quinta-feira, 30 de julho de 2020

4605) Notas de uma tradução de Edgar Poe (30.7.2020)




“The Murders in the Rue Morgue” é um dos primeiros contos que li de Edgar Allan Poe, e foi na antologia Maravilhas do Conto Policial (Ed. Cultrix, 1960, 3ª. edição), organizada por José Paulo Paes. Fico em dúvida se terá sido antes de “O Poço e o Pêndulo”, também um dos meus preferidos, que li numa antologia do conto norte-americano por essa mesma época.

Tive a chance de traduzir esse conto agora, quase sessenta anos depois. Claro que o reli várias vezes depois da primeira, tanto em português quanto em inglês. Mas quando temos a incumbência de traduzir um conto bem conhecido, vem à nossa mente uma sensação que por causa de Jorge Luís Borges fiquei chamando “a Síndrome de Pierre Menard”. Pierre era aquele crítico e escritor francês que tinha lido anos atrás o Dom Quixote e resolveu reescrevê-lo de memória, na esperança de suas frases coincidissem com as de Cervantes!

Traduzindo a “Rua Morgue” agora, tirei minhas dúvidas consultando as duas primeiras traduções de Poe que li, na adolescência: aquela tradução de José Paulo Paes, e depois a de Oscar Mendes e Milton Amado, para a Poesia e Prosa de Poe, pela Editora Globo. Olhei também a tradução francesa de Baudelaire, fartamente anotada e comentada por Léon Lemonnier (Paris: Garnier, 1946).



Anotei alguns detalhes que me chamaram a atenção.

1)

Poe faz, no trecho inicial do conto, uma breve dissertação sobre o pensamento analítico, e diz a certa altura:

The faculty of re-solution is possibly much invigorated by mathematical study, and especially by that highest branch of it which, unjustly, and merely on account of its retrograde operations, has been called, as if par excellence, analysis.

Traduzi assim:

Esse talento para a re-solução pode ser muito fortalecido pelo estudo da Matemática, especialmente aquele seu ramo mais elevado que injustamente, e somente por conta de suas operações retroativas, tem sido denominada de “análise” par excellence.

Poe destaca o prefixo em “re-solution” e nesses casos acho que convém fazer o mesmo, chamando a atenção para o mesmo detalhe. (JPP traduz: “A faculdade de resolver”; OM-MA: “Essa faculdade de resolução”, com itálico).

Em todo caso, o ponto principal nesse trecho está quando o autor se refere às “retrograde operations” da análise. OM-MA traduzem como “operações retrógradas”, quando me parece mais esclarecedor usar “retroativas”.

A palavra “retrógrado”, em português, não deixa de estar correta – em astronomia falamos no “movimento retrógrado de Marte”, naqueles trechos da órbita da Terra em que a velocidade aparente do nosso planeta é maior, e o outro parece andar para trás.

Mas essa palavra acabou adquirindo um uso frequente, na linguagem cotidiana, com conotação moral pejorativa: “Fulano é um sujeito de mentalidade retrógrada; as leis e os costumes retrógrados desses países; etc.”

Se nos referimos aos processos de análise dos fatos, em suas relações de causa e efeito, “retroativas” é melhor (é assim que JPP traduz). Todo este arrazoado inicial de Poe serve para nos predispor a entender o episódio, que vem em seguida, de quando C. Auguste Dupin adivinha o pensamento do amigo, enquanto caminham de madrugada, e reconstitui de trás para diante os pontos sucessivos de sua associação de idéias.


2)

Eu sempre fantasiei nas minhas leituras o primeiro encontro do narrador (o “watson” de Edgar Poe) com o detetive Dupin numa livraria, os dois de dinheiro em punho, disputando um livro. Por que?  O conto diz, no original:

Our first meeting was at an obscure library in the Rue Montmartre, where the accident of our both being in search of the same very rare and very remarkable volume brought us into closer communion.

José Paulo Paes traduz:

Nosso primeiro encontro teve lugar numa obscura livraria da Rua Montmartre…

E Mendes & Amado traduzem:

Nosso primeiro encontro se deu numa escura livraria da Rua Montmartre...

Foram as duas primeiras traduções do conto que li na vida. Somente agora, pela primeira vez, esta lebre ergueu as orelhas e emitiu um miado inconfundível. Porque “library”, para nós, é biblioteca, e não livraria. Se fosse esse o interesse de Poe ele teria provavelmente usado “bookshop”.

E me pareceu muito mais redondo o fato de duas pessoas estarem buscando o mesmo livro “obscuro” numa biblioteca do que numa livraria. “Library” é sempre biblioteca em inglês, pelo que me consta. É só nas línguas românicas ou latinas que manteve o sentido de “loja onde se vendem livros”: librairie em francês, libraria em italiano, librería em espanhol.

Baudelaire traduz:

Notre première connaissance se fit dans un obscur cabinet de lecture de la rue Montmartre...

E dei-lhe total razão, não menos pelo fato de que instantaneamente visualizei a cena no Gabinete Português de Leitura, junto à Praça Tiradentes. E ficou assim:

Nosso primeiro encontro foi numa obscura biblioteca na Rua de Montmartre, onde por acaso estávamos ambos à procura do mesmo volume, muito raro e fora do comum; essa coincidência nos aproximou.



 3)

As leituras paralelas que se faz ao longo de uma tradução nos ajudam a escolher melhor o vocabulário a ser usado, chamando nossa atenção para detalhes que de outro modo poderiam passar despercebidos.

Dupin, na reta final da história, explica ao narrador o modo como suas deduções o levaram ao caminho certo, ou seja, a entender de que modo o assassino, depois de cometer os crimes, pudera fugir do quarto deixando-o aparentemente trancado por dentro.

Ele reconstitui suas deduções, explica o exame que fez em cada uma das pistas, e diz a certa altura:

You will say that I was puzzled; but, if you think so, you must have misunderstood the nature of the inductions. To use a sporting phrase, I had not been once ‘at fault.’ The scent had never for an instant been lost.

“At fault”: diz-se do cão que perdeu o rastro da caça.

Para me distrair, eu estava consultando nas horas vagas um dos livros mais enriquecedores sobre este tema: The Mystery to a Solution – Poe, Borges and the Analytical Detective Story, de John T. Irwin (Johns Hopkins University, 1994).

No capítulo 21, ele faz uma análise fascinante deste conto, comparando as palavras “clue” (“pista, em inglês), “clew” (“novelo de linha”, em inglês) e “clou” (“prego”, em francês), e reunindo o mito de Teseu e o Minotauro ao conto de Poe e a “A Morte e a Bússola” de Borges.

E ele chama a atenção justamente para esse trecho de Poe, mostrando que num sistema quase subliminar, falando em “caça” e em “faro”, Poe começa a colocar na mente do leitor a idéia de que é um animal, que está sendo caçado. O assassino é um animal, não um ser humano.

Ficou assim:

Você dirá que eu fiquei desconcertado; mas se pensar assim terá entendido mal a natureza das induções. Para usar uma frase cara aos caçadores esportistas, eu não estava “em falta’. Meu faro não havia perdido a pista nem por um instante.

Não achei nos glossários por aí nenhuma expressão de caça que pudesse se equivaler a esse “em falta”, acabou ficando uma tradução literal, meio limitada. Mas deu para me pegar com “scent” e manter viva a metáfora da “caça ao animal”.


4)

Aqui aconteceu um fato interessante, porque um comentário feito por Poe em seu texto original poderia até parecer, a um leitor desatento, ser um comentário interpolado por enchirimento do tradutor.

Referindo-se ao crime bárbaro que é o tema do conto, o jornal citado por Dupin expressa-se desta maneira:

“The Tragedy in the Rue Morgue.—Many individuals have been examined in relation to this most extraordinary and frightful affair” [the word affaire has not yet, in France, that levity of import which it conveys with us].”  (Nota: “affaire” é francês, “affair” é inglês.)

O texto de Poe é norte-americano, mas se passa em Paris. Ele provavelmente escolheu a França para dar um “distanciamento brechtiano” a um conto em que, mais do que a verossimilhança social de um ambiente, importava a mecânica interna dos acontecimentos (Brecht falava da Alemanha ambientando suas peças na China, no Cáucaso, na América.)

O texto, portanto, é cheio de expressões e citações francesas. Quando Poe repete a expressão que teria sido usada por um jornal francês, “affair”, ele se sente obrigado a fazer uma pausa e explicar, para seus leitores da Filadélfia em 1841, que a palavra está sendo usada noutro sentido.

E lembrei que hoje em dia não se pode abrir um portal de notícias ou uma revista sem encontrar essa palavra em manchetes como “Anitta exibe seu novo affair na Ilha de Caras”, ou “Neymar e modelo saem juntos mas negam affair”.

Inglês, francês e português mantêm um toma-lá-dá-cá permanente de significados e nuances, e não são poucas as vezes em que um tradutor precisa abrir mão de uma palavra perfeitamente aceitável do vernáculo brasileiro porque sabe que, naquele ano, naquela década, essa palavra está contaminada de conotações que farão estourar, mesmo por um segundo, a estrutura-da-bolha-de-sabão em que se baseia a crença do leitor.

Mais rara ainda é a chance de deixar que o próprio autor faça essas ressalvas em nosso nome. Ficou assim:

“Muitos indivíduos foram interrogados com relação a este extraordinário e aterrorizante affair” (a palavra affaire ainda não adquiriu, na França, a frivolidade de sentido que assumiu em nossa língua).”












segunda-feira, 27 de julho de 2020

4604) Palavras do Dicionário Paraibano (27.7.2020)




(xilogravuras: Stenio Diniz, Juazeiro-CE)

Uma confusão frequente de quem tenta se comunicar com um nordestino é o fato de que há inúmeras palavras da língua portuguesa que no Nordeste (ou em certas partes do Nordeste, região mais heterogênea do que se pensa) se usa de outra forma.

Esses usos, de palavras aparentemente banais, são tão tipicamente nordestinos quando termos tipo “oxente”, “gota serena” ou “amulestado”. Já referi neste blog termos como vexado – que no Sudeste significa “constrangido, envergonhado” e no Nordeste quer dizer “apressado”.

Aqui vão mais alguns desses “falsos amigos” que nos levam a ouvir uma coisa e entender outra.


MANEIRO
No Rio, é uma gíria relativamente recente (falo de quinze a vinte anos para cá) para dizer “bacana, legal, ótimo”. No Nordeste, quer dizer “leve”. 

“Deixe eu carregar a mala grande, você leva essa valise que é mais maneira”. 

“Ele falou que o baú era bem maneirinho, mas precisou de três pessoas pra botar em cima da caminhonete”. 

Depois de sessenta dias
alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
em seu pavão tão maneiro
desceu pela mesma trilha
a seu modo traiçoeiro.

(João Melquíades Ferreira, Romance do Pavão Misterioso)

Menina, minha menina,
me escuta, qu'eu te carrego,
ai, me bota dentro do seio
ai, qu'eu sou maneiro e não peso.

(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 105)


ENGUIÇAR
Em todo lugar do mundo, “enguiçar” é “dar pane, dar defeito”, e se aplica a um carro, um motor, uma máquina qualquer.

No Nordeste, é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas de alguém que está sentado no chão.  Diz a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desenguiçar”, desfazer o ato, passar de trás para diante. 

“--Ei!  Que história é essa de vir entrando e enguiçar a gente?  Pode voltar, e desenguiçar!”

Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra mau-olhado. 

“Esse menino só vive doente ultimamente!  Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”

E ali com um punhal
para Adriano avançou
mas Adriano ligeiro
por cima dele saltou
então quando o enguiçava
mesmo no vão lhe cravou.

(Expedito Sebastião da Silva, “Adriano e Joaninha”, em Expedito Sebastião da Silva, Ed. Hedra, SP, pag. 165)




RAZÃO
Usa-se muito como sinônimo exato de "arrogância, prepotência":

"Ei, que razão é essa?  Quem é você pra vir me dar ordens?"  

"Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior razão do mundo, botando defeito em tudo."  

É mais frequente na expressão "cheio de razão":

"Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela mesa era dele."   


ABUSAR
O sentido mais comum hoje em dia tem a conotação de “abusar sexualmente, violentar”. Acho que a palavra vem de “ab + usar”, que significa algo como “usar excessivamente, extrapolar, ultrapassar os limites”. É essa a idéia base, e os usos particulares de cada ambiente social vão transferindo a palavra de um sentido para outro.

No Nordeste usamos o verbo como “enjoar, ficar saciado”.  Usa-se com diversas regências:

"Depois que eu abusei futebol, estou há mais de dez anos sem pisar num estádio". 

"Eu abusei daquele bar, porque os garçons tratam muito mal a gente". 

"O doce-de-leite que minha mãe faz é bom, mas abusa, eu só aguento comer um pratinho e pronto".  

Existe o provérbio "Tudo de mais abusa".  

Pinto fêz coisas difíceis
de outra pessoa fazer:
fez o tempo lhe esperar
e a morte lhe obedecer,
só aceitou ir com ela
quando abusou de viver.

(Zé Luiz, cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág. 269)




RAPOSA
Não sei que associação de idéias está por trás disso, mas “raposa” é um modo de comer feijão com farinha, amassando-o entre os dedos até formar pequenos bolos bem compactos; muitas mulheres preferem alimentar os filhos pequenos assim, em vez de com a colher. 

“Se lembre bem: quando chegar na casa do seu tio não é pra comer o feijão feito raposa não, é com o talher!” 

Também se chama “cancão” e "capitão".  


FEITO
Usa-se na mesma função de “como”; termo de comparação. 

“É uma comida esquisita, feito um pirão frio, temperado”. 

“Ele estava usando um troço de metal na cabeça, feito um capacete.” 

“Fiquei ali feito um idiota, e todo mundo mangando de mim.”



APITAR
Em todo canto “apitar” é soprar um apito. Em cresci ouvindo essa palavra como sinônimo de “buzinar” (o carro).  Já foi de uso generalizado no Nordeste, mas está desaparecendo nas últimas décadas, pelo menos nos ambientes por onde eu ando. 

Quando você chegar lá em casa, apite, que eu desço rapidinho”. 

“Olha que coisa, o cara passou direto no sinal vermelho, nem apitou nem nada”. 

“A coisa que eu tenho mais raiva é esse tipo de alarme que basta a gente encostar num carro e ele passa dez minutos apitando”.


RISCAR
Chegar de repente, às pressas. É uma imagem bem concreta, de quem chega fazendo atrito no chão, freando um carro, uma bicicleta, pisando com força etc.

“Eu já estava desistindo de esperar e ia chamar um táxi, mas quando deu sete e meia ele riscou com o carro lá em frente, falou que tinha ficado preso num engarrafamento”.

Ela aí chamou o rei
Ligeiramente mostrou,
O rei também conheceu
Bastante se alegrou,
Bem na porta do palácio
O seu cavalo riscou.

Do seu cavalo apeou
Para no palácio entrar
Já o rei e a rainha
Vieram lhe encontrar
Levaram ele nos braços
Para a saudade matar.

(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 112)



TIMÃO
Acho que no Brasil todo essa palavra já perdeu o sentido original de “a roda que se usa parar manobrar o leme e dar direção ao barco” e passou a ser visto como o apelido do time do Corinthians paulista. Cujo símbolo visual, aliás, é um timão, uma roda-do-leme.

No Nordeste é o termo (em desuso) que se dava a um tipo de camisão comprido, usado antigamente pelas crianças. 

Meia comprida,
não quer mais sapato baixo
vestido bem cintado
não quer mais vestir timão.
Ela só quer,
só pensa em namorar.

(Luiz Gonzaga, O Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas)


TORNAR
O sentido mais comum é de voltar, vir de volta, repetir uma ação (“Ele tornou a ligar para casa, mas ninguém atendia”. No Nordeste se usa como “voltar a si, recuperar a consciência”. 

"Minha mãe se sentiu mal na fila do banco, aí, quando tornou, estava deitada num sofá na sala do gerente, e ouviu uma moça dizendo: 'Tá viva, graças a Deus!'"

Quando acordei do "ataque", da "grande aura" que só acomete os gênios, Margarida estava sustentando minha cabeça em seu colo alvo e aristocrático, e um Soldado de Polícia esperava, impassível, que eu "tornasse", para me dar um copo d'água que ele segurava na mão, mantendo o resto do corpo em posição de sentido.
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXIV)



FITEIRO  
No Nordeste é substantivo, e corresponde ao que no Sudeste seria chamado de “quiosque”, “barraca” (na forma de tendas metálicas desmontáveis e portáteis, cobertas por uma lona ou um plástico): um pequeno ponto de venda de miudezas como brinquedos, cigarros, utilidades caseiras, balas, chocolates, flâmulas, e ocasionalmente revistas.

Geralmente na forma de uma estante de madeira, com portas que podem ser trancadas a cadeado, encostada num muro, na calçada. Não é exagero imaginar que em algum momento ali também se vendiam fitas de tecido, coloridas, para enfeite.

“O nome dele é Zezinho, ele tem um fiteiro ali perto da esquina”. 

“Corre ali no fiteiro e vê se acha um cortador de unhas.”


A MULHER
É um modo de tratamento curioso, meio machista, que alguém usa para se referir à esposa.  Quando diz “a mulher” está querendo dizer “minha esposa”, mas esse tratamento me parece mais ríspido e distanciado do que dizer “minha mulher”, que mesmo impondo o sentido de posse implica também numa proximidade afetiva. Quando o cara diz “a mulher” é como se dissesse “aquela mulher que tem lá em casa, a que toma conta das coisas.

“Acho que eu vou pra casa, por que eu disse à mulher que ia jantar cedo”. 

“Ontem teve um barulho lá no quintal, a mulher acordou assustada, eu achei melhor avisar o vigia”.









sexta-feira, 24 de julho de 2020

4603) Seis desmemoriados (24.7.2020)




1
Bartolomeu Correia Juçá, 66 anos, foi encontrado vagando na Praça Nossa Senhora da Paz, no Rio de Janeiro, e levado a um asilo. Tinha um documento com esse nome e a data de nascimento, e só. Não lembrava quem era. Não estava no Google, nem na Previdência Social. Dizia apenas que de repente acordou e estava ali, não lembra de nada que lhe aconteceu antes. Assistentes sociais e jornalistas pesquisaram todas as pistas possíveis, e nada encontraram. Era como se o mundo também não lembrasse mais quem ele era.

2
Lazslo Sandoi, 38 anos, foi descoberto ao chamar a atenção dos guardas e dos guias do Rijksmuseum, de Amsterdam, porque todos os dias entrava ali, sempre trajando a mesma roupa, e se postava na sala das “casas de bonecas”, onde ficava olhando para elas e chorando. Abordado, não soube dizer quem era nem o que fazia ali. Quando as notícias e fotos saíram nos jornais, alguém o identificou: era húngaro, representante comercial, tinha ido à Holanda a trabalho, e até aquele episódio nunca tinha sofrido nenhum problema neurológico ou emocional. Levaram-no de volta ao seu país, sob terríveis crises de nervos, apaziguadas apenas quando os médicos lhe forneceram copiosas fotografias das casas de bonecas que desencadearam o processo.

3
A Menina do Patriarca, 10 anos aproximadamente. Encontrada na Praça do Patriarca (São Paulo), sem documentos, aparentemente em estado de choque. Roupas novas, de boa qualidade. Saúde perfeita. Dentes bem tratados. Não dava mostras de entender o que lhe perguntavam. Foi mostrada em todos os telejornais. Foi conduzida a um abrigo. Não aparentava problema mentais e eventualmente conseguiu executar por iniciativa própria tarefas como dobrar roupas e lençóis, folhear revistas (não dava indicações de saber ler, mas manuseava as páginas com evidente familiaridade). Não demonstrava iniciativa para alimentar-se, ir ao banheiro. Está assim há dezenove anos. Nunca falou uma palavra sequer.

4
Charles Aronne, 47 anos, industrial, residente em Toulouse. Depois de um AVC, perdeu a capacidade retentiva da memória e vive recluso em casa, onde passa os dias, os meses e o anos maravilhando-se todos os dias com a beleza e a solicitude de sua esposa Marianne, de seus filhos Michel e Sophie, e de todos os amigos que se revezam diariamente contando-lhe quem é, o que já fez, do que gosta, em que acredita. Uma ou duas vezes por ano equipes de TV francesa e estrangeira vão entrevistá-lo: as entrevistas, vistas uma após a outra, parecem ter sido concedidas por diferentes pessoas, pois em cada época Aronne dá mostras de estar compondo uma identidade para si próprio a partir das conversas mais recentes que teve com as pessoas que lhe são próximas. Teve que reaprender a assinar o próprio nome, para poder firmar os documentos que os sócios trazem à sua casa.

5
Patrício Morais de Lautério, 49 anos, funcionário público, Belém do Pará. Aposentou-se por invalidez depois de ataques de amnésia que prejudicavam sobremaneira seu trabalho na repartição, e seus contatos com a família. Atualmente mora em casa, rodeado por parentes. Depois de vários dias em que está aparentemente normal, ele acorda sem saber quem é, mas acometido de um curiosidade intensa sobre os objetos em volta. Pergunta à família para que serve o travesseiro, o chinelo, a janela, a gaiola com pássaro, o prédio em frente. Pergunta a cada pessoa quem é, o que faz, do que gosta, que comidas prefere, que tipo de música escuta, qual sua cor favorita, que livro levaria para uma ilha deserta.  Não dá mostras de reconhecer a família, mas é gentil com todos. Isso dura um dia inteiro, até o próximo sono, do qual desperta normal e com um pouco de enxaqueca. Depois de mais de um ano de exames, os médico constataram que esses ataques ocorrem exatamente de 39 em 39 dias, mas além disso nenhum outro dado científico foi comprovado.

6
Lenny Grady, 40 anos, bluesman de Nashville, perdeu completamente a memória num acidente de carro aos 36 anos, mas foi cuidado com desvelo pela esposa Geraldine e pela filha Suzanne, até conseguir um relativo grau de autonomia. Perdeu a capacidade de falar e de lembrar as informações mais elementares, e durante meses permaneceu em casa, vagaroso, meio cambaleante, afável, sorridente, distraído, mas capaz de manter o próprio asseio e de se alimentar sozinho. Certo dia, um amigo o visitou levando o violão e nesse momento ele pareceu despertar parcialmente, pediu o instrumento e começou a cantar, meio hesitante, com a voz “enferrujada”, mas improvisando versos com relativa fluência para alguém naquele estado. “Nunca esquecerei aquele momento,” disse Suzanne, “quando ele dedilhou as cordas e me agradeceu pelo hamburger que eu lhe servira uma hora antes, dizendo apenas que estava muito apimentado, e estava mesmo, aquilo foi como um raio de luz numa noite escura, e desde esse dia tudo que ele quer dizer ele diz cantando... Só não lembra de nenhuma das músicas que fez.”













terça-feira, 21 de julho de 2020

4602) "Dark", temporada 3 (21.7.2020)




Vou começar com a coisa que eu detestei na série Dark: aquele insuportável clichê da pessoa que acorda de um pesadelo sentando na cama, arquejante, com os olhos arregalados, a boca aberta. Usar isso uma única vez, pra mim, já é um defeito grave. O diretor usa em praticamente TODOS os episódios da série, às vezes repetindo no mesmo episódio. É um dos clichês mais desgastados da História do Cinema. Como é que isso passa pelas mãos de uma equipe inteira e ninguém questiona?!  Não tem perdão.

Esse “macete” de fingir que uma coisa horrível está acontecendo e depois dizer: “Era só um sonho! Brincadeirinha!” é um erro elementar. Rarissimamente soma alguma coisa ao filme. Você obriga o espectador a investir sentimento, impulso emocional, e depois diz que estava mentindo. Nas próximas, o espectador não acredita, não investe emoção. Mesmo inconscientemente, ele hesita. Já foi enganado umas, duas, três, quatro, cinco vezes. Pra quer morder de novo a mesma isca?

Eu dou logo um passo atrás. Fico assistindo da calçada.

Um defeito grave são os diálogos. É quando a gente vê que falta uma referência de idéias mais ampla. Falta poltrona a esse pessoal, dizia uma professora minha, para indicar que faltava leitura.


A cada episódio, os personagens repetem uns para os outros a mesma ladainha: “Tudo está interligado: luz e sombra... vida e morte... o fim e o começo...”  São banalidades abstratas pomposas, como num livro de auto-ajuda. É por isso que em Hollywood usa-se muitas vezes contratar um cara para escrever o roteiro, e outro para escrever os diálogos. Porque sempre tem gente que só sabe fazer uma das coisas.

Não quero botar um peso muito grande nas costas da roteirista/criadora Jantje Friese: pelo que vi nas bios, é apenas o segundo roteiro dela, que antes de Dark tinha escrito apenas um filme. E cabe a ela, em princípio, o grande mérito da série, que é a combinação de uma idéia ousada, um desenvolvimento complexo, um trabalho braçal imenso, absurdo, de manter a continuidade de ação e de psicologia de 15 ou 20 personagens ao longo de 4 ou 5 ou mais épocas.


É um roteiro corajoso, ambicioso, e que deve ser louvado pelo que tem de bom, numa época em que todo mundo opta pelo feijão-com-arroz e tem medo de arriscar. Jantje Friese não teve medo, quis arriscar. Quando um malabarista está no picadeiro jogando e aparando 10 bolas, e duas ou três caem no chão, a gente tem que aplaudir, sim. Senão, estaríamos até hoje pagando para ver alguém fazer malabarismos com 3 bolas. 

Já falei aqui que o erro de Dark foi querer expandir demais a complexidade do enredo, ao invés de explorar melhor o território (já em si complexo) demarcado na Temporada 01. Na Temporada 02 já houve um difícil equilíbrio, e na 03 o que tivemos foi uma dispersão dramática entre uma porção de situações contraditórias que os personagens tinham que explicar o tempo inteiro uns para os outros – e para o público.

A série ganhou em complexidade, mas acabou perdendo em profundidade. A Temporada 03 teve momentos em que parecia que a gente estava assistindo um storyboard.

Tenho meia dúzia de perguntas mal-respondidas, mas nem vou tocar nesse assunto aqui. O elenco é quase todo muito bom. O casting, como já falei, é extraordinário. A direção tira leite de pedra em lidar com as situações obrigatoriamente repetitivas propostas pelo argumento (um risco muito grande, típico desse tipo de história, e assumido com consciência). 

A parte visual é também excelente, e dou uma nota 10 para o design das Máquinas do Tempo, todas elas. Todas têm algo de steampunk, de ciência gótica.



Fico imaginando que o sucesso da primeira temporada esticou desnecessariamente o restante. Pena que um sucesso semelhante não tivesse premiado uma das minhas séries preferidas, The Lost Room (Christopher Leone, 2006), mais misteriosa do que Dark, e que morreu depois de uma temporada e seis episódios, deixando mil mistérios no ar:


Falei, ao comentar a Temporada 01, que Dark é no fundo mais um folhetim com dramas de família. E de fato tudo gira em torno de quem casou, quem descasou, quem traiu, quem nasceu, quem morreu.



E todas essas histórias de Viagem no Tempo, curiosamente, giram em torno do nosso desejo de mudar o Passado. Ninguém volta ao Passado para rever os lugares que foram marcantes, como o velhinho seu-lunga do Morangos Silvestres de Bergman. Volta para interferir, volta para tentar corrigir erros, volta por esse inconformismo humano de nunca se dar por satisfeito e achar que a vida poderia ter sido perfeita, impecável, sem um erro sequer.

Ou que a História é uma batalha que ainda não cessou, que é possível voltar no tempo para matar Hitler ou salvar Abraham Lincoln. E o que muitas dessas histórias nos mostram é que não adianta. Você volta no Tempo, corrige um erro, e o erro volta a acontecer. O Universo é teimoso, não quer ser corrigido.

Como diz uma personagem de Dark: “As coisas podem não acontecer do mesmo jeito, ou no mesmo tempo, mas acontecem”. Quem traiu com A, trai agora com B. Quem chantageou C, agora chantageia D. Quem tem o vício X, está agora com o vício Y.  Detalhes assim só importam para nós; o Universo faz a concessão e segue em frente com seu tanque Panzer.


Há um conto de Lewis Shiner (“Voodoo Chile”, Asimov Magazine, julho de 1993) em que um fã de rock volta no tempo para evitar que Jimi Hendrix morra, como morreu, engasgado com o próprio vômito após uma noite de farra em Londres. Ele volta. Vai nos bares. Fica amigo de Hendrix, revelando coisas futuras (sem explicar por que) e ganhando a confiança do músico. Na noite fatal, dá um jeito de alguém cuidar de Hendrix. No dia seguinte, Jimi está vivo! Maravilha! Vamos comemorar!  Vão beber no bar de sempre e ao saírem, de madrugada, surge do nada um maluco e esvazia um revólver no autor de “If Six Was Nine”.

O que tem de acontecer, como se diz por aí, tem muita força.


(O diretor Baran Bo Odar e a roteirista/criadora Jantje Frieser)

Volto a louvar a roteirista/criadora Jantje Frieser por uma outra ousadia: a solução final que adota para a “guerra entre dois universos”. Para solucionar o “nó górdio temporal”, não adianta desatá-lo, é preciso voltar um pouco mais e cortar tudo, mesmo ao preço de que numerosas linhas temporais deixem de acontecer. (E ela foca a solução num personagem-chave que estava ali o tempo todo; não é um simples deus ex machina).

É a ousadia assustadora de Isaac Asimov num dos seus melhores romances, O Fim da Eternidade (1955). E é diferente do “sustozinho do pesadelo” que critiquei no início. Investimos nosso envolvimento emocional com personagens cuja vida, afinal de contas, será apagada. Mas é como dizia Drummond:

“Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente”.









domingo, 19 de julho de 2020

4601) Por que seguir as regras? (19.7.2020)




(São Luís-MA)


De vez em quando eu ministro (ou ministrava, quando o mundo era normal) “Oficinas de Poesia” e “Oficinas de Cordel” pelo Brasil afora. Onde a gente chega, encontra um público diferente, com diferentes níveis de informação sobre o que é “cordel”. Vou fazer uma “reconstituição”, como fazem os telejornais quando querem mostrar como se deu um acidente, um assalto, etc.

Estou sentado na mesa (gosto de falar sentado na mesa, diante da classe) e digo:

– Muito bem, acabaram os cinco minutos. Quem tem verso pronto?

Meu desafio foi: “Vocês tem cinco minutos para escrever uma estrofe típica de folheto de cordel; o tema é este: O QUE QUISER”.

Eles enterraram a cara na folha de papel e eu fiquei olhando pela janela, lá pra fora: um dia lindíssimo, bem nubladinho, céu todo branco, ventinho frio... Quanto é grande o poder da natureza!

Uma moça simpática, de óculos, daquelas que sentam logo na primeira fila, mete os pés e me traz uma folha de caderno.

– Ôpa, habemus versus. Como é teu nome?

– Dóris.

– Valeu, Dóris.

Ela senta, e já vem um cara de pulôver e boné trazendo outra folha.

– Tá aqui, professor.

– OK. Teu nome?

– Arlindson.

– Teu pai se chama Arlindo?

– Não, se chama João Batista. Por que?

– Nada não, é uma pesquisa que eu vivo fazendo. Pessoal, vamos dar um tempo. Temos dois exemplos aqui e vamos ler e comentar.

– Tem que entregar agora todo mundo? – pergunta um senhor grisalho lá atrás. Eu gosto dessas perguntas onde os termos vêm invertidos.

– Agora não. Sua Senhoria o Árbitro vai dar alguns minutos de acréscimos pra quem ainda não fez – digo. – Parem os cronômetros, e vamos ver os versos dos nossos amigos aqui.

Pego primeiro a folha de Dóris, que tem uma letra firme, bem legível. Várias palavras riscadas por cima, substituídas por outras.

Leio devagar, em voz alta, enquanto eles escutam:

O que quiser? O que é que eu quero?
Quero alguma coisa diferente de zero.
Quero o que não tenho. O que me desespero.
O que foi, o que não vai ser,
o que preciso decidir num segundo,
sabendo que não tenho todo o tempo do mundo
e cinco minutos são uma eternidade
quando o silêncio é tão profundo
quanto o céu que cobre a minha cidade.

Terminada a leitura, ergo os olhos. Todos estão com o olhar pregado em mim. Ninguém diz nada. O coroa magro de óculos, à esquerda, estica o lábio inferior e faz um sinal de assentimento com a cabeça, como quem diz: “Sim senhor”.

Pego o outro papel.

– Vamos ver agora o verso de Arlindson. Atenção, hein, gente? Isso aqui não é paredão não. Não é pra ver quem é melhor. A resposta poética é individual e personalíssima, como a impressão digital de vocês.

Leio:

Quero chamar os ouvintes
da cidade, do sertão,
para escutar este caso
de luta, amor e paixão;
foi um fato que se deu
na vila do Riachão.


(Montenegro-RS)

Levanto a vista. O silêncio continua, mas menos impressionado. Alguém encolhe os ombros como se dissesse: “E daí?”. Eu me viro para Dóris.

– Dóris, a primeira coisa que eu observo aqui é que a sua estrofe de cordel está com nove linhas. Porque você escolheu nove, e não outra quantidade?

– São nove? Nem vi. Que diferença faz?

Eu me viro para Arlindson.

– E o teu? Quantas linhas são?

– São seis, né? O cordel é feito em sextilha. Rimando a segunda, a quarta e a sexta.

Dóris dá uma risada alegre, sem implicância.

– Ai meu Deus, que coisa específica. Eu não sei rimar nem no sábado e no domingo.

– Mas você rimou – digo eu, mostrando o papel. – Tecnicamente falando, seu verso é uma estrofe de nove linhas, em métrica irregular, rimando AAABCCDCD. Um esquema meio irregular, mas que pra meu gosto funcionou.

– Que bom – diz ela. – Mas eu não pensei nada disso. Fui escrevendo pensando no sentimento, não me preocupei com métrica nem com rima, porque eu não entendo disso. Aliás, me inscrevi na oficina pra saber por que isso é tão importante, e pra aprender como se faz.

– Você já está bem encaminhada, rimou de maneira correta. Não esquente muito a cabeça. Tem poetas que são melhores na forma fixa, esse tipo com rima e métrica. E tem poetas que são o contrário. Se você acha que escreve melhor desse jeito aí, não se preocupe, mande brasa.

– Eita, “mande brasa”! Fazia quarenta anos que eu não escutava isso – diz um cara de bigode branco na terceira fila, se sacudindo de rir.

– E eu? – diz Arlindson.

– Você fez uma sextilha perfeita. Estrofe: seis versos, rimando ABCBDB. Verso: 7 sílabas sem fazer esforço – porque às vezes a gente tem que forçar um pouco a dicção pra poder dar certo. Rima: sem problema também. Uma coisa apenas: por que você botou o nome da cidade de “Riachão”?

– Porque é verdade. Eu estou com uma história na cabeça faz dias, e foi no Riachão, um lugar perto daqui.

– Foi Deus quem botou o nome desse lugar, porque a rima em “ÃO” é talvez a que mais tem na língua portuguesa. Quebra o maior galho. Mas tem que ser economizada. Senão fica repetitivo, o leitor percebe-sem-perceber e pensa: “isso tá ficando muito chato”.

– Eu também acho, e procuro variar. Nunca faço duas sextilhas seguidas usando a mesma rima.


(Uruguaiana-RS)

– Isso mesmo. Então, vejam: nós temos aqui dois exemplos que são o contrário um do outro. O verso feito por Dóris não é nem de longe um verso de cordel, porque faltam as regras tradicionais do cordel... Calma, calma, já explico. Mas o verso dela tem poesia!  Tem imagens, tem uma agitação de sentimentos. São frases filtradas pelo uso consciente da palavra. Poesia é isso, na base. O resto é a pirueta-verbal de cada um, o voo-alto-filosófico de cada um, o sentimento-do-mundo, ou não, de cada um.

“Já o verso de Arlindson é uma estrofe de cordel impecável: formato, métrica e rima. Mas eu diria que não tem poesia. Não tem essas coisas que acabei de elogiar no verso de Dóris. É aquilo que a gente chama, tecnicamente, de “prosa rimada e metrificada”, um texto que obedece as regras, mas não tem poesia. Calma, Arlindson, não estou dizendo que não presta.

“Uma característica do cordel é esse hibridismo, essa mistura de linguagem prosaica e linguagem poética. Não tem mal nenhum nisso. É difícil você fazer um folheto inteiro, mesmo de 8 páginas, com todas as estrofes ricas em poesia. O cordel é narrativo, conta histórias. Contando histórias ele também é descritivo. Muitos trechos do cordel têm esse fluxo da prosa, de narrar ações com simplicidade, de forma direta, e têm em outros momentos estrofes mais elaboradas, mais ricas em imagens, com uso mais original das palavras, e tal.

– Eu achei uma coisa – diz uma senhora de vestido escuro, sentada por trás de Arlindson. – Achei que o verso dela, pra mim, já era um poema completo. Por mim, está dito tudo ali, a indecisão dela, a angústia, a reflexão dela sobre o tempo... Não senti falta de mais nada. No dele, não. Ele começou uma história e deixou um gostinho de quero-mais.

– “Gostinho-de-quero-mais”, apesar do nome clichê, é um conceito útil na teoria literária – digo eu. – É isso que a gente procura deixar no leitor. Ora, o cordel é narrativo, quase sempre. Conta histórias. Essa estrofe de Arlindson é a estrofe 1 de um poema que pode ter 40, 80 ou muito mais. Tem que ter essa expectativa de “vem mais coisa”.

- E só é cordel se for assim? – pergunta um rapaz moreno chamado Millôr. O nome dele eu já gravei desde o primeiro dia, ele disse que a mãe era fã de Millôr Fernandes.

– Aí é que está. O cordel tem regras. Mas a poesia, em geral, é uma coisa livre: o poeta é o dono do poema, ele é quem determina as regras.

– E poesia precisa de regras? – diz Dóris. – Poesia devia ser, sei lá, o reino da liberdade, alguma coisa assim.

– As regras da poesia não servem para proibir, mas para focar. As formas fixas são desafios: poemas que obrigatoriamente têm que ter aquele formato. Pra reprimir? Pra prejudicar o poeta? Não: para ser uma prova de domínio da técnica. Mas só usa quem quer, ninguém é obrigado.

– Então rima e métrica é só pra isso? Exibição de técnica? Onde fica a emoção?

– Idealmente, a função da técnica é esta: dar recursos para a emoção. Sem técnica, vocês só tem uma ou duas maneiras de exprimir suas emoções. Com técnica, você tem duzentas. O que é melhor?

– O melhor é o que a gente sabe usar com mais sabedoria, não tem a ver com quantidade – afirma a senhora de preto.

– Então pronto – digo eu. – Papel e lápis na mão, todo mundo. Vocês têm cinco minutos para produzir um poema de cinco a dez linhas, rimado ou não, cordel ou não, não importa, um poema. O tema é o mais fácil do mundo: “O Brasil de hoje”, mas não pode usar a palavra “Brasil”, nem nenhum nome próprio, de pessoa, de lugar, de instituição. Mãos à obra. Cinco minutos, como dizia José de Alencar.

Eles abaixam a cabeça para o papel e eu penso: “Caramba, ainda bem que ninguém nunca me mandou fazer isso.”


(Barbacena-MG)