sexta-feira, 24 de julho de 2015

3875) O Sertão grande (25.7.2015)




Tem uma cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol em que Antonio das Mortes e o cego Júlio, o cantador, estão sentados num batente tendo diante de si, escancarada, a planura em chamas do sertão ao meio-dia.  O cego pergunta o que ele está vendo, e Antonio diz: “É o sertão grande de Canudos”. O cego não vê o que Antonio está vendo; talvez nunca o tenha visto, se for cego de nascença. Mas ele sabe onde está sentado, e deve ter sentado centenas de vezes ali, ao longo da vida, ouvindo as pessoas comentarem o sertão grande à sua frente. Cuja existência material ele atesta, por fé em todas as constatações-às-apalpadelas que a vida lhe proporcionou (praticamente tudo que as pessoas dizem estar ali está, de fato: porta, sofá, cadeira, mesa...).

Igualmente cego é o personagem de Amarcord de Fellini, o ceguinho sanfoneiro também de óculos escuros, que vai na romaria de barcaças que saem à noite para ver um transatlântico passar numa Babilônia de luzes. O ceguinho não viu esse outro prodígio, mas teve a mesma certeza dos demais. (Resta a discussão filosófica para saber se uma certeza pode ser maior que outra só por ter passado por mais crivos, mais testes.) O cego Júlio não via o sertão grande, mas mostrava. Talvez Antonio das Mortes tenha precisado do cego para ver o sertão melhor.

O vazio opressivo dos imensos espaços do sertão é tão poderoso quando a opressão maciça de uma metrópole, mesmo sendo de outra natureza. Depende não só da visão, mas de outros mecanismos inconscientes de sentir pressão, vento, concentração de ar, nuances atmosféricas para as quais basta estar ligado. O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão: os dois grandes opostos convergem um sobre o outro, rodopiando como num símbolo do Yin-Yang. São formas extremas, sua tendência é ir na direção do seu oposto simétrico.

Um olho olhando para fora, o outro para dentro. Sérgio de Castro Pinto explorou na poesia a dualidade caolha de Camões e Lampião. Mas o herói caolho também pode ser como o Snake Plissken de Fuga em Nova York, ou como o arquétipo do pirata de olho de vidro, mão de gancho e perna de pau: mais do que um remendado, um obstinado sobrevivente. Alguém que a morte só está conseguindo derrubar aos poucos.

Antonio das Mortes talvez fosse cego do entendimento, daí sua reviravolta política em O Dragão da Maldade. Que mostrou um fazendeiro cego (Jofre Soares), cheio de susto diante da invasão dos flagelados: “Batista! Farinha e carne seca pra todos!”. Mas seu gestual não me parecia na época ser de quem está na escuridão, mas de quem está ofuscado por um sol mil vezes mais forte do que esse daqui, por isso que não enxerga.




3874) "Mad Max Fury Road" (24.7.2015)



Este quarto filme da série “Mad Max”, dirigido por George Miller (2015), é o que antes se chamava, em outros contextos, de um “tour-de-force”, uma coisa que impressiona não apenas pela qualidade do resultado mas também pela destreza que exigiu do praticante. É um filme de ação contínua, perseguição de carros e de gente o tempo todo, tiroteios e bombardeios e abordagens a toda velocidade, sem descanso, sem longas cenas voltadas para outra coisa que não seja a perseguição. Tem poucas transições de tempo. Uma delas, p. ex., é o tempo necessário para os caras que sequestraram Mad Max tatuarem nas costas dele as informações médicas necessárias a uma “bolsa de sangue” – ele é doador universal e por essa utilidade deve ser mantido vivo. De vez em quando há uma pausa na perseguição para 4 ou 5 minutos de diálogo, mas logo os motores inimigos trovejam no horizonte e a caçada recomeça. 

Gasolina e água são (previsivelmente) as duas mercadorias mais raras nesse mundo pós-holocausto, regido com mão-de-ferro tribal, e é admirável a prodigalidade com que são jogadas fora. A água é derramada em torrentes para impressionar a população, mais andrajosa do que a de Canudos. A gasolina é queimada nessas perseguições deserto afora. Mesmo depois da civilização ser destruída a petroleodependência da humanidade continuará firme. Vai gostar de carro assim na Austrália.

Quando terminei de ver, pensei: “Isso é filme pra quem adora carros, caminhões, velocidade”. Mas depois pensei, acho que melhor: “Isso é filme pra quem trabalha em equipe de filmagem”. Duvido que um câmera-man, um técnico de som, um dublê não se deslumbrem com esse filme. Diz-se que 80% das cenas perigosas foram feitas de verdade, sem computação gráfica. Dublês de carne e osso pulando de um carro para o outro, dando tiros, a 200 por hora. Quem já trabalhou com filmagem entende a dificuldade de filmar planos assim, com tudo acontecendo de fato, e sabendo que um desses atores ou figurantes pode ser atropelado ou quebrar o pescoço no take seguinte. Talvez na Austrália as proteções sindicais e trabalhistas não sejam tão rigorosas quanto nos EUA, onde cada cenazinha de briga-de-socos é cercada por contratos específicos prevendo indenização por dente quebrado. Será? Me desculpem os australianos, mas a gente imagina às vezes que a Austrália de hoje é igual a essa Austrália futurista de Mad Max.

Bandidos que se comportam como piratas de navio, jagunços kamikaze vestidos como nosferatus, coronéis garanhões com harém de jovenzinhas parideiras, lanças explosivas, um enclave do inferno cercado por desertos de sal. O futuro não será para os fracos.