branco.

Robert Shelton (The Bob Dylan Encyclopedia) registra que logo depois disto, em agosto de 1963, a revista musical Broadside publicou uma carta elogiosa de Dylan, no seu estilo ziguezagueante da época:

“Aleluia para vocês todos por terem colocado Brecht neste número mais recente da revista. Ele devia ser tão conhecido quanto Woody [Guthrie], e ser tão lido quanto Mickey Spillane”.

Pois é... fico eu falando de literatura e me esqueço de comentar A Coisa Mais Importante Do Mundo: os prêmios literários, que, para grande parte dos escritores de hoje, são o motivo principal de se escrever um livro.

Fico feliz com o prêmio para Dylan, não por ele, que não precisa de prêmio nenhum, mas pela discussão em torno de poesia, literatura e letra de música, uma discussão importante, se bem que geralmente baseada em premissas erradas.

Minha posição a respeito (que defendo aqui há muitos anos) é de que: 1) “Poesia”, “Letra de Canção”e “Literatura” pertencem ao mesmo campo artístico, usam a mesma matéria-prima (a palavra), e têm cada qual sua especificidade, mas nenhuma das três confere qualidade a uma obra: existe a poesia boa e má, a letra de música boa e má, a literatura boa e má. 2) O prêmio foi justíssimo: acho Dylan um dos grandes poetas do século 20.

E para consolar os inconsoláveis, transcrevo o depoimento de Greil Marcus (um dos melhores críticos de rock que conheço, fã e grande conhecedor de Dylan), sobre a possibilidade dele ganhar o Nobel, num depoimento de 2005:

“Eu espero que ele não ganhe esse prêmio. Existem milhares de escritores que precisam do prêmio mais do que ele. É um prêmio para a literatura; ele é um compositor, ele é um cantor, ele é um artista do palco. Seja como for, Bob Dylan já ganhou uma infinidade de prêmios, não precisa de mais este. Há muita gente que precisa desse dinheiro, que precisa de mais leitores.”










quarta-feira, 12 de outubro de 2016

4169) A arte do improviso (12.10.2016)



(busto de Antonio Marinho, em São José do Egito, PE)


Para quem é músico, o improviso é o solo instrumental feito na hora, com um mínimo de preparação, acompanhando a cadência rítmica e a sequência harmônica que o resto da banda está segurando, e, a partir disso, com liberdade total para inventar.

Para quem é cantador de viola, improviso é o verso pensado e cantado quase no mesmo instante, o verso quente, pegando fogo, forjado no toma-lá-dá-cá das sextilhas alternadas. O desafio instantâneo, onde, como me disse inesquecivelmente um cantador, “eu só sei o verso que fiz quando escuto minha boca dizendo”.

A verdade, porém, é que todos nós improvisamos o tempo inteiro quando falamos com alguém. São raros os casos em que “ensaiamos um texto” antes de ir conversar com quem quer que seja. Entrevista de emprego, pedido de noivado, reunião na firma, brinde em banquete... sim, às vezes a gente rabisca umas frases no papel, decora, repete, pra elas irem ficando maleáveis e darem a impressão de ser espontâneas.

Raramente dão: todo mundo pressente que é coisa decorada. Nossa prática constante do improviso é tal que geralmente percebemos de cara quando alguém está contribuindo com a conversa com um “texto pronto”, com frases trazidas de casa.

Achamos fácil improvisar porque nossa fala não tem restrições de métrica, rima, assunto, nada. Basta falar organizadamente o que vem à cabeça. Fazemos isso o dia todo, bem ou mal, a vida inteira. Somos os reis do improviso em prosa. (Está aqui um bom motivo pro cara ficar todo empavonado, como aquele personagem de Molière que a certa altura da vida descobriu que “falava em prosa”.)

O que chama mais a atenção nos improvisos da vida cotidiana é quando diante de uma situação inesperada a gente se sai com uma resposta perfeita, pensada em fração de segundo. Uma resposta que todos em volta percebem que não poderia ser adrede preparada, porque ninguém poderia prever o fato ou a frase que desencadeou a resposta.

É essa rapidez de raciocínio que a maioria dos cantadores tem, mesmo que não seja em verso.

Diz-se que Antonio Marinho estava em casa quando uma comadre dele, esposa de um tal Irineu, botou a cara na janela e perguntou: “Seu Antonio, o senhor viu Irineu?”, e ele em cima da bucha respondeu: “Não!  E fôro?...”

É uma dessas respostas geniais que só fazem sentido no contexto linguístico local. O diálogo, com a segunda-intenção projetada pelo poeta, é: “O senhor viu irem n’eu?”(=sexualmente), e a resposta: “Não!  E foram?...”

Vittorio de Sicca contava um episódio engraçado do início de sua carreira teatral. Jovem e desempregado, arranjou uma “ponta” numa peça, fazendo o criado que a certa altura entrava em cena para entregar uma mensagem ao Conde, algo assim. Sem comer há três dias, Vittorio vestiu a libré e entrou no palco. Quando viu a platéia, o famoso Monstro de Mil Rostos, deu-lhe uma turica e ele desabou no chão, desmaiado. O ator que fazia o Conde, entendendo tudo, recolheu o bilhete que ele tinha na mão, ergueu-o nos braços e levou-o para a coxia, comentando na direção da platéia: “Ora, ora, preciso esconder a chave da minha adega.”

Isso é um desses milhares de improvisos brilhantes que toda noite acontece nos teatros, mundo afora. A reação improvisada pelo ator foi necessária devido a um imprevisto; uma resposta rápida, e à altura. Marca de um ator que, sem sair do personagem, está consciente de tudo em volta.

Improvisos desse tipo acabam no entanto se vendo desvalorizados pela mania dos “cacos”, frasezinhas ausentes do texto que alguns atores enfiam no diálogo o tempo inteiro para deleite da platéia, e que de improviso geralmente não têm nada.

O verdadeiro improvisador dá um nó num pingo dágua em pleno trajeto entre a torneira e o chão.

É como o sertanejo da história contada por Dantinhas Vilar.  Era caçador e mentiroso. Tudo que ele dizia a mulher dele confirmava. Uma vez, tarde da noite, com a sala cheia de amigos, ele falou que tinha caçado uma marreca na lagoa.

- Não foi, Fulana? – perguntou.

- Foi, - disse ela, que estava sonolenta, distraída. – Ele caçou uma macaca.

Houve aquele silêncio, e um dos circunstantes perguntou:

- Macaca?!  Como assim?

- Ah, rapaz, não te conto. É porque eu construí um corredor de estacas entrando na lagoa pra ajudar o gado a descer pra beber. Aí apareceu do mato uma macaca que tinha o costume de correr por cima das pontas das estacas, ficava indo e voltando. Aí eu dei um tiro numa marreca, e pegou na macaca.

Quando os amigos foram embora ele falou pra mulher:

- Da próxima vez que você me obrigar a construir um corredor de estacas a essa hora da noite, eu lhe dou uns cascudos.







domingo, 9 de outubro de 2016

4168) O suspense e o spoiler (9.10.2016)




Já comentei aqui no blog (http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/10/2700-spoilers-29102011.html) uma pesquisa com leitores de contos em que era avaliada a reação de leitores a uma história dramática quando alguns já sabiam o desfecho do enredo, e outros não.

“Estudos comprovaram” que a apreciação de uma obra não era prejudicada pelos “spoilers”. Ao contrário. As pessoas (de um modo geral) se envolviam mais e ficavam mais satisfeitas quando eram avisadas antes da leitura, por um texto introdutório, de como a história iria acabar.

“Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação.”  

(Digressão: Palavrinha chata de traduzir, essa tal de “spoiler”. O spoiler é um trecho falado ou escrito, um fragmento qualquer de informação (foto, capa de livro, etc.), que revela um segredo da história, algo que em princípio o leitor deveria ignorar até o momento; a grande revelação. Dizer como, em português? “Estraga-prazeres”, “desmancha-prazeres”? Estes termos se referem a quem faz a revelação, não ao texto onde a revelação é feita.)

Temos uma mente teleológica, uma herança por um lado da tradição greco-romana de filosofia, direito, etc., e por outro lado da visão-do-mundo judaico-cristã. Tudo converge para uma Redenção final.  O Universo pode ter começado com um ganido, mas tem que acabar num Big Bang.

Somos (o Ocidente) uma civilização linear. Nossa noção de Tempo é um vetor, uma seta orientada, encaminhando-se ao longo de uma dimensão do espaçotempo.  E temos uma espécie de obrigação moral de fazer com que tudo tenha começo, meio e fim. A mais básica definição de “história”, conto, novela, etc., inclui este aspecto. Um começo, um meio e um fim – e sempre nesta ordem. (Jean-Luc Godard sugeria usar todos três, mas misturados.)

Qual a diferença, então, entre uma história sem spoiler e com spoiler?

Quem não gosta de spoiler é porque prefere a surpresa, a incerteza, o mistério impenetrável que se resolve no fim, ao longo de duas ou três páginas. Gosta de ir até os 95% do livro mantendo vivas na mente várias hipóteses que se excluem mutuamente, até ficar sabendo qual delas prevalece. No clímax, o mistério colapsa numa solução. The End.

Quem não se preocupa muito com o spoiler não tem como prioridade saborear a resolução do mistério. Talvez goste de adentrar esse universo já pisando com os coturnos da certeza.

Ao iniciar a leitura de um romance policial sabendo que o assassino é o jardineiro da casa vizinha à da vítima, o leitor se despreocupa de tecer hipóteses sobre os outros personagens, e pode muito bem extrair um prazer de outra natureza ao ver a dissimulação do criminoso ao ser interrogado, e ao acompanhar o modo como o cerco se fecha sobre ele. Esse leitor é uma espécie de deus, que já enxerga o futuro lá de seu camarote.

Para algumas pessoas, já-saber-o-final soma uma camada de interesse a mais ao longo da leitura, que deixa de ser uma leitura em-aberto, de um texto onde qualquer coisa ainda pode acontecer. E passa a ser um texto com final visível (pelo menos nesse aspecto: “o assassino é o pai da moça”) e onde se desenrola um novo tipo de jogo. Esse leitor, mais bem informado, não se deixa manipular tanto pelo autor quanto um leitor inocente, sem-saber-ainda.

O filme A Chegada (“Arrival”) de Dennis Villeneuve (baseado num conto de Ted Chiang) imagina uma raça de alienígenas que tentam se comunicar conosco. A protagonista do conto percebe que as frases com que eles tentam se comunicar só revelam seu sentido completo quando chegam ao fim, como se só então o sentido pudesse ser visível. Como aquelas longas frases em alemão onde o verbo só é revelado no fim.

Ela compara isto ao fenômeno da refração da luz na água. Um raio de luz, ao mudar do ar para a água, de densidade bem diferente, muda de direção e acha instantaneamente o rumo que lhe será mais econômico em termos de deslocamento. Ou seja: ela encontra a distância mais curta entre os dois pontos, o ponto onde toca a água e o ponto onde chega no final.

O cálculo estava pronto?, pergunta ela. O raio de luz já sabia que ia incidir numa lâmina dágua, e já partiu num ângulo exato de tocá-la no ponto necessário, calculando uma refração que ainda não aconteceu?

É esse o tipo de visão do leitor do livro de mistério que já sabe como termina. Ele já avista o ponto onde ainda não chegou (“o assassino de todos é o juiz”), mas ele vai direto para lá. É uma leitura diferente, sabendo o verdadeiro sexo do personagem A, ou como saiu o assassino do quarto fechado B, ou quem foi o espião que ganhou uma guerra na aventura C.






quinta-feira, 6 de outubro de 2016

4167) Dicionário Aldebarã XIII (6.10.2016)




(ilustração: Hannes Bok)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.


“Slikh-slikh”: Pequena serpente multicolorida, inofensiva, que se esconde nas frestas das paredes e é muito procurada pelas crianças para servir-lhes de pulseira, colar, etc.

“Noribsin”: Frutas artificiais de massa caseira, preparadas para os dias festivos, combinando o sabor de uma fruta natural e o formato de outra: um “abacaxi” com sabor de morango, uma penca de “bananas” com sabor de goiaba, etc.

“Kolupa”: A situação de impasse, numa negociação, quando cada um dos oponentes possui um elemento indispensável para a solução do problema mas se recusa a compartilhá-lo com os demais.

“Essondiran”: Fórmulas rimadas e ritmadas que são recitadas em uníssono por amigos quando se reencontram depois de muito tempo, para mostrar que a amizade continua a mesma.

“Giunk”: Dieta mágica que consiste em comer, durante uma semana inteira, apenas alimentos cujos nomes tenham a letra inicial do nome da pessoa: bife, bacon, brócolis, berinjela, bruschetta, banana...

“Harnaplon-Kok”: Casas pertencentes a uma mesma família, dando as frentes para ruas diferentes, mas situadas fundos-com-fundos e partilhando um quintal e às vezes uma cozinha em comum.

“Valagium”: jogo que usa complicados esquemas numéricos e alfabéticos para sortear  voluntários, que se comprometem por contrato a cumprir ou aceitar o que lhes couber.

“Litarns”: Tigelas colocadas no centro da mesa, durante as refeições, e onde todos vão depositando cascas de frutas, ossos, etc. à medida que comem.

“Nhossub”: Espécie de vinho barato que traz um prêmio diferente escondido em cada garrafa, a ser quebrada pelos colecionadores desses pequenos brindes. Alguns colecionam as garrafas intactas com o prêmio dentro, visível ou não.

“Ankh-nog-tian”: Pequenos episódios de infância de alguém, eternamente recontados pela família, que vê neles um sinal premonitório qualquer.

“Umpends”: O hábito de alguém distribuir por vários bolsos da roupa o dinheiro que carrega, para diminuir o prejuízo caso seja roubado.

“Khavid’: Pacto de fidelidade entre um homem e uma mulher, casados com outras pessoas, que se prometem um ao outro quando um dia ambos estiverem livres dos seus votos.

“Lo-Habug”: Qualquer situação, em casa, na vida social, na política, em que alguém é forçado a elogiar alguma coisa de que não gostou, devido a um motivo de força maior.

“Maham-puya”: o limite final de pequenas irregularidades que se pode cometer impunemente sem fazer soar os alarmes da lei.

“Thecoor”: pequenas áreas, em cada aposento, reservada aos animais domésticos, que são treinados para usarem apenas aqueles trechos. Cães têm acesso apenas à mesa do jantar. Gatos às cadeiras e sofás.

“Sarinium”: misto de festividade e torneio de contadores de histórias em que era preciso fazer rir a platéia inteira ao mesmo tempo, num prazo combinado.

“Gamp-Gum”: o andar agressivo, mesmo que discreto, de quem sai à rua para praticar um assalto.








segunda-feira, 3 de outubro de 2016

4166) Filme de ilha, de trem, de tesouro (3.10.2016)



A criação de gêneros cinematográficos ou literários não se faz cientificamente, na mesa de reuniões de um colegiado de críticos. É o pessoal envolvido que acaba criando de forma aleatória. Diretores, jornalistas, distribuidores, produtores, espectadores. Em geral são definidos pela presença de alguns elementos estruturais ou temáticos.

Com o aumento da produção e principalmente da circulação de filmes, surgem os subgêneros, e estes constituem enclaves com centenas de títulos.

Quando eu era pequeno, a gente dizia: “Eu gosto de filme de guerra”.  Todo mundo sabe o que é filme de guerra. Nessa época a que me refiro, o que conhecíamos do gênero eram, esmagadoramente, filmes norte-americanos sobre a II Guerra Mundial.

Mas aí aparecia um e dizia: “Eu também, mas só se for filme de submarino”. E também tinha “filme de bombardeio”, como As Pontes de Toko-Ri (1954) de Mark Robson. E “filme de trem” (trens numa situação de guerra, subentende-se) como O Trem (1964) de John Frankenheimer.

Podemos, por outro lados, criar gêneros mais amplos, menos focalizados. Filmes que tenham em comum um só elemento, talvez, mas que esse elemento seja uma parte essencial da sua história, do seu enredo.

Os narratólogos pesquisam, por exemplo, variantes do “Problema dos Três Desejos”, a famosa parábola da pessoa que recebe o direito (por alguma agência sobrenatural: gênio da lâmpada, objeto encantado, feitiço, etc.) de fazer três pedidos. Esta situação quase sempre redunda na pessoa sofrendo um castigo por essa ambição de querer tudo fácil demais. Como não achar que o Three Wishes Problem possa constituir um gênero em si?

A ficção científica é uma jângal amazônica convidando à floração de subgêneros: a Invasão da Terra, o Primeiro Contato, a Viagem no Tempo... São dezenas, e cada um com centenas de exemplos.

Tudo pode ser um gênero, desde que haja exemplos em quantidade convincente e de semelhança indiscutível.

O gênero policial-detetivesco surgiu quando Edgar Allan Poe propôs, implicitamente, com alguns contos seus: por que não escrever milhares de histórias sobre crimes misteriosos e o esforço de decifrá-los?

A literatura policial é um gênero? Sim, mas eu diria que subgêneros internos como o Crime do Quarto Fechado já têm bibliografia para encher uma biblioteca inteira. São especializações de certas funções narrativas: o interesse do autor por elas as sobrepõe a todas as outras.

Podemos pensar, portanto, em gêneros definidos por um conceito apenas, deixando em plano secundário época, ambientação, caracterização de personagens, etc.

“Filme de Serial Killer” é um novo subgênero, que se projetou de dentro do “filme policial” de forma notável nos últimos 20 anos. Antigamente aparecia de tantos em tantos anos um título como O Estrangulador de Rillington Place ou Frenesi ou O Abominável Dr. Phibes.

Tudo mudou depois que O Silêncio dos Inocentes (1991) ganhou o chamado Big Five, os cinco prêmios principais no Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro, Melhor Ator e Melhor Atriz.  Todo mundo convocou uma reunião às pressas e disse: “O negócio agora é serial killer,” e pronto, ninguém aguenta mais.

Por exemplo, poderíamos dizer que existe de agora em diante um gênero chamado A Vingança É Um Prato Que Se Come Frio, e quantas centenas de faroestes, thrillers, tacalepau de ação e aventura, horror gótico, não se encaixariam confortavelmente nessa rubrica? Vejo nesse tumulto de vendetas sutis os rostos de Vincent Price, Robert De Niro, Marlene Dietrich, Bette Davis, Jean Gabin, Jeanne Moreau, Sissy Spacek, Conrad Veidt...

Podemos batizar um gênero de: Pessoa Antipática Chega a Lugar Simpático que a Transforma Em Gente Boa. Assim de cara não lembro nenhum exemplo, mas se passar seis meses assistindo a Sessão da Tarde eu trago uns trinta.

Há um gênero famosamente batizado e descrito por Robert Heinlein: “A Man Learns Better”, algo como “Um Cara Aprende Uma Lição Pro Resto Da Vida”. Tem tema melhor do que esse?  Pode ser FC ou espionagem, pode ser romance-mulherzinha ou horror-gráfico, pode ser faroeste ou medieval, pode ser história de amor, de dinheiro, de poder, de sexo, de droga, de rock and roll. Não importa: dentro da história, “alguém aprende uma lição pro resto da vida”.

Eu poderia pegar um filme e defini-lo como a obra mais típica de um gênero.

Vou pegar como exemplo mais à mão um filme com o recentemente falecido Gene Wilder, O Expresso de Chicago (Silver Streak, 1976) dirigido por Arthur Hiller. É uma trama policial que transcorre durante a longa viagem do trem epônimo de Los Angeles para Chicago.

Ele pertence ao gênero: Filmes Sobre Pessoas Tentando Jogar Outras(s)Pessoa(s) Para Fora de Um Trem e Conseguindo Ou Não.

Parece bobagem? O gênero inclui desde Era Uma Vez No Oeste (1968) até O Imperador do Norte (1973), desde A General (1926) com Buster Keaton até esta comédia interpretada por Gene Wilder onde durante a longa viagem cruzando a América ele se apaixona por uma passageira, presencia um crime, envolve-se numa intriga que não lhe dizia respeito, e é jogado para fora do trem não menos que três vezes.

Todo este papo pode parecer ocioso, mas não é. A cada década que passa os saites de cinema (e futuramente os saites de literatura farão o mesmo) se dedicam a criar subdivisões cada vez mais especializadas para atender consumidores cada vez mais específicos.

“Romance Adolescente Contemporâneo com Vampiros e Lobisomens” podia não ser um gênero oficial, há dez anos, mas agora é. É mais uma peneira de reter outras obras e só deixar passar as que são divisíveis por esse algoritmo.


Especializações desse tipo brotam no interior dos gêneros convencionais, ao sabor das opiniões dos críticos e do sucesso junto ao público. Se começarmos de fato a cruzar fórmulas desse tipo, vamos poder a certa altura dizer: “Hoje quero ver um policial urbano com história de vingança, elementos sobrenaturais, triângulo amoroso e protagonista amnésico”.  E vai haver.