sexta-feira, 24 de abril de 2009

0999) Duchampianas (30.5.2006)




(Duchamp, foto de Viktor Obsatz)

Em 1918, Marcel Duchamp pegou um cartão postal com a reprodução da “Mona Lisa” e pintou-lhe em cima um bigode e um cavanhaque. O sacrilégio ajudou a sacramentar sua fama de iconoclasta. 

Duchamp já havia introduzido nas artes plásticas o conceito de “ready made”, a obra de arte “já pronta”: um objeto banal que era magicamente transformado em Arte pelo gesto do artista em oferecê-lo (a uma galeria, uma exposição, um museu, um possível comprador) como obra de arte. 

Duchamp fez isto com uma roda de bicicleta afixada a um banquinho, e depois com um urinol de porcelana, aqueles de banheiro público (que geralmente estão cheios de bolas de naftalina, pedras de gelo ou rodelas de limão).

A quantidade de mal-entendidos, ingenuidades e vigarices que estes gestos produziram é grande, e um dos seus críticos mais entusiastas é Affonso Romano de Sant’Anna, numa série de artigos que acompanhei durante anos em “O Globo”, reunidos depois no livro Desconstruindo Duchamp

Eu tenho uma atitude contraditória diante disto. Por um lado, admiro a originalidade e a ousadia do pensamento de Duchamp. Por outro, acho que sua influência (como a de tantos artistas desconcertantes, surpreendentes) acabou fazendo mais mal do que bem.

Os gestos de Duchamp só têm valor porque ninguém tinha pensado naquilo antes. São o que alguns teóricos chamam de “gestos, ou atos, fundadores”. O seu bigode na Mona Lisa provocou escândalo, irritação, menosprezo; depois, milhares de páginas de discussões sobre o que é e o que não é arte, sobre os conceitos de paródia, desconstrução, comentário estético, sacralidade da obra, metalinguagem, o escambau. Podemos ser contra, como Affonso Romano, mas eu, pelo menos, me sinto na obrigação de reconhecer que aquele gesto teve originalidade, e colocou um problema novo.

Mas, o que seria das artes plásticas se os artistas jovens tomassem isso como um novo gênero, chamado “Bigodes em Rostos Femininos”? E fôssemos condenados a comparecer a vernissages onde veríamos apenas reproduções de retratos femininos, só que com a vigorosa adição de bigodes de todos os formatos? 

A repetição de gestos fundadores é um cacoete infelizmente inevitável na Arte. Edgar Allan Poe escreveu dois ou três contos em que um sujeito decifra um crime misterioso usando apenas seus poderes de observação e de dedução – e o romance detetivesco aí está, repetindo “ad infinitum” esse seu gesto fundador. 

A favor do romance policial deve-se reconhecer a imensa originalidade das variantes imaginadas pelos seus cultivadores, e alguém menos mal-humorado do que eu talvez venha a dizer o mesmo da Arte Conceitual de hoje. 

Duchamp, que era um grande gozador, gostava de espalhar cascas-de-banana conceituais diante dos marchands e dos críticos. Hoje, seus seguidores espalham cascas de laranja, de abacaxi, de maçã... Falta alguém dizer que não é a casca, pessoal. É o “resultado fundador” do gesto, e isto só ocorre na primeira vez.





0998) Árido Movie (28.5.2006)



O filme de Lírio Ferreira, que recentemente ganhou o prêmio principal do Festival de Cinema do Recife, é uma porrada. É o filme mais pernambucano que eu já vi, porque nele estão superpostos e entrelaçados vários Pernambucos, contraditórios e conflitantes, mas que pela força das coisas são forçados a coexistir e comunicar-se. É um filme nordestino que surpreende a chamada “platéia do Sul”, como já ocorrera com o filme anterior do diretor, O Baile Perfumado (em parceria com Paulo Caldas). É um Nordeste onde os coronéis plantam maconha e os jagunços andam de moto. Em vez da unanimidade da caatinga, vemos um vale de formações rochosas que parecem projetadas por Salvador Dali. E os beatos messiânicos prometem uma vida melhor em Júpiter ou Saturno.

O filme é uma reescritura do Nordeste como região geradora de mitos. No Baile Perfumado, o diretor optara por mostrar um Nordeste úmido, verde, de beira de rio e borda de desfiladeiro, em vez do Nordeste ressequido e desértico que as platéias de cinema se acostumaram a esperar; e aquele filme era menos sobre o Cangaço do que sobre o Filme de Cangaço. Em Árido Movie, o roteiro costura a relação, óbvia para quem é da região, entre decadência rural, tráfico de drogas, messianismo com discurso apocalíptico, extinção de tribos indígenas, música pop-brega e a lei das armas de fogo.

E a água, a imagem básica que perpassa toda a história. Desde a indústria de peixes a que a mãe de Jonas vai se dedicar no Recife até a água benta e milagrosa do profeta, que em termos de placebo para as dores da realidade não se distingue muito da onipresente maconha. São os carros-pipa agilizados por políticos, e as latas dágua das incessantes idas e vindas das mulheres sertanejas; são as cavernas míticas onde só se chega de jipe. A água é moeda de troca, é fonte de poder, é símbolo religioso, e é também onipresente, mesmo quando ninguém a vê.

Numa cena do filme, José Dumont (numa de suas melhores atuações) mostra uma montanha que parece um elefante com metade do corpo submerso na água. E depois que ele nos mostra esquecemos (se quisermos) que aquilo é terra, é pedra, é mato: só vemos o elefante. Pois a montanha é o Nordeste; e o elefante, ou os muitos bichos que podemos ver nela, são os filmes sobre o Nordeste. O que Nelson Pereira dos Santos viu em Vidas Secas e o que Glauber viu em Deus e o Diabo na terra do Sol continua visível. Não desmente nem é desmentido pelo que é visto em Árido Movie. Mas, sobre os alicerces daquele Nordeste clássico e esquerdista, em preto-e-branco, de quarenta anos atrás, está sendo construído outro, mais cínico, mais realista, mais confrontador, mais eletrificado. O cinema que está sendo feito por Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Paulo Caldas, Cláudio Assis e outros ajuda a entender o que está acontecendo hoje no Nordeste, e principalmente a entender isso que vai acontecer, inevitavelmente, no futuro próximo.

0997) Os livros de História (27.5.2006)




Num livro de Kurt Vonnegut Jr. um personagem faz uma viagem no Tempo e chega ao futuro remoto. As pessoas lhe perguntam de que época ele vem, mas ele não consegue explicar o que diabo é “século 20”. Fala “depois da II Guerra Mundial”, e ninguém sabe o que foi. Diz que é dos Estados Unidos, e o pessoal nunca ouviu falar. 

Curiosos, levam-no para uma Biblioteca onde ele tem acesso a uma enciclopédia histórica, e manda pesquisar o termo “Era Cristã”. Aí o computador exibe duas linhas de texto, dizendo: “Após o nascimento do profeta Jesus Cristo, a Humanidade passou por um período de adaptação que durou um milhão de anos”. E isto é tudo.

Vonnegut é um dos escritores mais sarcásticos e descrentes de nossa época, e o pior é que ele sempre parece estar certo. O passar dos anos vai reduzindo nossos relatos sobre o que aconteceu no Brasil e no mundo. 

Às vezes eu pego um livro de História recente e me deparo com 30 ou 40 páginas descrevendo as disputas internas de um Partido para a composição e aprovação de uma chapa eleitoral. Telefonemas, cartas, reuniões madrugada adentro, brigas pessoais, traições, conchavos de última hora... Parece que não acaba nunca. 

Me consolo pensando que com o passar dos anos aquilo vai aparecer nos livros assim; “Em 1900-e-tantos, Fulano de Tal foi eleito presidente da República e governou dois mandatos seguidos, quando então foi eleito Beltrano”.

Nos livros de História que nossos filhos estudam, até os nomes próprios desapareceram, o que vemos é uma espécie de Abstracionismo Social, onde só existem formas geométricas básicas. “Com o declínio do poder feudal e as revoltas dos servos, o regime monárquico aliou-se estrategicamente à burguesia nascente, promulgando medidas que eram de seu interesse, como o conceito de moeda única e a supressão do pagamento de impostos intra-territoriais”.

Vista a tal distância, a História é uma espécie de balé de formas, uma animação de Hans Donner. “Poder feudal” é uma porção de circulozinhos multicores justapostos, que vão empalidecendo e minguando. Os “servos” são fungos esverdeados que aderem às suas bordas e os corroem pouco a pouco. O “regime monárquico” é uma estrela central de onde se irradiam linhas douradas em todas as direções. E a “burguesia nascente” é uma infinidade de minúsculos canais que carreiam tinta dos círculos para a estrela, e que, no próximo episódio da série, acabarão sugando para dentro de si a substância cromática de que a própria estrela se compõe.

Tiro meu chapéu para os historiadores que são capazes desta enorme abstração, mas não posso evitar uma certa angústia ao pensar no quanto é irrelevante, para os livros de História de 2050, tudo que nos aperreia o juízo quando assistimos o Jornal Nacional. 

Nos parágrafos iniciais de A insustentável leveza do ser, Milan Kundera cita uma guerra na África em que “350 mil pessoas morreram vítimas de sofrimentos atrozes”. E não ficou o retrato de uma sequer.








0996) O código dos albinos (26.5.2006)



Uma minoria pela qual ninguém se interessa são os albinos. Os negros, índios, homossexuais, deficientes físicos, crianças super-dotadas... todas estas minorias contam com a simpatia implícita das legislaturas e dos meios de comunicação. Contra os albinos, contudo, parece existir um conluio difamatório, ou na melhor das hipóteses uma conspiração de silêncio. Isto é curioso, por ser uma espécie de preconceito de cor às avessas. Não sou albino, mas, como branquelo convicto, já fui muitas vezes vítima de discriminação em lugares públicos – como a praia, por exemplo. Se os negros se queixam de preconceito, os muito brancos também têm seus motivos para insatisfação. Precisamos acabar com a ditadura cultural dos bronzeados.

Enquanto isto não acontece, contam os albinos com a Organização Nacional pelo Albinismo e Hipopigmentação (N.O.A.H.), entidade que defende os interesses dessa turma, e que foi à imprensa há pouco para protestar contra o filme O Código Da Vinci, onde um dos vilões é um monge albino que assassina pessoas a mando da ordem religiosa a que pertence. Michael McGowan, diretor da NOAH, disse que este é o 68o. filme, desde 1960, a mostrar um albino num papel negativo. Como exemplos recentes ele citou o personagem de Bosie em Cold Mountain e os gêmeos assassinos de Matrix Reloaded. Ao mesmo tempo, ironizou a desinformação dos responsáveis por filmes como A Firma e Letal Weapon, onde são mostrados albinos (que têm uma notória deficiência visual) como atiradores de elite. McGowan afirmou que, nas duas últimas décadas, 2004 foi o único ano em que não apareceu nenhum filme com um personagem albino apresentado sob uma ótica negativa.

Os albinos parecem ameaçadores, talvez, porque seu desconforto à luz tem algo de noturno e vampiresco. Para os leitores de ficção científica não há como não lembrar dos Morlocks, os mutantes subterrâneos de H. G. Wells em A Máquina do Tempo. Seres que o Viajante do Tempo, em seu primeiro encontro, descreve como “aquela Coisa desbotada, obscena, noturna”, produto de milênios vividos nas profundezas da Terra.

Para nós, nordestinos, tudo isto parece esquisito, porque os albinos mais conhecidos que temos são aquela dupla de músicos que gênio que recreiam nossos ouvidos e nossa imaginação há décadas: o paraibano Sivuca e o alagoano Hermeto Paschoal. Aos nossos olhos, nada têm de ameaçadores. Suas barbas alvíssimas e seus rostos rosados lhes dão a aparência bonachona de um Papai Noel à paisana. O sentimento que sua visão nos desperta é de instintiva simpatia, mesclada à curiosidade que sentimos por quem foge um pouco à medianidade. Ambos guardam um ar de mistério por trás daquelas lentes meio escuras, meio fundo-de-garrafa. Um mistério de quem tem algo de alquimista, bruxo, duende, mas um mistério que irradia luz, que vem do lado dos mistérios criativos, de onde brotam a vida e a beleza.

0995) A lista de Parreira (25.5.2006)



Saiu a lista de convocados para a Copa do Mundo! Nos sismógrafos dos botequins da Pátria, as agulhas deram uma tremidinha besta, e nada mais. Há anos não vejo uma lista tão pouco polêmica. A safra é boa, e o trabalho de Parreira e Zagalo está se impondo com um futebol vistoso e eficiente. Podem ser lamentadas algumas ausências: o ótimo goleiro Marcos; o lateral Júnior, que fez uma boa Copa em 2002 e está bem no São Paulo; e há quem sinta saudade de Roque Júnior. Mesmo assim, o grupo é excelente. Se vai ganhar ou não (ou se vai passar da primeira fase ou não) são outros quinhentos, os quinhentos que fazem o fascínio do futebol.

Fiquei contente com a convocação de dois jogadores que admiro há muito tempo: Juan e Juninho Pernambucano. Os dois não têm muito lobby, não são bons de marketing, e não vivem nesse culto desenfreado à mídia. Talvez acabem ficando meio obscurecidos por jogadores mais badalativos e sem um décimo do talento deles. Nos mais de dez anos em que vi Juan jogar no Flamengo não o vi dar mais do que meia dúzia de entrevistas, sempre lacônicas. É um zagueiro clássico, com suficiente força para bloquear um atacante maior do que ele, e com suficiente domínio de bola para sair jogando de cabeça erguida. E ótimo cabeceador, tanto para rebater na própria área como para fazer gols na área oposta.

Juninho Pernambucano era jogador do Sport, mas só vim a conhecê-lo com a camisa do Vasco, time pelo qual não morro de amores. Mas já assisti na TV muito jogo Vasco x América ou Vasco x Bangu para vê-lo distribuir jogo com clarividência, matar a bola com maestria, e bater faltas como pouca gente bate no mundo. Juninho apareceu na imprensa muito mais do que Juan, mas por uma causa nobre, quando encarou e bateu de frente com o Poderoso Chefão vascaíno, Eurico Miranda. Acossado e ameaçado por todos os lados, Juninho pagou pra ver e conseguiu desligar-se do Vasco (era uma confusão em torno de venda de passe, percentagens, etc.) e agora, na França, ajudou o Lyon a ser pentacampeão francês.

São jogadores talentosos, sérios, “na deles”. Isso não quer dizer que eu não goste de jogadores brincalhões e extrovertidos como Ronaldinho Gaúcho, Robinho ou Ronaldo. Mas é que hoje em dia inventaram esse tal conceito de “jogador com personalidade”. Para a imprensa que cultiva este slogan, jogador com personalidade é aquele que pinta o cabelo de azul, e passa o jogo inteiro insultando o juiz com o dedo em riste e tirando lascas das canelas dos adversários. O oposto simétrico deste é o jogador cheio de santimônias, que se diz evangélico, agradece pessoalmente a Jesus Cristo cada gol que marca, mas vive fazendo armação para derrubar o técnico.

Juan e Juninho (e Ronaldo, Ronaldinho, e quase todos os outros) são o que o nosso futebol tem de melhor para oferecer. Tomara que ganhem a Copa. E se tiverem que perdê-la, que a percam para alguma seleção que até hoje não ganhou, como Japão ou Angola.