segunda-feira, 21 de julho de 2008

0453) Kafka e o Monstro (1.9.2004)



Acho que a maioria das pessoas, a esta altura, conhece pelo menos de ouvir falar a história de Franz Kafka intitulada A Metamorfose, que começa assim: “Certa manhã, ao despertar em sua cama de um sono inquieto, Gregor Samsa percebeu que tinha se transformado em um inseto monstruoso”. Para analisar e interpretar esta história os críticos já gastaram tinta que encheria um Açude Velho. Recentemente tomei conhecimento de uma carta escrita por Kafka em 25 de outubro de 1915 para seu editor, Kurt Wolff Verlag, em que ele diz:

“Prezado Senhor: O sr. mencionou recentemente que Ottomar Starke será o autor de ilustrações para A Metamorfose. Na medida em que conheço o estilo do artista, essa possibilidade me causou um pequeno e talvez desnecessário receio. Ocorreu-me que Starke, como ilustrador, poderia tentar desenhar o inseto propriamente dito. Isto não, por favor, não! Não quero impor-lhe restrições, mas apenas fazer este pedido devido ao conhecimento mais profundo que tenho da história. O inseto não pode ser representado. Não pode sequer ser visto à distância.”

Temos (todo leitor tem) uma capacidade inesgotável de imaginação para o monstruoso. O problema é quando um ilustrador, que também a tem, usa a sua, e acaba por bloquear e inibir a nossa. O pedido de Kafka é mostra de sua sensatez e de seu entendimento profundo de como funciona uma narrativa fantástica ou de horror. E me trouxe à mente o conto lovecraftiano de Jorge Luís Borges “There are more things” (em O Livro de Areia). Nele, o narrador descobre que a mansão que fôra de seu tio tinha sido alugada por um inquilino misterioso, que ninguém até então avistara pessoalmente. Uma série de indícios leva-o a crer que se trata de um ser alienígena e monstruoso. À noite, ele entra às escondidas na casa, quando o inquilino está fora, e descreve o que viu:

“Lembro agora de uma espécie de grande mesa operatória, muito alta, em forma de U, com cavidades circulares nos extremos. Pensei que podia ser o leito do habitante, cuja monstruosa anatomia se revelava assim, obliquamente, como a de um animal ou de um deus, por sua sombra.” Sugerir o Monstro por traços indiretos é mais eficaz do que descrevê-lo com precisão fotográfica: cada leitor julgará entrever (cada leitor, a cada nova releitura) o Monstro que seu medo e seu desejo lhe sugerirem.

No fim do conto, o protagonista prepara-se para deixar a mansão quando percebe que o inquilino monstruoso está de volta, e que a porta da rua fora deixada aberta. E o conto termina assim: “Meus pés tocaram o último lance da escada, quando senti que algo subia pela rampa, opressivo e lento e plural. A curiosidade pôde mais do que o medo, e não fechei os olhos.” A curiosidade sempre pode mais que o medo, e ambos são os maiores estímulos para a imaginação. O autor fornece a situação: nós fornecemos o Monstro, e ele sempre tem algo de nosso próprio rosto.

0452) Escalando o monte Olimpo (31.8.2004)



O futebol pode ser o esporte que mais nos apaixona: todo brasileiro (este “todo” é uma hipérbole, claro) sabe de cor a escalação da Seleção atual, e tem no bolso da camisa sua escalação preferida, que é muito melhor do que a do Parreira. Mas não é a Copa do Mundo o evento esportivo que nos define como povo. São os Jogos Olímpicos, onde participamos, como todo mundo, com o que temos de melhor em cada esporte. Por suprema ironia, nestes Jogos de Atenas ficou de fora justamente o nosso filho mais brilhante e mais mimado, o futebol masculino, que no Pré-Olímpico resolveu rebolar e usar salto alto, e acabou sendo substituído pelo futebol feminino, que, sabiamente, preferiu correr e calçar chuteiras.

Ganharam a prata, as meninas, e um dos indicadores do nosso fracasso como nação esportiva é o fato de que provavelmente continuarão todas desempregadas, treinando por conta própria, perdendo jogos decisivos para equipes mais preocupadas em finalizar jogadas para dentro do gol do que em “quebrar uma escrita que já dura tantos anos”, ou “mostrar por que somos o país do futebol”, ou “resgatar a auto-estima da mulher brasileira”, ou bobagens semelhantes que os cartolas e nós, da imprensa, vivemos repetindo.

Batemos pino no futebol, e vemos subir ao pódio o pessoal da vela, do iatismo. Vi um crioulo resmungar, diante da TV de um botequim, que mostrava a entrega de uma medalha a Torben Grael ou Robert Scheidt: “Agora danou-se, até no esporte eles estão tomando o lugar da gente.” Na cabeça desse indivíduo, certamente, há uma olimpiadazinha interna no Brasil entre ricos e pobres, e ele via com preocupação o fato de nossos ex-favelados estarem indo pro espaço nas eliminatórias, enquanto o pessoal de olho azul e sobrenome europeu singra como cisnes brancos as águas da vitória.

Não concordo, mas compreendo. As Olimpíadas têm que nos representar como povo, num corte vertical onde estejam presentes todas as camadas de gente que nos compõem. O problema é que elas refletem também nosso imenso conflito emocional, de gente que quer compensar seu complexo-de-inferioridade adquirindo um complexo-de-superioridade. Em Atenas 2004 ganhamos quatro ouros que compensaram a frustração de Sidney 2000. Naquele ano, publiquei no “Jornal da Tarde” de São Paulo um artigo em que dizia:

“Falta de patrocínio, excesso de patrocinadores, instabilidade emocional, paúra de novato, traumas de veterano, influência daninha do marketing, assédio invasivo da imprensa, falência do modelo neo-liberal – tudo já foi invocado para explicar por que motivo na hora H nossos atletas dão aro. Eu não gostaria de, na hora de cortar de encontro a um bloqueio, estar pensando na percentagem da cota, na revisão do contrato, na fogueira das vaidades, nas expectativas do fã-clube, na manutenção de uma escrita, na coletiva do aeroporto... Eu queria poder estar pensando apenas na bola, no tempo, no espaço, na rede, no olho, no braço.”

0451) A porta de entrada (29.8.2004)




Muitas vezes a gente se decepciona com um autor apenas porque tentou acessar sua obra pela porta errada. Nem toda porta serve como porta de acesso ao trabalho de um escritor (músico, cineasta, etc.). 

Meu total desconhecimento da obra de determinados figurões da literatura ou da filosofia se deve a este detalhe crucial. Inventei de ler o livro mais famoso, e acontece que ele era também o mais complicado. 

É o caso de James Joyce, por exemplo. Quem tentar se aproximar dele através de Ulisses vai dar com a cara na porta, e uma porta do tamanho da Muralha de Tróia. Leiam os contos de Dublinenses, meus camaradas. São pequenos quadros da vida cotidiana da cidade, com uma linguagem rica em visualização e sensorialidade, finura psicológica, olho fino e irônico para as convenções sociais. 

Depois, pode-se passar para o Retrato do Artista Quando Jovem, cuja linguagem é mais cheia de curtos-circuitos, e que introduz temas e personagens expandidos no Ulisses. O qual será um livro mais aberto, depois de lidos estes dois.

Guimarães Rosa é a mesma coisa. Milhares de incautos perderam-se na veredas do Grande Sertão, ou na ilusória brevidade dos contos de Tutaméia, que é justamente o livro onde a linguagem de Rosa está mais maneirista, mais rococó, mais churrigueresca. O melhor acesso é através dos contos de Sagarana, depois os de Primeiras Estórias e finalmente nas noveletas de Corpo de Baile (hoje desmembrado em 3 volumes).

Quando um autor fica famoso, publicam-se até os seus erros de mocidade, aqueles livros de aprendiz que o sujeito sempre se arrepende de ter escrito. O leitor que não o conhece fica perdido diante de uma estante inteira de títulos disponíveis, cada um dos quais descrito na contracapa como uma obra da maior importância. Sem saber a quem perguntar, o leitor faz um puxa-o-rabo-do-tatu com seus botões e acaba comprando um livro que se revela como o mais difícil, ou o mais chato, ou o mais irrelevante. 

Minha apreciação da obra musical de Frank Zappa ficou comprometida durante muitos anos pelo fato de que o primeiro disco que escutei foi Reuben and the Jets, que é uma sátira aos conjuntinhos pop. Fiquei perplexo: “Oxente, é esse o cara que chamam de gênio patafísico da vanguarda do rock?” Só tentei de novo dez anos depois. 

Imagino a decepção de quem tente conhecer Bob Dylan ouvindo o Self Portrait, Alfred Hitchcock assistindo Topázio, ou Agatha Christie lendo O mistério dos sete relógios.

A melhor porta de entrada para os Beatles, por exemplo, é Rubber Soul. O disco é uma bela amostra dos roquinhos mais bobos, das baladas irretocáveis (“Girl”, “Michelle”) e abre o caminho para a maturidade futura com “Nowhere Man”, “In My Life” e “Norwegian Wood”. 

Ouvindo-o, ficamos sabendo tudo de que os caras são capazes, e qualquer outro disco não soará totalmente estranho. Nem sempre a melhor obra para se iniciar uma convivência é a primeira, ou a mais importante, ou a mais simples.